Galf AC & Giallo Point, Brasil & Inglaterra numa collab que une a sujeira boombap underground in Cremenowstudio!
Esboços de um storyboard sangrento, TRAVÖ
A união de artistas com approaches contextuais diversos, se configura no EP TRAVÖ como uma espécie de milagre do qual somente a arte é capaz. A equipe cinematográfica aqui é composta por Sofia Canário, Giallo Point, Galf AC e Gil Daltro, que atuam e dirigem cada qual com sua câmera e personagem próprios e singulares. Convido vocês para perceberem como MC ‘s, beatmaker e designer gráfico são capazes de mesmo inconscientemente construírem uma espécie de storyboard.
Apresentando suas contribuições cada um ajuda a dar vida a um dos EP’s mais interessantes e ricos do underground nacional. Talvez a obra “Internacional” mais representativa de que tivemos notícia. Uma obra que fica a cargo do ouvinte construir o sentido, mas com peças ricas o suficiente para perceber as indicações criminosas que lhes constituem! Denúncia, valoração, rua, ambientações e climas inusuais.
Primeiro é preciso situar a parceria rimática entre Galf AC e Gil Daltro, irmãos que o hip-hop juntou, como investigadores que já habitaram a central “Pinkerton da CBX”, FME (Fraternidade Maus Elementos), procure saber. Fundaram a agência de detetives: Projeto Vapor, e seguem juntos, resolvendo casos e colaborando firmemente nos trabalhos solos um do outro. Sofia Canário é uma “Lisbeth Salander”, investigadora cyberpunk do clássico “The Girl with the Dragon Tattoo” do diretor David Fincher. Através de muito talento e pesquisa, é dela uma das produções visuais mais impactantes e bem construídas do ano no rap nacional!
Restando Giallo Point, que desenhou inicialmente as trilhas e pistas sob as quais os três acima iriam desenhar poesias, flows, imagens. É de certo modo o cinegrafista que coloca o storyboard para ganhar movimento. Internacionalmente conhecido por trabalhos ao redor do que de melhor se faz no boombap atual, a collab com Galf AC, é um marco para o rap baiano e nacional!
O trabalho de Giallo Point aqui nesse cenário, é exatamente o de oferecer os tons, o clima, as indicações, de um crime perfeito, para o ouvinte atento. Enquanto o beatmaker responsável pela produção de TRAVÖ, Giallo Point voluntária ou involuntariamente colaborou com o seu primeiro nome – em forma de beats – para que musicalmente, poeticamente e visualmente o trabalho caminhasse rumo ao gênero cinematográfico e literário ao qual denota: O Giallo!
Para quem não está ambientado, o Giallo é um gênero literário e cinematográfico que aborda em ritmo de suspense e drama policial, filmes e livros que tratam de assassinos em série. E a Bahia, “oh Triste Bahia que segue desemelhante”, possui uma larga tradição nesse contexto, com um Estado que secularmente executa milhares de jovens negros initerruptamente todos os anos, inclusive “contraditoriamente e mais eficientemente quando possui um governador de esquerda.
Adequação do roteiro, Ennio Morricone era menino!
Para além dos clássicos de faroeste, Galf AC produz ao longo das cinco faixas que compõem o trabalho, uma “longa” reflexão sobre o contexto de extermínio e de insanidade ética e política em que estamos metidos. Mas do que propor uma treta que será resolvida com balas, as linhas cirúrgicas do MC – um dos melhores do Brasil – investigam com olhar apurado diversas facetas do que nos leva ao estado de coisas que vivemos. Testemunhar o inferno das ruas, não é o suficiente para conseguir diagnosticá-lo com sutileza e exatidão. E nesse contexto que talvez possamos primeiramente apreender o TRAVÖ.
Dando prosseguimento ao seu inverno – aqui no Oganpazan resenhado com o BPVB part.1 (2021) – o MC da Belamita cospe numa variação de flows muito própria uma sequência de linhas que martelarão o seu cérebro. A chave é o boombap sujo underground, mas a assinatura está longe de ser genérica, são legítimos raps feitos pelo senhor de aspecto cordial, mas que nunca cessou de riscar o GALF, na ilegalidade. O riso do detetive noir das noites do Uruguai, emerge do asfalto como o verme de LVC por toda a cidade, por todo o país, quiçá na terra da Rainha!
Obras como TRAVÖ (2021) carregam o signo de nascerem e terem que enfrentar uma perspectiva onde a denúncia dos arrivismos, dos crimes, das covardias, são curiosamente também tidas como crimes. E é nesse sentido que a capa e a contracapa produzida pela Sofia Canário avisam de saída que você está diante daqueles que botam o gosto ruim no coro dos contentes. Uma programação visual presentifica visualmente o corte profundo na língua dos que não tem apreço pela linguagem, dos que não cultivam a ética do silêncio, sendo apenas meros repetidores, ventríloquos ou papagaios de pirata.
Cabeças não, línguas Cortadas, o rap baiano amargo!
Fazendo um rap contemporâneo, como Glauber fez o cinema novo, Galf AC ancora o seu trabalho todo em uma narrativa onde o político e o individual caminham para um escurecimento do ethos ao mesmo tempo em que compreende o jogo sujo do mercado. A faixa “Detenção sem Muros” caminha nessa linha tênue como a lesma em cima da navalha, com a mesma destinação: “no culto soberbo a carga é pesada, rap sujo e a rua não aceita falha!”. Os samples inseridos por Giallo nessa faixa fazem às vezes de trilha jazzística para o esforço dessa caminhada.
O brilhantismo de perceber o feeling à distância, fez com que em “Fast Food Cadaverous” a faixa comece com um: OK, OK, Eu dirijo enquanto você atira! Gil Daltro e Galf AC aqui agem como a dupla anticapitalista que não deixa nenhum dos valores meritocratas, genocidas fascistas e irrefletidos em seu caminho. A faixa é curtinha com um bom e velho hardcore, mas com uma cadência hipnótica que somente o melhor boombap é capaz.
Um preto que encontrou o auto respeito e cuidado, que se entende como um homem, como um ator, é capaz de brilhar no palco da vida e da arte para além dos holofotes, e é sempre uma alegria e uma potência dificilmente equiparada. “Esses são os mais perigosos”. A não menos sombria “Cúpula Sagrada” caminha nessa trilha, nessas pistas já incorporadas ao caso, Galf AC como um investigador noir que vai encavalando uma série de cenas e ideias num flow amoral: “Não adianta contestar conhecimento, condenações humanas só provam o quanto o mundo é pequeno.”. As imagens poéticas dessa faixa conseguem a proeza de fechar um crime com brilhantismo, esquartejando quaisquer sinais de moralismo, de individualismo hipócrita, num coletivismo revolucionário!
O desapego e a elevação espiritual não são compatíveis com a noção de enriquecimento que os defensores do capitalismo obstinadamente defendem num mix incerto entre coletivismo e individualismo, que não encontra âncora na realidade. Obviamente, artistas e quaisquer trabalhadores produzem para receber a dignidade que sua luta demanda. Em “True Life” a volta da dupla Gil Daltro e Galf AC, versam sobre a firmeza que possuem nessa luta, enquanto guerreiam e apontam um norte, uma fuga do cativeiro, para fora da cidade bombardeada – Guernica – a linha que busca a união – palavra gasta – diante dos tropeços a que todos estão sujeitos.
O produtor Giallo Point nessa faixa faz uma cama sem beat que carrega candura, leveza e sobretudo, encerra o trabalho com a possibilidade de pensarmos estratégias para vivermos coletivamente esse genocidio em voga. Uma “escravidão” chamado de trabalho, que segue rumando aos níveis mais absurdos de uma distopia. O jogo é perverso e não desistir é pra poucos, mas alguns poucos se mantém ou conquistam a possibilidade de acreditar na vida, no possível dela! True Life…
A quebra do Ciclo Vicioso
A versatilidade linguística de Galf AC é pouco vista no rap nacional, da mesma forma que sua qualidade técnica e escolha de temáticas musicais. A faixa que abre o EP TRAVÖ (2021) é talvez das músicas mais firmes – não melhor – que esse MC já produziu. A ideia de quebrar o “Ciclo Vicioso” é também a ideia de produzir uma diferença fundamental dentro de um sistema que sempre nos impele à reprodução de padrões. Padrões estes que o próprio Galf AC vem rompendo dia a dia ao longo de décadas, ao produzir uma chuva de material em alto nível, desde os fonogramas até às camisas de seus projetos.
A libertação de um ódio reativo é sempre salutar, quando transformado em linhas como essas, contra o racismo, o genocidio, a mediocridade, contra os reacionários de última e primeira hora. “Viver pra ver o amanhecer”. Seguir na cultura marginal com uma postura altiva é pra poucos, manter-se nessa postura e elevá-la é para os escolhidos. O audiovisual da Mestre Produções registra isso: a amizade com Ravi, o sentar confortavelmente no banco de ônibus nos becos do favelão, mesmo quando se conseguiu um dos maiores produtores do mundo para fazer seus beats.
Rebeldia, humildade e agressividade nas linhas, ideias bem formuladas e flow matador, é esse o gosto amargo, aquilo que não quer e por muitos não pode ser dito, produzido, desenhado, mixado, filmado. O que Galf AC produz em seu EP TRAVÖ é aquilo que não é hegemônico, felizinho e motivador, aquilo que não vira dancinha no tik-tok, aquilo que não é o sonho de viver a vida dos opressores. Está certamente para além de meras palavras em um texto, é um vida, que se ergue em toda glória de que sempre foi capaz, com trabalho coletivo, com parcerias, com o “Juntar o pouquinho que tinha pra somar nessa jornada”, que é de todos nós.
Galf AC e Giallo Point, junto com Gil Daltro e Sofia Canário, Cremenow Studios e Mestre Produções, cometeram um crime inafiançável, imperdoável e imperdível, algo que não pode ser preso pois viverá para sempre na eternidade! Parabéns aos envolvidos…
-TRAVÖ (2021), Galf AC & Giallo Point collab internacional do amargo!
Por Danilo Cruz