Proliferação e Dead Easy, bandas seminais do rock baiano, tem material lançado pelos selos independentes Tocaia e Bigbross Records.
Preâmbulo necessário: A importância de preservar nossa memória cultural
Quando conheci Danilo Cruz o amálgama responsável por selar nossa amizade foi o interesse pela música. Este ia muito além da simples troca de ideias sobre as bandas e gêneros musicais pelos quais compartilhávamos interesse em comum. Amparava-se na curiosidade e desejo de conhecer cada vez mais sobre bandas, gêneros musicais, cenas, estilos, o que aos poucos foi nos colocando na condição de pesquisadores free style de música.
Claro, também quis ser amigo de Danilo pelo fato dele ter acesso á banda larga, o que em 2002 representava estar sentado sob uma fonte inesgotável sobre qualquer assunto. A internet se tornou a partir de então a nossa Serra Pelada. Durante nossas “escavações” acabamos esbarramos em uma imensa pepita de ouro, Alan Lomax.
Esse cara está na minha galeria de heróis pessoais, de ídolos máximos, porque ele representa a preservação da memória cultural de um povo. E sabemos que ter registros de manifestações culturais nos ajudam a entender as características de um povo, seus costumes e sua realidade política e social.
Alan Lomax, munido de um gravador portátil de vinis, partiu para registrar a folk music pelo interior dos EUA e gravou cerca de 15.000 músicas que formaram o Arquivo de Música Folclórica Americana, parte do acervo da Biblioteca do Congresso estadunidense.
O contato com o material gravado pelo Alan Lomax, bem como conhecer a sua história e a preocupação dos EUA, desde os primórdios, em preservar sua memória histórica e cultural, colocou-nos uma questão permanente, posto que no Brasil não há a preocupação em fazer o mesmo com nossas manifestações culturais como política de estado.
Claro, temos Câmara Cascudo, Mário de Andrade, o próprio Villa Lobos, como figuras que vão na contramão, mas a bem da verdade, é que nunca houve uma política de estado preocupada em criar um acervo tal qual o existente na Biblioteca do Congresso dos EUA. Essas referências na preservação de nossa memória cultural fizeram seus registros partindo de seu interesse pessoal e profissional.
Pelo contrário, houve aqui tentativas de apagar os documentos que preservariam nossa memória histórica, tal qual feito por Rui Barbosa ao queimar os documentos expedidos ao longo da vigência da escravidão no Brasil, conforme nos informa Darcy Ribeiro em seu imprescindível O Povo Brasileiro.
Ou como fizeram os governos pós ditadura militar com o início do período batizado de Nova República, findado em 2016 com o golpe deflagrado sobre a presidenta Dilma Rousseff, que não criaram museus, datas comemorativas, produção audiovisual para lembrar às gerações nascidas a partir dos anos 80 do que representou para o país viver sob o jugo de governos autoritários ao longo de 20 anos. O resultado podemos constatar na realidade de contornos distópicos na qual vivemos atualmente.
Por isso mesmo, uma das linhas editoriais pétreas do Oganpazan é produzir conteúdos que sejam o registro do tempo no qual vivemos e que se tornem a memória do passado musical baiano, nordestino e brasileiro, nesta ordem.
Proliferação e Dead Easy: conhecendo mais o rock baiano dos anos 80
O anúncio do lançamento de material inédito das bandas Proliferação e Dead Easy em K7 através da parceria entre o selo underground Tocaia, sediado no Sul da Bahia, em Itabuna e pela Bigbross Records, cumpre esse papel de resgaste da memória musical baiana, uma vez que trazem ao público registros jamais lançados de duas bandas seminais para o fortalecimento e desenvolvimento da cena underground baiana.
Conversei com o produtor Rogério Bigbross (Bigbross Records), que juntamente com Jone Luz (Tocaia Selo), foi responsável pelo projeto que trouxe os registros à luz:
“Só pra você ter ideia da importância histórica dessas bandas … o Eduardo Tadeu, que fundou a Proliferação, também fundou a Dever de Classe, isso antes da Proliferação. Tanto que ambas as bandas são de 1984.
A Dead Easy … muita gente fala da importância que a Úteros Em Fúria teve uma importância para a Casca Dura e pra Dead Billies … praquela renovação do rock nos anos 90, mas a Úteros Em Fúria deve isso à Dead Easy, porque foi a galera da Dead Easy que fez os caras da Úteros em Fúria querer formar uma banda. E a Dead Easy é uma banda seminal e importante tanto quando a Zona Abissal e Crânio Metálico para o metal baiano. Além disso foi a primeira banda a desnvolver uma mentalidade profissional, junto com a Zona Abissal, a querer gravar um álbum, a sair da Bahia pra tentar alcançar algo maior. Portanto, são duas bandas importantes sendo resgatadas”.
Bigbross usa o termo correto, resgaste! O trabalho feito para lançar ambos os materiais resgata parte da memória de dois gêneros musicais, que representam a força da cena undergound baiana em geral, e as cenas punk/hardcore e metal em particular. Sem falar que acrescentam mais duas peças no quebra cabeça que nos ajuda a entender o rock baiano na transição dos anos 80 para os 90.
Para fortalecer ainda a remissão aos anos 80 os caras lançaram ambos os materiais em formato K7, trazendo uma memória material daquela década marcante para muitas gerações.
Aliás sobre o lançamento nesse formato e a importância do resgaste histórico dessas bandas para a preservação da memória do underground baiano, Jone Luiz nos fala o seguinte:
“Muito importante para o Tocaia esse lançamento em k7 das bandas Dead Easy e Proliferação em a parceria com a BigBross Records. Dois registros histórico que ficaram guardados por muito tempo, digamos um tesouro que foi encontrado e compartilhado para todos que acompanha o Underground da Bahia.
A magia do K7 e incrível, vintage! O Som analógico além de ser um som incrível, nos remete a um tempo da valorização da mídia física, ou seja, dá o play e deixar rolar o som até o final do álbum. Esse registro em tape merecidamente, pela grande contribuição de ambas as bandas. Ambos os álbuns também disponível em na plataforma digital: tocaiaselo.com”
Proliferação
Há muito que São Paulo e Rio de Janeiro consolidaram a ideia de que para se fazer sucesso comercialmente era preciso estar no eixo estabelecido entre estas cidades. O juízo ingênuo estabelecido com a popularização do acesso à internet banda larga, de que seria estabelecida uma quebra dessa hegemonia, mostrou ser apenas outra romantização acerca do acesso à informação.
Ainda é necessário ir para o eixo Rio-São Paulo para ter reconhecimento artístico e comercial em âmbito nacional. Se hoje as coisas estão assim hoje imaginem nos anos 80. Naquele momento algo só era considerado um acontecimento se estivesse entre as fronteiras desse polo econômico e político.
Por isso mesmo, o movimento punk, dentre tantos outros, deram a impressão de terem surgido exclusivamente em São Paulo e só muitos anos depois transmitido para outras regiões do país. Existe muito de factual nessa tese, mas há também uma super valorização gerada pela concentração do poder político e econômico do país em São Paulo.
Contudo outras regiões do Brasil tinham suas cenas underground sendo construídas a partir do surgimento de bandas de gêneros distintos, dentre eles o punk . A Proliferação, banda punk soterolpolitana, pioneira do estilo na capital baiana, surgiu em 1984, ou seja, muito próximo do surgimento das primeiras bandas punk em São Paulo.
Embora tivesse na sonoridade cru do punk rock sua coluna dorsal, buscava em elementos de estilos como o reggae e o hardrock, matérias primas para incrementarem seu som, o que lhes garantiu uma identidade particular na cena soteropolitana. A banda jamais encerrou suas atividades oficialmente, por isso mesmo contou com formações as mais diversas. O artista plástico Eduardo Tadeu, falecido em 1994, foi a pedra angular sob a qual a banda construiu o alicerce que a mantém firme há quase 40 anos. A estrutura balança, mas não cai.
Sobre essa característica da banda o produtor Rogério Bigbross comentou o seguinte:
“A Proliferação nunca parou suas atividades oficialmente, inclusive a banda participou do Quanto Valeu Um Show que ocorria no Irish Pub, no Rio Vermelho, volta e meia reaparecem, assim como a Dever de Classe fez um show em 2020, antes da pandemia, no Mercadão CC”.
Ainda segundo Bigbross, o material da Proliferação que chega ao público mais de 30 anos após seu registro, feito durante o show da banda na Escola de Belas Artes da UFBA (Universidade Federal da Bahia) em 1988, estava na casa de um amigo que tinha em comum com a banda e que havia gravado o show segurando um gravador portátil em frente ao palco enquanto o pau quebrava em cima deste.
O registro foi batizado como E o Ar Continua Insuportável, mostrando o som cru e direto da banda, que nos dá uma dimensão do que eram esses jovens punks ao vivo na virada da década de 80 para 90. Sem dúvida a Tocaia Selo e Prod. juntamente com a Trinca de Selos nos oferecem mais do que um álbum de uma importante banda punk baiana dos anos 80. Trata-se de uma peça fundamental para entendermos a história do rock baiano em geral e da cena punk/undergound em particular do nosso estado.
Das 8 faixas 6 são de Eduardo Tadeu e Henrique Simões, exceto Perseguição que é de Eduardo Tadeu e Ricardo Trindade e Coletivo, a autoria é de Henrique Simões e Enildon Pinheiro.
Formação da Proliferação nesse registro:
Eduardo Tadeu(Dudu) Vocal
Henrique Simões(Kiko) Baixo
Ricardo Trindade Guitarra
Wellington Bastos (Pattus) Bateria
O lançamento pode ser ouvido clicando neste link, disponível na plataforma de streaming da Tocaia.
Setlist do álbum:
1 Coletivo
2 Jornais
3 Atual conjuntura
4 Garotos do Brasil
5 Dinheiro
6 Perseguição
7 Exterminio
8 Lama
9 Hodierna
Dead Easy
O cenário musical dos anos anos oitenta foi marcado pelo desenvolvimento e consolidação das diferentes vertentes musicais que tiveram o heavy metal como seu principal agente influenciador. Nascia o conceito de metal extremo, sob o qual foram englobados uma série de sub gêneros do metal como o trash metal, o death metal, o black metal, pra ficar em alguns deles.
Os primeiros trabalhos de bandas baianas que se encaixavam na estética do metal extremo foram lançados na virada dos anos 80 para os anos 90. Mesmo período em que um power trio de hard rock despontava no cenário baiano, já aspirando voos mais por lugares mais distantes.
Vimos na fala do produtor Bigbross o destaque da importância da Dead Easy para o desenvolvimento do heavy metal baiano, tanto que a coloca ao lado da Zona Abissal e da Krânio Metálico quanto a esse ponto. Também se mostra importante a formação de uma mentalidade profissional, responsável por dar uma orientação comercial para a carreira da banda, o que deu à outras bandas da época muito o que pensar sobre seguir pelo caminho da profissionalização.
Por isso mesmo a banda decidiu apostar alto e fez as malas rumo ao Rio de Janeiro em 1992. O período carioca durou menos de dois anos, tempo suficiente para adquirir estofo ao longo de muitos shows realizados por lá. Retornaram a Salvador com muitas experiências e um álbum cheio gravado em 1993 lá mesmo no Rio. Contudo, o álbum nunca havia sido lançado.
O verbo haver está no passado porque o álbum está entre os materiais da Dead Easy lançados em K7 pelo selo Tocaia e a Trinca de Selos. O outro registro da banda é a fita demo gravada nos Estúdios WR em Salvador em 1991, pouco antes da banda fazer sua mudança temporária para o Rio de Janeiro. As fitinhas da demo eram vendidas pela banda durante os shows que faziam, mas nunca foi lançada oficialmente.
Pouco depois do retorno a Salvador a Deady Easy acabou, isso por volta de 1993. Embora não tenham feito retornos a partir de então, dois de seus componentes permaneceram trabalhando no seguimento musical. Jô Estrada foi guitarrista da Cascadura e mantêm uma carreira solo, enquanto Arthur Caria tem uma banda chamada suRRmenage, além de atuar como editor de vídeos.
A Dead Easy era composta por Arthur Caria (baixo), Jô Fonseca (guitarra e vocais, hoje mais conhecido como Jô Estrada) e Fernando “Bubu” Bueno (bateria).
O lançamento pode ser ouvido clicando neste link, disponível na plataforma de streaming da Tocaia.