A maior série de todos os tempos, The Wire, é um estudo aprofundado sobre a decadência dos pressupostos da guerras às drogas!
“Mais do que dinheiro, do que fé, do que fama, do que justiça, deem-me a verdade!” Henry David Thoreau
Se a vida em sociedade na contemporaneidade nos impõe jogar um jogo, precisamos tal como Omar Little estarmos atentos às verdadeiras regras do jogo. Dentro da experiência de ser um homem negro na periferia de Baltimore, Omar se constrói como alguém que é uma espécie de coringa do baralho, ele não serve nem ao estado e nem ao tráfico de drogas. Mantém-se como um lobo solitário, por vezes com alguns aliados ocasionais, mas roubando sempre dos traficantes e desprezando as regras da lei. Dentro da experiência de exclusão de oportunidades e de se firmar como um traficante Omar “empreende” um jogo próprio, só seu.
Um dos grandes personagens de The Wire, ele nos serve para que possamos pensar todos os outros, partindo do único ponto de vista fundamental abordado pela série: a falência da guerra às drogas. Assim, e penso que somente assim, conseguimos não moralizar os personagens e a trama percebendo o intrincado jogo de percepção dos problemas políticos e sociais proposto pelos criadores.
Hoje, muitas vezes assistimos a séries como passatempos, extensões melhor acabadas de novelas que no Brasil cumprem a função de ser entretenimento, de melhor ou pior qualidade. Nas últimas décadas, as séries televisivas têm alcançado um sucesso de crítica e público avassalador, se aprimorando em contar histórias das mais diversas, mesclando diversos gêneros cinematográficos e produzindo cada vez com maior aporte financeiro. Assim como as nossas novelas, as séries possuem sempre a possibilidade de suscitar reflexões em nós, além de possuir a peculiaridade de acompanharmos o desenvolvimento dos personagens por uma extensão de tempo que nem o teatro e muito menos o cinema possui, algo que talvez apenas a literatura foi capaz de nos dar até hoje,
A série The Wire (2001) criada por David Simon é a melhor e mais bem acabada realização desse gênero de arte. Composta por cinco temporadas, a série tem como centro a cidade de Baltimore, capital do estado de Maryland nos EUA. Ali, somos apresentados à vida da cidade com uma espécie de caleidoscópio que vai do micro ao macro, ao longo de toda série. Dezenas de personagens, instituições e comunidades são roteirizados com uma excelência que nos faz muitas vezes perder o fio da ficção e ficar diante de um tratado sociológico em imagens e som.
Ao longo das últimas décadas dos anos 2000, o criador David Simon se tornou o maior criador de séries desse estilo, com um enfoque realista que consegue dramatizar dores e problemas sociais, abordando questões muitas vezes “aceitáveis” em nossa sociedade. Seja tratando da história da prostituição e do cinema pornô (THE DEUCE), da invasão do Iraque pelo exército americano (GENERATION KILL), da retomada da vida em Nova Orleans após o furacão Katrina (TREME) ou da vida de um vereador de Nova Jersey (SHOW ME A HERO), sempre e em todos os casos, David Simon produz uma crítica às mentiras que nos governam, às nossas mais caras hipocrisias. Sem moralismos, sem julgamentos e com uma sensibilidade capaz de nos fazer admirar a complexidade dos personagens independente de suas posições na trama, o criador consegue sempre produzir um painel amplo, complexo e intrincado daquilo que aborda.
Seu primeiro grande sucesso é fruto de uma imersão dentro das comunidades negras de Baltimore, fruto do trabalho de David Simon no jornal Baltimore Sun e da experiência do ex- detetive da homicídios Ed Burns. The Wire pode ser vista também como uma espécie de continuação da série OZ (HBO) e da minisérrie The Corner, porém apenas no sentido de que se volta para o mundo fora das grades, por também ser uma produção da HBO e por ter incorporado muitos atores desta em sua feitura! É importante ver The Corner, pois foi através do sucesso dela que a HBO resolveu apostar na feitura de The Wire. Além disso, também incorporou personagens reais da história de Baltimore em seu enredo, um processo que surpreende e acrescenta veracidade a tudo que é tratado ao longo da série.
O principal aspecto que nos chama atenção em The Wire é a questão da guerra às drogas, de certa forma esse é a “personagem” principal da série ao longo de suas 5 temporadas. E ao dramatizar a guerra às drogas, David Simon toca no ponto nevrálgico que possibilita todo o caos gerado nas comunidades negras. Retratada na série como essa mentira sobre a qual, concordemos ou não, se torna a responsável pelas estruturas sociais onde assentamos nossas vidas. A hipocrisia e a corrupção que é resultado direto do proibicionismo e que assumiu tanto lá como aqui, a missão de ser o vetor principal de extermínio e encarceramento de pessoas negras, se estabelece sobre as desigualdades raciais e sociais.
Para quem está acostumado com séries onde existem personagens principais, uma trama única e um desfecho que a encerra, The Wire espanta. Primeiro por não existir um ou mais personagens principais, muito menos uma trama única e o desfecho ficará em seu coração, sem a possibilidade de um fim, dado a forma como ainda encaramos a proibição e a guerra às drogas. Existem núcleos que persistem e são removidos ao longo das cinco temporadas, mas o herói inexiste aqui. É uma série que levanta problemas acerca da vida que vivemos em grandes e pequenas cidades, educação, segurança, política, judiciário e mídia, e o quanto todos esses aspectos estão condenados em maior ou menor escala à corrupção gerada pelo proibicionismo.
A Lei Seca, gerou um mercado consumidor cada vez mais sedento por bebidas, corrompeu agentes da lei, políticos que além de empreender alambiques gigantescos compravam bebidas no próprio capitólio. Empurrou uma fatia desesperada de imigrantes subalternizados e/ou que já possuíam certo ingresso no mundo dos crimes de baixa intensidade para se transformarem em gangsters. E por fim, gerou uma sociedade hipócrita que consumia, fabricava e comprava bebidas constantemente, trabalhadores, país de famílias e jovens que entendiam que beber era um direito seu.
O documentário demonstra com clareza os passos históricos para a construção da lei, através de uma visão moralista/religiosa, recheada de xenofobia, para o enfrentamento do alcoolismo que a certa altura do século 19 causava diversos problemas muito sérios por todo país. Um dado interessante é que a “impoluta” Ku Klux Klan era forte apoiadora da Lei Seca. Ao mesmo tempo, durante a lei seca os EUA eram os maiores importadores de coqueteleiras do mundo, isso nos dá uma ideia.
Vale a pena também ver um documentário chamado On The Bowery (1956) do diretor pouco conhecido em nosso país. Lionel Rogosin, que passeia pelos bares e ruas desse bairro nova-iorquino mostrando a degradação de seus alcoólatras. Um contraponto muito bom com toda a moralidade tornada lei no combate ao álcool, mas que logo arrefece quando se trataria, aí sim, de buscar atender esse público realmente doente e necessitando de cuidados.
Escutando a história, mas sobretudo assistindo The Wire vemos o mesmo processo repetido, porém com personagens diferentes dessa vez. Saem os imigrantes europeus e entram em cena jovens negros, que servem ao próposito de eugenia social e genocídio da juventude negra, por parte do EUA. Mortes e encarceramento em massa são os objetivos de uma das sociedades que são dos maiores consumidores de drogas do mundo, e ao mesmo tempo possui a maior população carcerária do mundo. É o que nós percebemos facilmente vendo as temporadas de The Wire, todo o esquema montado para tais objetivos que estão muito longe de se preocuparem com o bem comum ou o bem estar dos cidadãos.
Tomando esse emaranhado de questões a série expõe como é a mentira, a maior moeda de troca em todos os níveis sociais e políticos a que se refere. Se a droga é um problema social, acompanhamos ao longo das cinco temporadas as implicações desse problema e sobretudo como o dinheiro gerado por esse “falso problema” alimenta as instituições, incapazes ou impedidas de realmente agir contra os problemas.
A mensagem é clara, legalize-se as drogas e esses problemas sumirão, outros vão aparecer, afinal seres humanos crescidos não acreditam em passes de mágica e muito menos em proibições arbitrárias que tolhem a liberdade do indivíduo. Hoje sabemos que as drogas são um problema de saúde pública não de segurança, o que por óbvio uma vez encarado como tal implicaria proposições políticas para as principais questões em torno da vida social humana. Educação, emprego, moradia, ou dito mais diretamente: justiça e dignidade social.
Se as drogas são um problema político, e o são dentro da perspectiva de construção do bem comum, entender a droga como um problema da ordem da saúde pública implicaria em menos detenções, na obrigação de prover o que o estado deve ofertar a comunidades negras e pobres, em menos campanhas de terror contra os cidadãos. E no melhor dos mundos possíveis, a uma sociedade pronta para resolver seus problemas estruturais, sem precisar de negociatas que escondem as mentiras e os jogos de poder em cima do problema da violência gerada pelas drogas.
Nesse sentido, podemos perceber como há uma perspectiva de manutenção social de privilégios e poder na forma como a sociedade encara as decisões do Eestado na forma de tratar dos problemas das drogas, além de uma ignorância atroz produzida pelos meios oficiais. O documentarista, o cineasta Stanley Nelson, responsável por excelentes produções sobre a história e a experiência negra nos EUA, produziu recentemente o Crack: Cocaína, Corrupção e Conspiração (2021). O documentário aborda de modo direto a forma como o estado americano e suas instituições de segurança como a CIA e o FBI, propiciaram o surgimento do crack, ao injetar cocaína em profusão nos guetos americanos. Um filme necessário para cotejar os aspectos menos abordados sobre a política de drogas e a própria guerra às drogas no país que a criou.
A escuta necessária que The Wire nos recomenda, se faz sobretudo no aspecto técnico da polícia, no quanto é “fácil” entender crimes, resolvê-los e perceber suas implicações reais nos mais altos campos do governo dos homens: O ESTADO. E se você, meu querido leitor não entendeu, é porque não está escutando. A volta da legalização das bebidas alcoolicas nos EUA, não levou à desintegração daquele país, mas o próprio governo americano e suas instituições de segurança estavam atoladas no transporte das drogas por toda a década de 70 e 80 do século passado pelo menos, injetando heroína e cocaína e depois facilitando a geração “criativa” do crack nos guetos americanos.
A demonização das drogas sempre gera novas drogas, maior curiosidade fruto da necessidade de transgressão da juventude, a criação de mercados extremamente lucrativos para uma parcela da população marginalizada. Dizia o grande Zé Pequeno: “O Bagulho agora é tóxico, tráfico de drogas”, porém sabemos quem carrega 500 quilos de cocaína em helicóptero e não dá em nada, no recente caso do Helicoca! A cocaína vendida nos EUA nos anos 80 serviu para o Estado americano financiar sua política de interferência em países como a Nicarágua com o financiamento de um grupo paramilitar, “os Contras”. Ao mesmo tempo que propiciava o combate às drogas e a demonização da ASFARC na Colômbia, um movimento revolucionário.
Há milicianos ocupando cargos no poder hoje no Brasil, eles já não se satisfazem em receber as propinas do tráfico, mas assumem por sua própria conta os “negócios” e elegem legisladores. São aberrações surgidas dentro das polícias combatentes do tráfico de drogas, e adivinhem? São via de regra os primeiros a pregar a moralidade, a família, Deus como símbolos máximos para a vida humana e a correção dos atos. Nesse sentido, o Brasil é vanguarda mundial, afinal Pablo Escobar não conseguiu exercer sua carreira política, mas aqui milicianos a exercem com largo poder e não apenas no Rio de Janeiro.
Em The Wire somos apresentados a todos os estereótipos e a todos os arquétipos que se podem achar em uma cidade do mundo que esteja diante de uma história diaspórica africana. Baltimore é uma cidade de maioria negra nos EUA, com 65% da população negra e com bastante apelo político, nomeando diversos prefeitos e cargos importantes para a governança da cidade. Porém, ainda assim a corrupção apresentada na série afeta sobretudo a população negra, e muitas vezes provem de “atores” negros. Aqui nos cabe chamar a atenção a um aspecto pouco ressaltado quando se fala das drogas: O capitalismo.
O “mix” capitalismo e racismo é o binômio responsável pelo sucesso da guerra às drogas, e inclusive pelo seu afrouxamento com a liberação da maconha em diversos estados do EUA. O que nos leva à seguinte pergunta: se o álcool, o cigarro e a maconha já são entendidos como passíveis de legalização, por que não o crack, a cocaína e a heroína? Por que não todas as drogas? Se o argumento para não legalizar a maconha se dava exatamente pelo mito de que a maconha era a porta de entrada para drogas mais pesadas? E essa não fosse uma das maiores mentiras, nesse momento todos os países que liberaram a maconha estariam vivendo um Walking Dead das drogas.
Enfim, apenas algumas reflexões suscitadas e vá lá, bastante óbvias. Curiosamente esse texto foi escrito antes da notícia da morte do grande Michael K. Williams que faz o papel citado acima, Omar Little. Esse texto estava dormindo aqui, até que fomos assaltados por essa triste notícia. Sendo assim, fica aqui como uma homenagem, a esse homem, a esse ator, dançarino e jornalista que nos deixa tão cedo.
Descanse em honra! Como não poderia deixar de ser, a maior série de todos os tempos, não teria uma trilha sonora meia boca né? Então flagra essa playlist pesada, bem ao estilo Oganpazan, indo do rap ao rock, country, música pop e muito mais….
The Wire e a escuta necessária das mentiras da guerra às drogas!
Por Danilo Cruz