Trevo é um MC, cantor e compositor acaba de lançar um EP visual com reflexões importantes sobre as relações entre ancestralidade e rua
“A minha life é a minha knife nego”
A arte de Trevo é um dos segredos mais explícitos e a altura de um clique para qualquer um que queira conhecer um dos mais talentosos artistas de sua geração. Atualmente com 22 anos e com um disco, um EP e um EP visual/curtametragem constando no seu currículo, estamos diante de um novo arquétipo de artista em se tratando da música afro diaspórica nacional. Em tempos onde jovens artistas são catapultados ao estrelato por investimento financeiro nas redes sociais, sites e streamings, onde provocar polêmicas ou por receber a benção de alguns grãs sacerdotes da mídia corporativa ou de nincho, Trevo tem sacudido a roseira, na sombra.
Tendo surgido no cenário do hip-hop baiano em 2018/2019 com a emergência do coletivo de rap Underismo, o artista teve participação nos dois primeiros excelentes trabalhos do grupo, o EP R3$ídu0$ (2018) e a Demotape (2018), além do hit Pretx Chave (2019). Em seguida, e ainda como parte integrante da Underismo, veio o lançamento do disco Nada de Novo Sob o Sol (2018) pela GANA produtora. O disco foi certamente um dos melhores trabalhos lançados por revelações naquele ano, mas infelizmente o “eixo” não viu, não ouviu, não deu atenção.
Para quem acompanhou a cena naquele ano, um fato que por algum tempo me pareceu uma espécie de memória fabricada, deve ser mencionada. Em um evento no Pelourinho, em 2019 ainda, e sem ter lançado o seu disco de estréia ainda, em uma apresentação da Underismo, Trevo chamou Mimoso (produtor do disco NDSS e de faixas do Underismo) para o palco. Anunciou que iria fazer uma faixa do seu trabalho solo e assim que a música começou um espanto geral se abateu em todos os presentes. Por alguns minutos, a praça Tereza Batista passou por uma suspensão do tempo cotidiano, e o público e algumas figuras de renome da cena acompanhavam a execução da faixa Aruanda de boca aberta e em silêncio reverente.
Esse começo auspicioso foi suspenso também, Trevo saiu da Underismo, e apesar do reconhecimento evidente que os trabalhos geraram no cenário local, o jovem Iago se afastou da música e cogitou uma aposentadoria precoce. Em meio a um cenário onde um regime de visibilidade fake, onde poses e a criação de um cenário existencial virtual enganador, além da necessidade de trabalhar em coletivo, baquearam o artista. Problemas pessoais, necessidade de sobrevivência e crises de ordem psicológica foram enfrentadas numa volta às origens, a sua quebrada.
“Larica’s Trevor, Trevo, O Improvável”
Cuidar da própria espiritualidade e da manutenção necessária da vida material foram mais do que uma pausa necessária, uma abertura maior para o seu talento. Reza a lenda – real – que nas mesinhas de aço em conversas com seus parceiros da Boa Vista de São Caetano, o groove começou a ser feito com a mesma rapidez e cuidado com que eram feito os rangos vendidos na lanchonete Larica’s Trevor. E o improvável aconteceu, Trevo lançou o EP de pagotrap Toda Vida (2021), com uma preparação prévia e naquele modelo independente de quebrada, o trabalho trouxe junto dois audiovisuais bem executados e que transparecem a essência do trabalho.
No EP, Trevo reflete sobre as relações música e trabalho no single “Mt” junto com Iury Cairon, uma das faixas que ganhou videoclipe. Abraça com carinho e groove, o nosso modo de nos divertimos nas praias da quebrada, “Cantagalo e Boa Viagem Style”, o segundo single lançado em audiovisual. Junto com Paulilo meteu um hit em “Apertada & Kent”, rompendo com quaisquer resquícios de hetero cisnormatividade. O disco ainda conta com outras duas faixas, “Só Katishupar”, onde o cantor mescla seus dotes culinários que podiam ser visto nos seus stories, com um outro banquete digno do melhor da produção visual da página do instagram Vamo, Bê?.
Na música “Balançando Tudo” que fecha o EP, Trevo mescla com muita propriedade na linguagem musical, sua lírica fina e aqui mezzo cifrada entre a cultura hip-hop e o próprio pagodão. “Respeitado no meu bairro, ranço do resto do mundo… Porque minha filosofia é do real beco sujo, respeita o vagabundo”, uma declaração poética que de algum modo sintetiza sua caminhada até então. O respeito que o jovem talento tinha imprimido na cena do rap local, de bocas abertas e atenção total em “Aruanda”, aqui já começava a balançar tudo numa intersecção de gêneros musicais que seguem se misturando em seu trabalho.
Essa admiração conquistada desde os tempos da Underismo, foi resgatada pela Duda Beat que o conheceu nessa época, em uma passagem por Salvador. Duda o convidou para um feat em seu último álbum: Te Amo Lá Fora (2021). A música “Nem um pouquinho” ganhou um audiovisual que certamente é uma das maiores e melhores produções da música brasileira neste ano. Movimento que colocou o nome do artista baiano em evidência e muita gente tem tomado contato com seu trabalho após essa participação. Além de ter proporcionado a Trevo uma estádia em São Paulo que por sua vez o colocou na residência artística do fotógrafo Hick Duarte.
“Eu peguei minha conta respirei, quando eu vi olha a mulher voltado, descendo toda de vermelho, parô, pegou na minha mão me pediu um beijo, e falou seu moço, a rua é suja mas eu te protejo”
Todo esse movimento nos parece que ilustra de modo muito original e singular tudo que está colocado e trabalhado esteticamente dentro do EP Visual “Água de Flor” (2021), uma obra que sintetiza o momento artístico e existencial de seu criador. Esse se mover, se balançar, parar, respirar, entender-se, correr, groovar, rimar, são verbos que Trevo vem praticando para se manter produzindo. Produção essa que vem rompendo fronteiras estéticas de uma forma que ele tem criado sua própria assinatura enquanto criador e jovem homem negro.
A residência artística multidisciplinar Fenda lhe proporcionou pela primeira vez a possibilidade de criar, externando tudo que tem dentro de si com os recursos necessários para que isso fique “escuro” de modo indubitável, só não vê/enxerga quem não quer. O roteiro do trabalho exemplifica essa jornada do herói que vai de dentro para fora entre percalços e erros, como o trajeto de uma nascente que tem um longo caminho até encontrar o mar. Tudo isso, está belamente filmado com a presença das forças ancestrais afro diaspóricas relacionais à épica de um jovem negro, de uma jovem negra. E a naturalidade, a simplicidade que podemos observar no trabalho é como disse o grande Negro Freeza: ancestralidade não é re-ligare, antes a aceitação daquilo que sempre esteve ali, dentro de si mesmo.
O audiovisual e a música estão plenamente coadunados um com o outro de modo a não se fazer ilustração imagética primária e didática da música, pelo contrário, os signos visuais presentes na tela, as atuações nos conduzem ao tempo da música mas do que a mera ação dos mesmos. Em uma bonita complementaridade entre música e vídeo como pouco se vê, “Água de Flor” é vivência extrema reprocessada pela alma de um artista que carrega a beleza transgressora como signo maior de sua negritude.
É isso, esse desapego consciente de caixas que faz Trevo produzir uma obra que atravessa gêneros musicais e estéticos com a tranquilidade de um experiente diretor de cinema, roteiro, músico, compositor, cantor, MC. Disso é difícil discordar. Assinando a direção musical do trabalho, o artista contou com as faixas produzidas por Marcelo Gerab, Rico Jorge, JTK e Pivaratu. Além da participação do MC Joca, das cantoras Luiza de Alexandre, Layla Afrika e das instrumentistas Yaminah Garcia (saxophone) e Hodari (guitarra), que emprestam e acrescentam rimas carregadas de sabedoria antiga, vozes femininas muito bonitas e um tempero orgânico às produções !
Musicalmente o EP navega em suas 5 tracks pelo Trap, batuque eletrônico, samba entre o orgânico e o digital, cantigas e batuques ancestrais, conduzindo o seu barco musical nessa travessia reverencial aos orixás em direção a si mesmo.
“Menino que antes de ir pra escola, joga bola, põe a pipa no ar, ele sabe que pode apanhar mais o anjo menino quer brincar, deixa o menino brincar”
As visões que Trevo produz nos 5 atos presentes no EP Visual Água de Flor (2021) são de uma complexidade simples ao mesmo tempo em que nos apresenta tudo com uma beleza quase que cotidiana. Uma formação hackeada do BI de artes da UFBA, projetaram-se através dessa obra de modo tocante. A direção de Trevo e Hick Duarte é certeira, a fotografia da dupla Vinícius de Andrade e Naelson de Castro brilha numa paleta de cores fenomênica e ainda conta com a direção de arte de Felipa Damasco. Uma equipe que ao assistirmos a obra rapidamente nos perguntamos quem são. Mas não para por aí!
Da forma como enxergamos, os três primeiros atos representam momentos de encontro, felicidade e separação, algo que é sobredeterminado pelo próprio Trevo que atua como uma outra força de si mesmo, curada e reencontrando a ancestralidade que sempre esteve presente. Esse processo como acima mencionamos, representado com unicidade entre som e vídeo deságua no mar, onde por fim podemos ver Trevo deixando e vivendo em paz com sua criança interior.
Na carreira artística independente sempre dependente de inúmeros fatores que decidem o que vai ou não fazer sucesso, o fato inexorável é que Trevo já mostrou que quer e que pode fazer arte em altíssimo nível. Resta, que o público e o cenário deixe o menino brincar, que ele próprio enquanto artista saiba da imensa potencialidade que carrega dentro de si, como de resto diversos artistas na Bahia e no Brasil possuem. Precisando que nós, mídia e público estabeleçamos relações mais horizontais, afinal sabemos que meninos traquinos se dão muito mal às vezes em locais de muita verticalidade. Esses mesmos meninos e meninas possuem a benção do vertical em mergulhos dentro de si mesmos, não em cenários com topos para alpinistas estéticos.
Viva Jorge Ben, Viva Trevo!
-“Água de Flor”, Trevo coloca gêneros pra dançar, ancestralidade e rua!
Por Danilo Cruz