Tiago Negão – Salvador é Kingston (2018) Disco lançado no final do ano passado, está pleno e pronto pra ser consumido pelos preto, pelos rua
Mea culpa, mea máxima culpa, era final de ano, eu sou um amador, e infelizmente deixei passar essa pedrada por fora do meu radar. Tiago Negão soltou seu primeiro disco solo, Salvador é Kingston (2018), exatamente no dia 20 de novembro, dia nacional da consciência negra, e realmente fez jus. Não só fez jus como segue fazendo na realidade, ao longo de mais de 15 anos de carreira. Sua militância não é sazonal e seu compromisso não segue apenas datas comemorativas.
Tiago Negão, que viveu sua caminhada entre a cidade baixa e a cidade alta de Salvador, mais especificamente entre Periperi e Cosme de Farias, já tem dois EP’s solos lançados, o excelente Depois do Temporal (2013) e Estilo Suburbano (2007). O rapper que começou no rap com Moreno (Nova Era) e Neizinho, no grupo Milicianos, faz parte atualmente do grupo Fraternidade Maus Elementos, que no presente momento está de férias.
E é nesse hiato que Salvador é Kingston (2018) foi pensado, e chegou sem nenhum alarde na cena, passou batido por muitos que dizem militar pelo rap e pelos pretos. Mas que muitas vezes, curte mesmo é o oba oba e o hype, aquilo que está no “topo” das mesmas mídias que inviabilizam e invisibilizam centenas de outros artistas negrxs.
O lance é que, como cantado no seu segundo EP:
“O oportunista não roubará a brisa, honrarei o time enquanto vestir a camisa.”
Depois do Temporal (2013) – que tem toda cara de disco – contando com 11 faixas de real conhecimento da negritude, muito flow e com as batidas sempre no ritmo de um boombap inventivo, cheio de samples da nossa cultura black, é uma boa introdução para a caminhada do Negão.
Em seu primeiro disco o procedimento operado por Tiago Negão não difere muito do que ele vem fazendo há anos. Em tempos onde qualquer novidade se transforma em algo instantaneamente curtível, o rapper baiano, mantém uma e a mesma linha de atuação, poesia crítica, levada clássica e muita atitude.
Tudo isso plenamente alimentado por uma militância que transmite muitas referências para uma negritude realmente consciente de sua história e de seus exemplos. As referências estão todas lá, as clássicas já deglutidas por uma vida onde teoria e atidude, conhecimento e postura não se separam. Musicalmente, o disco traz um frescor que não se rende a moda, buscando em produções de primeira, comunicar com novas sonoridades sem ceder ao que funciona no hype.
Nas produções assim como na lírica, o peso é lei, com três cabeças caras do rap e dos beats, ou dito melhor, três mestres da rima e dos beats, daqueles que produzem e metem flow sem miseria. Calibre MC que é o verdadeiro precurssor do Trap Pagodão, mete uns beats venenosos com aquela percussa do pagodão arrastado mesclado ao trap.
Yuri Loppo, que é outro mano de extrema importância para o ecossistema do hip hop de Salvador, e que vem mandando produções instigantes em seu trabalho solo, colabora também com beat de Trap. Já Diego 157, outro mestre das produções locais, parceiro de Tiago na F.M.E. (Fraternidade Maus Elementos), não só produz aqui, como rima.
Desde a introdução, as ideias são sempre agravantes, com uma fala extremamente pertinente do grande Lazzo Matumbi, onde o mesmo, chama atenção – entre outros apontamentos – para como nosso povo vira muitas vezes as costas, para os reais talentos da cidade. Ainda nas falas colocadas como interlúdios, Makota Valdina comparece na oitava faixa, chamando atenção para o racismo estrutural e o sofrimento dispensado e initerrupto com as mulheres negras.
Reflexão política, racial e interterritorial de uma história da diáspora que tem seus signos nas faixas “Babylon Down” e no single “Salvador é Kingston” que recebeu um bonito clipe, com direção do Ramiro AX. Numa aproximação que se ancora também na música reggae que em Salvador foi elemento de formação cultural importante, e que o rapper incorpora e explicita nas referências ao Olodum, ao Ilê Ayê.
Em seu disco de estreia, ao longo de 30 e poucos minutos, o rapper consegue produzir um álbum de rap que pensa o passado e o presente da música soteropolitana preta e popular. Isso é escurecido com bastante força nas faixas que aproximam-se do reggae (como colocamos acima) e nas que dialogam com o trapagodão.
Nas faixas “No Limite do Limite” e em “Pra Que Veio?” outra com participação do parceiro Diego 157, dois trapagodões sinistramente gangueiros, cortesia do Calibre Mc, questionam muito bem e com propriedade quem tá no meio do bang. No meio da música negra, da militância, do hip hop, suavizando as formas e a mensagem pra agradar opressores, mas na pipoca do pagodão arrastado não cola.
Em sua “Caminhada”, com participação do mestre Dj Jarron nos scratchs, as ideias e o flow encontram nos riscos do dj o final perfeito. Ao chamar a intervenção de Edson Gomes: “Vamos amigo lute/Pra gente não acabar perdendo tudo” – muito pouco – que a cultura hip hop conquistou, uma forma de expressão, de reinvindicação, de solidariedade, de conquistas sociais.
Mas obviamente, o final não é o fim, não pra Tiago Negão que certamente continuará amolando sua espada com as tragédias a que somos submetidos, sem baixar a cabeça jamais.
Ouça e principalmente escute: