A nova série da Amazon: Them (2021) vem suscitando diversos debates na internet sobre uma possível exploração das dores negras
A estreia de Them (2021), nova série da Amazon tem recebido críticas pesadas na recepção crítica de boa parte dos pensadores negros e do público de modo geral, por supostamente não ser nada mais que um espetáculo pornográfico explorando as dores da população negra em um show de sadismo. Os recentes textos saídos nos sites Variety, Vulture entre outros sites importantes, geralmente giram em torno de uma recepção confusa sobre o que é o gênero do terror no cinema, tomando como parâmetro filmes e diretores já bem absorvidos. E nesse sentido, muitas vezes recaem numa recusa pueril do que Little Marvin nos apresenta em sua série.
Recorrer a Jordan Peele como um cânone sagrado sobre o qual todas as produções que se voltarem ao terror devem “bater cabeça” é uma bobagem e uma contradição flagrante com a ideia de cânone, sempre muito criticada por seu viés excludente. Dizer que a série capitaliza dentro de um modelo feito para espetacularizar a dor negra é no mínimo hipocrisia. Por esse raciocínio, absolutamente quase todas as produções dentro do cinema o fizeram, é desconhecer a indústria cultural e ou acreditar que a única forma válida de retratar as dores negro são as que possuem um final moralizante.
Jordan Peele é um diretor que já se consolidou pelos imensos sucessos de US e Get Out e possui um estilo próprio. Em termos de arte, ter um estilo é exatamente o que define a diferença entre um e outros autores. Little Marvin, nos parece possui um tom mais agressivo e intrincado, criando uma série que divide muito as opiniões não é uma experiência de fácil assimilação, por pintar o terror histórico/psicológico de Them com as cores vibrantes e assustadoras porém escondidas, do “sonho americano”.
Criada e produzida pela dupla Little Marin e Lena Waithe, Them (2012) foca nos dez primeiros dias em que uma família negra se muda para o bairro de East Compton vindos da Carolina do Norte, sul dos Estados Unidos. A tentativa é de fugir do racismo flagrante que torturou e desfigurou Emmett Till, um dos casos de violência racial de maior repercussão mundial da época. Na ficção é a fuga de uma violência grotesca sofrida pela família Emory por lá – que só será explicada no quinto episódio da série – o que dá início à trama.
Neste sentido, a série começa a se mostrar cada vez mais afiada ao nos introduzir numa história milimetricamente pensada para expor as diversas fraturas psicológicas e o encaminhamento para a loucura de que o racismo é capaz. Para isso utiliza-se de dois recursos: os fantasmas, a crueldade cotidiana, todos os dois frutos das diversas formas de violência sofridas por homens e mulheres negras naquele país. E ao contrário do que as críticas negativas tentam tocar, esses dois recursos são intercambiáveis e decorrem da menor ou maior possibilidade de violentar pessoas negras.
Os diversos interesses da branquitude americana são expostos com sutileza, especulação imobiliária, o trabalho da polícia encobrindo e mantendo em limite “aceitável” a violência contra os Emorys, a hierarquia social ao qual os negros estavam submetidos, estão por lá consolidando os fantasmas. A pequenez, a corrupção, a impossibilidade de romper por eles próprios, padrões de comportamento – homossexualidade e machismo – é sempre sugeriod pelo roteiro e pela direção mas nunca escancaradas. O que não nos parece uma tentativa de encobrir ou preservar essas questões – uma vez que são mostradas – mas tanes, contrastar uma doença própria aos pressupostos da branquitude.
Ao mesmo tempo, temos os Emorys, uma família harmoniosa, onde o carinho, a compreensão, o cuidado são exemplares. Os pais Henry, Lucky e as meninas Gracie e Ruby transbordam competência, honestidade, humanidade e beleza. Um contraste absoluto com todas as outras famílias brancas de East Compton. Esse recurso narrativo se prolonga no terror psicológico sofrido por todos eles, abrindo uma ferida no coração de todos eles – como dito por um personagem ao longo da série – criando a tensão que prende o espectador até o final. Aqui a questão que se coloca é: Conseguirão os Emorys resistir aos fantasmas e a crueldade crescente dentro do bairro? Este nos parece é o ponto onde se confunde o Terror proposto pela série e a crítica frágil de que a série seria pesada demais, pornográfica até.
Todos os personagens da família Emory se digladiam com os ataques racistas ao longo dos episódios e ao mesmo tempo com os fantasmas criados por eles (a crueldade racista) até a sequência final onde os fantasmas e a crueldade palpável se encontram. Ora, negar o encadeamento dramático do roteiro e a complexidade dos problemas enfrentados pelos personagens é no mínimo desonesto. E é bom que se diga, tudo isso com uma fotografia e com uma direção que certamente rompe com os elementos mais contidos do cinema de Jordan Peele. Não há nenhum traço de imitação, podemos inclusive comparar com a série “The Lovecraft Country” mas apenas para constatar a diferença do terror dos dois.
Enquanto um apela para o terror racial “cósmico” subvertendo a obra do autor americano H.P. Lovecraft, o outro parte para um realismo terrorífico ou para um terror histórico, nos mostrando objetivamente os resultados das violências extremas, da história e das políticas racistas em empresas, no país e em instituições, tudo temperado com a ignorância religiosa, com o racismo de todo dia.
Desde o primeiro episódio até o último, a série preza por um refinamento fotográfico, um ritmo que elabora humanizando as as dores, as reações e posturas da assim como o encadeamento do roteiro. E isso é demonstrado com riqueza de detalhes nas abordagens dentro da empresa de Henry, das vivências de Lucky no dia a dia de um bairro racista eivado de brancos, de Gracie que desde de pequenina tem a Mrs. Verá como espelho contra a prevalência de sua mãe, um modelo literário para o que deveria ser uma professora. E por fim mas não menos importante Ruby que tem seus demônios explorados através de uma menina branca que revela um desejo inconsciente de ser branca e “linda”, assim podendo ser aceita entre os outros estudantes brancos.
O fato incontestável é que as dores negras são explicitadas de modo flagrante e para alguns insuportável, enquanto que os problemas brancos dos racistas não são evidenciados. É possível ver na internet diversos comentários acusando a série de racista por esses motivos, por não fazer as dores negras encontrarem superação, em um final que seria tido como resolutivo. É possível ver comentários que qualificam-o como mera citação dos problemas brancos como uma forma de encobrir e selecionar quais dores deveriam ser exploradas.
Ora, Betty Wendell o rosto flagrante do racismo é levado até o extremo e é muito bem desenhado ao longo dos episódios. Mulher branca e esposa de um homossexual enrustido, abusada pelo pai e renegada pela mãe, o seu “bonito rosto” e sua postura cada vez mais radical encontra um fim trágico com o leiteiro (ate então objeto de desejo das outras mulheres brancas do bairro). Little Marvin consegue dessa forma, não gerar empatia que justifique a extremidade das ações da personagem, ao mesmo tempo em que mostra o vazio de sua vida e o quanto sua subjetividade é um esgoto consevador, elitista, racista, machista, uma mulher podre por dentro.
O macrocosmos dessa situação e o antecedente histórico disso tudo é certamente a comunidade de Eidollon, cidadezinha construída por uma comunidade religiosa que demonstra com “clareza” de detalhes o quanto o cristianismo é parte fundamental dessa trama, até inclusive a concepção metafísica, utilizada no roteiro como base dos fantasmas. No penúltimo episódio descobrimos que o velho do chapéu que atormentava Lucky, assim como já tinha feito com os Beaumont é um cristão que tinha fechado acordo com um demônio para sobreviver a morte. Ora, uma alusão muito bacana e sutil a mudanças sociais que deveriam ser implementadas com o tempo, onde estruturas morrem para outras novas vigorarem.
Acusar a série de ponográfica ou de ter cenas desnecessárias é falar pouco ou falar demais, é muito na medida em que sabemos que a série não objetifica corpos negros, pelo contrário mostrando as relações de alteridade com Eles, os brancos. Se essas relações são reativas, isso se justifica exatamente pelo desamparo institucional de quem compra uma casa sem saber as implicações e é fixado por um contrato draconiano. Da mesma sorte, cenas desnecessárias implicam em algo que possui uma visão de conjunto antes da trama terminar, o que é literalmente impossível, ou está se apegando a própria fragilidade de sua sensibilidade Dito isso vamos para o episódio que mais sensibilizou de modo errôneo a audiência.
No episódio que divide a série em duas, o episódio cinco, somos apresentados ao contexto sobre o qual a “louca” até então era enquadrada. Lucky foi vitima de estupro e ad ser violentada vê seu filho ser colocado numa fronha branca e ser jogado de um lado pro outro numa “brincadeira” chamada cat in the bag, até a mote. Sem dúvida a cena mais brutal da série mas, obviamente justificada pelo teor ao qual a mesma se propõe. Essa cena tem sido usada para através de um procedimento desleal desvalorizar toda a série e ou o trabalho e a própria pessoa do Little Marvin, acusando-os de exploitation racial e nesse caso Blaxploitation.
É preciso que se tenha em mente o que é o gênero do terror, sobretudo para que não confundamos uma narrativa que apresenta diversos elementos fantasmagóricos provindos de uma estrutura racista como exploração de dores raciais. A história do racismo é um sistema complexo que incide sobre diversas estruturas da existência e assume de cada vez formas diferentes. Henry, um homem negro que lutou na segunda guerra mundial e que foi exposto a testes com armas químicas, em sua volta a patria é incluído nos programas sociais que o levaram a se torna engenheiro com formação universitária.
A sua tentativa de adequação ao establishment o coloca na iminência de se ver como colaboracionista, como alguém que é responsável por parte do sistema que o vitima. E isso é exposto pelo menestrel, um personagem que instiga o Henry sempre a se manifestar como um animal, como alguém impossibilitado de reagir civilizadamente ao racismo, e sobre tudo como alguém que sabe que as instituições profissionais não conseguem dar conta das violências que o açoitam. Até que o Henry limpa o rosto do menestrel e se dissocia dele, lhe dizendo: Você nunca vai ser Eu! Uma das muitas cenas de impacto muito positivo como resultado da trama, a superação de um estereótipo provindo do racismo da branquitutde que tenta sempre animalizar homens negros..
Se existem problemas na recepção da série, isso certamente não é culpa dela, restando-lhe a única saída possível que é alertar a audiência para o que vem a seguir. Mas o curioso é que a série tenha conseguido receber a alcunha de racista, machista, apenas por apresentar violências que são cotidianas até hoje. Claudia arrastada pela viatura, Amarildo sumido pela polícia do Rio, menino Joel morto com um tiro dentro do seu quarto, Davi Fiúza que até hoje não teve o seu corpo entregue à família. George Floyd e sua emissão final : “I Can’t Breath” (Não consigo respirar), é sério que a exploração da dor negra apareceu de modo pornográfico com Them?
Restringir o campo da arte aos bons modos de não repetir a palavra nigger em um texto só me parece uma coisa: hipocricisa ou descolamento da realidade! Os EUA são o país onde a branquitude se comprazia de produzir postais para os seus familiares com imagens de corpos linchados, enforcados e carbonizados. Assim como ossos de homens negros executados em praça pública serviram de souvenir em lojas. É o país onde bebês negros serviam de iscas para jacaré, onde 4 menininhas negras foram explodidas numa igreja. A realidade sempre supera a ficção.
É fato, que o racismo provoca dores e provoca uma sensibilidade que muitos homens e mulheres negras não conseguem racionalizar sozinhos. Mas a arte possui também esse papel, pois ela não serve apenas para massagear o nosso ego com falsas esperanças em dramas onde o herói vence no final Há muitas vezes, uma espécie de síndrome de “Em Busca da Felicidade” em alguns espectadores que parecem viver num cinemão onde todo preto será Django Freeman (filme onde tem cenas extremamente cruéis) e onde as mulheres pretas serão sempre Beyoncé, a brilhar rica e linda!
A série Them é uma iniciativa estética de terror, resta-nos estarmos preparados para enfrentar o exposto e sermos capazes de racionalizar o que foi proposto. Podemos também optar por nos preservarmos e não assistirmos, se não estamos preparados, se não possuimos condições para ver cenas de TERROR. Neste sentido, a mera atribuição da alcunha de pornográfico é simples ataque vazio, pois como exposto acima, a uma complexidade muito maior apresentada pela série em termos históricos, psicológicos e sociais.
As cenas de violência em “Them” não são nada de novo em seu impacto constrangedor, nem no terror, nem em filmes que se propoem em ser dramas ou aventuras, baseados em fatos reais ou não. Basta se remeter a persongaem de Lupita Nyongo em “12 Anos de Escravidão”, a cena em que D’Artagnan é morto devorado por cachorros em Django ou mesmo as cenas do navio negreiro em Amistad. Restaria avaliar como o juízo estético é nesses casos acima suspendido por um caminho “redentor” dos persongaens principais, enquanto que em Them, a repulsa parece generalizada!
A grande diferença aqui, nos parece que está presente no fato de que ao final e ao cabo da série, Little Marvin não apresenta nenhuma solução mirabolante, senão uma família preta que resistiu e terá que continuar resistindo às investidas das mais diversas no repertório do racismo. E nesse sentido não conseguimos atribuir nenhum niilismo a obra, senão nos impulsionar a lutar contras as estruturas racistas e entender que essa é uma luta de todos os dias. Finalmente, podemos perceber que a maior parte das críticas feitas pelo público e pela crítica negra provém da mesma sensibilidade adoecida pelo racismo que Them elabora tão bem.
-Them (2021) e a exploração das dores negras!
Por Danilo Cruz