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Destaque, Macrocefalia Musical

O suspiro da palavra na poesia ancestral do The Last Poets

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Alguns shows vão além da performance e revelam como a arte alimenta. São momentos raros, mas acontecem e o show do The Last Poets – como encerramento do Festival Zunido 2023 – foi um desses momentos de iluminação. Assistir aos precursores do Spoken Poetry ao vivo foi absolutamente necessário e cativante. São 55 anos de história buscando o despertar de consciência coletivo.

Quando o SESC anunciou o line up do Festival Zunido, confesso que fiquei perplexo quando vi que o The Last Poets estava na programação de espetáculos. Não é exagero nenhum dizer que os membros do grupo são a vanguarda da resistência cultural negra desde a década de 1960.

É um legado que em 2023 completa 55 anos de carreira e que diz muito sobre a força e a importância histórica do grupo para as artes, pensando de maneira interdisciplinar, pois o trabalho do The Last Poets exige esse olhar holístico e essa visão que converge diversas veias artistas.

Digo isso, pois é possível perceber essas influências no trabalho do grupo de maneira clara, desde a fundação em 1968 – passando pelo primeiro disco do grupo (homônimo, lançado em 1970) – até o “Transcending Toxic Times”, lançado em 2019.

Foto: SESC SP/Equipe Festival Zunido

No disco de 1970 (lançado via Douglas Records), é possível observar o florescer de muitos elementos que hoje em dia são encontrados principalmente na cultura Hip-Hop. Trabalhando sempre à partir da poesia falada, o grupo amplifica o poder da palavra por meio da declamação e não seria exagero dizer que é dai que surge o flow.

Sabe aquele fluxo de ideias que o MC/Poeta propaga e deixa os ouvintes atentos com a fluência e a força do jogo de palavras, sempre aliado à estrutura ritmica e possibilidades literárias? Pois então, é esse conhecimento que o The Last Poets reverbera há 55 anos.

O coletivo possui um papel primordial no próprio desenvolvimento não só da chamada Spoken Poetry, mas também na aproximação da veia dramática que a Poesia proporciona por meio da interpretação, junto com a música. Essas conexões corroboram para criar uma teia musical para as ideias expostas. Não só isso, ao longo de toda essa história o The Last Poets complementou o trabalho poético com diferentes investidas criativas que cresceram e englobaram cada um dos projetos de estúdio do grupo.

Do som mais primitivo e tribal que começou ancorado na batida da percussão, o grupo chegou no Funk em “Delights Of The Garden” (1977) – que conta com o baterista norte americano Bernard Purdie na bateria, um dos maiores músicos de estúdio de todos os tempos, responsável por gravar LP’s fundamentais para a história da música preta. Em 1995 o trio de poetas lança “Holy Terror” e o groove influenciado pelo Soul e R&B se transmuta para o P-Funk do Parliament Funkadelic.

Arte: Abdul Mati Klarwein

O baixista Bootsy Collins e o vocalista do coletivo Funkeado (George Clinton) participam dessa gravação.  É notável perceber como o George Clinton foi influenciado por esse legado. Muitos dizem que foi o DJ jamaicano Kool Herc que começou o movimento Hip-Hop numa de suas famosas “Block Parties”, mas nomes como ele e Gil Scott-Heron surgiram depois e também devem muito ao The Last Poets.

Em 2019 eles chegam no Dub com o lançamento do disco “Understand What Dub Is”, que nada mais é do que uma versão jamaicana para o excelente “Understand What Black Is”, lançado em 2018. Esse disco conta com a luxuosa produção de Prince Fatty nos botões mágicos.

O Jazz também está presente nessa história, junto com a música africana que funciona como a força motriz, tanto dos discos, quanto nos shows. São diversas ramificações que fazem com que o grupo descubra novas maneiras de expressão, sempre inovando esteticamente.

Foto: SESC SP/Equipe Festival Zunido

Formado originalmente pelo trio de Poetas Gylan Kain, David Nelson (membro fundador) e Abiodun Oyewole, o The Last Poets foi formado no dia 19 de maio de 1968 (aniversário do Malcolm-X) no Parque Mount Morris, atualmente Parque Marcus Garvey. Ao longo dos anos diversos outros poetas passaram pelas diferentes configurações do grupo, como, por exemplo, o descendente de porto-riquenhos Felipe Luciano, Jalal Mansur Nuriddin, Umar Bin Hassan, Suliaman El-Hadi, Alafia Pudim (aka Lightnin’ Rod ou Jalaluddin Mansur) e o percurssionista Nilaja Obabi (Raymond “Mac” Hurrey).

Toda essa história foi admirada e absorvida pelo público do SESC Pompéia, unidade que recebeu todos os eventos da programação de shows do Festival Zunido que aconteceu entre os dias 09 e 19 de março de 2023.

O The Last Poets foi responsável pelo encerramento da primeira edição, com dois shows disputadíssimos, realizados no dia 18 e 19 de março. A atual formação da banda conta com os poetas Abiodun Oyewole, David Nelson e Sharrif Simmons, além do percussionista Baba Donn Babatunde.

Foto: SESC SP/Equipe Festival Zunido

Sharrif Simmons foi apresentado como novo membro do grupo. Com 30 anos de ativismo, o novo Last Poet fez a abertura do espetáculo – trabalhando solo em alguns números, como na impactante “The Gift” – e junto do percussionista Baba Donn Babatunde, o coração da batida, o pulso da banda desde 1991.

Esses shows também foram históricos, pois marcaram a primeira vez em 30 anos que dois membros originais do The Last Poets – Abiodun Oyewole e David Nelson – dividiram o mesmo palco.

Foto: SESC SP/Equipe Festival Zunido

Com o time completo, o quarteto fez um show potente e que enalteceu a sabedoria oral. Era possível perceber a preocupação da banda no sentido de não alienar sua audiência. A barreira do idioma existe, mas eles se fizeram claros perante a plateia e se esforçaram para estabelecer uma conexão que existiu e deu o tom para uma noite de fato memorável.

Abiodun disse que vai estudar Português para poder voltar aqui em 2024 com um poema escrito na língua de Antônio Carlos Jobim, mestre da música brasileira que o poeta tanto gosta. Durante o show de domingo, Abiodun comentou sobre sua paixão pela música do maestro carioca e até deu uma palinha de suas músicas preferidas. Quem esperava por essa?

Arte: Abdul Mati Klarwein

Com um set list que conseguiu contextualizar um pouco sobre a formação e a importância histórica do projeto – além de verdadeiras gemas do período áureo – foram relembrados ainda figuras chaves para a história e longevidade da força das palavras, como o poeta Felipe Luciano, por exemplo – interpretado, em espanhol, por David Nelson. Sharrif Simmons estava integrado aos outros números e mostrou sua luz própria também fazendo o acompanhamento em propostas como “Are You Ready”, “Soweto” e “For The Millions”, por exemplo. 

Musicalmente falando, o show conta com a percussão na base, enquanto os poetas declamam a sabedoria ancestral. Sharrif Simmons tocou violão em alguns momentos, mas o instrumento principal é a palavra. Sempre foi assim. E mesmo depois de 55 anos de história a força dessa palavra é impossível de ser medida com uma trena e é impressionante observar não só como esses assuntos abordados pelo The Last Poets seguem atuais, mas também como eles chegaram até 2023 com tanta vitalidade. 

O repertório dos poetas envelheceu muito bem, a única ressalva que se faz necessária nesse sentido é que temas como “Niggers Are Scared Of The Revolution” (clássico do primeiro disco do grupo), não foram interpretados. No segundo show até aconteceu uma rápido citação e logo após Obiodun já interviu, sugerindo que temas como esse não seriam reproduzidos, pois carregam o uso pejorativo da palavra “nigger”.

Escutar a voz de duas figuras tão importantes e realmente históricas foi uma experiência que eu honestamente jamais pensei que teria. Nunca achei que seria possível assistir o The Last Poets no Brasil, mas aconteceu e a curadoria do SESC merece menção honrosa quanto a diversidade da grade de programação do festival.

O The Last Poets cristaliza uma resistência que é digna do tamanho da revolução que esses poetas causaram não só na música, mas na própria mente das pessoas que escutam o conteúdo de gravações icônicas como “This Is Madness”, lançado em 1971. Sharrif Simmons deixou claro que estava ali em função da influência que o The Last teve em sua formação como artista. 

O The Last Poets está ecoando nas ranhuras do sample de nomes como NWA, Digable Planets, KMD, Madlib, Dr. Dre, Snoop Dogg e Kanye West, por exemplo. Agora de forma tangível, é possível dizer que as palavras ecoam também na mente das pessoas que estavam presentes nesses shows.

Ouvir “When The Revolution Comes” ao vivo foi um momento mágico. Entender o contexto histórico do grupo, a tensão da época que antecedeu e ajudou a fomentar a criação do The Last Poets foi bastante enriquecedor. A morte do Dr. King foi o estopim para a poesia revolucionária e o aniversário de Malcolm-X foi o palco perfeito para sacramentar o marco zero desse legado. Tudo isso estava sob o palco do SESC Pompéia. 

Como se não fosse o suficiente, o Oganpazan conseguiu entrevistar Abiodun Oyewole e esse diálogo está descrito logo abaixo. Quem esperava por mais essa?

Entrevista com Abiodun Oyewole

1) Abiodun, para começar, gostaria de agradecer pela música e pela oportunidade de discutir o som com você. Foi com muita alegria que recebi a notícia sobre a chance de presenciar o The Last Poets ao vivo. Achei que nunca teria a chance. Para começar, gostaria de perguntar sobre a fundação do grupo. A banda foi formada em 19 de maio de 1968, no Mount Morris Park, no Harlem, durante o aniversário de Malcolm X. Acho que este evento é muito simbólico e gostaria de perguntar o que significou para todos vocês, não apenas a oportunidade de ouvir e celebrar Malcolm, mas também a chance de ser ouvido com essa nova expressão que The Last Poets ajudou a moldar e que influenciou principalmente a linguagem Hip-Hop como conhecemos hoje.

Esse nosso primeiro momento poético foi especial. Fomos imediatamente abraçados ​​pelo público do Harlem. É como se pulássemos em um cavalo e nunca mais parássemos de cavalgar. Acho que nenhum de nós sabia o tamanho da nossa própria força até depois da apresentação.

2) O nome “The Last Poets” foi tirado de um poema do poeta revolucionário sul-africano Keorapetse Kgositsile, que acreditava estar na última era da poesia antes que as armas assumissem o controle. O trio de membros originais que utilizou esse nome era arquitetado por Abiodun Oyewole, Gylan Kain e David Nelson. Pensando nisso, gostaria de perguntar sobre os desafios que o grupo enfrentou – principalmente nos primeiros anos – para encontrar espaço para gravar aquela música para pequenas gravadoras, como a Charly Records, por exemplo.

Originalmente, nós não estávamos tentando fomentar o grupo para nos transformarmos em artistas e, enventualmente, gravar discos. Gylan Kain sentiu que a gravação nos colocaria no balde da sujeira capitalista. Nossa missão era ter um lugar na comunidade para nos tornarmos queridos pelas pessoas, oferecer oficinas e apresentações ao vivo.

Nosso loft era chamado de East Wind, onde tínhamos oficinas de escritores, oficinas políticas, teatrais e festas. A primeira gravação surgiu porque os sócios da nossa casa decidiram que deveríamos gravar.

Gylan Kain havia deixado o grupo, assim como David Nelson e Felipe Luciano. Alan Douglas tinha uma gravadora e estava muito ansioso. Eu não tinha experiência com isso na época, então substituí os poetas originais por Umar Bin Hassan e Jalial Nurridin, cujo nome era Alafia Pudim no primeiro álbum intitulado The Last Poets.

3) Abiodun, você gravou o álbum “Holy Terror” com The Last Poets nos anos 90. O disco conta com nomes como Bootsy Collins, Bernie Worrell e George Clinton. O que você pode falar sobre a ligação vital que os Last Poets estabeleceram com grupos do chamados “grooves coscientes” que coexistiram na mesma época que o grupo? Musicalmente é impossível comparar o som do The Last Poets com o suingue psych funky do Parliament-Funkadelic, mas é inegável que você os influenciou. O que você pode falar sobre isso?

Uma das minhas gravações favoritas produzidas por Bill Laswell. Foi uma alegria absoluta trabalhar com Bootsy, George Clinton Bernie Worwell e Melle Mel. Foi uma experiência emocionante que se traduz nas faixas.

O Funk é um som revolucionário vindo do centro-oeste. Eu nasci em Cincinnati, Ohio, então gravar o disco “Holy Terror” foi como retornar ao local onde nasci.

4) Abiodun, no disco “Holy Terror”, a capa é de Abdul Mati Klarwein e ele também fez a ilustração de “This Is Madness” de 1971. Você tem alguma lembrança dessas ilustrações? Você teve contato com o pintor alemão na época? Pergunto isso porque esses lançamentos em particular foram para gravadoras maiores (Douglas Records) e com certeza ajudaram a banda a expandir seu público. Você acha que isso aconteceu quando o grupo começou a adicionar mais elementos musicais?

O pintor alemão Abdul Mati Klarwein foi um grande artista. Ele definitivamente conseguiu captar visualmente o som e a mensagem de um álbum. Nunca penso em expandir o público. Eu sempre senti que você ouviria nosso trabalho, independente disso acontecer no ato do lançamento ou posteriormente. Nossos discos e ideias resistirão ao teste do tempo.

5) Fiz a pergunta número 4 porque para mim está claro como o grupo refinou a poesia e o que veio a ser conhecido como “flow”, antes de adicionar mais elementos musicais. O que você pode falar sobre a influência da improvisação do Jazz na poesia falada?

Jazz é poesia transformada em som. Eu uso o Jazz quando estou ensinando poesia. Normalmente os faço escutar alguma composição de jazz e então peço que escrevam o que eles pensam e sentem que o músico está dizendo.

6) Para mim é explícito o modo como o som do grupo cresceu, principalmente quando ouvi a “Jazzoetry” de 1976 – na qual você apareceu – e a gravação de 1977 da “Delights Of The Garden”, com o grande Bernard Purdie na bateria. Sei que você não apareceu nesse disco, mas em termos de referência, mostra como o som foi ficando cada vez maior, até chegar ao ponto do grupo lançar um disco com versões Dub. O que você pode falar sobre a forma como o som ajudou a complementar o conteúdo das letras e dos poemas?

Se a música for dramática o suficiente, a poesia pode complementar o som, independentemente do estilo de música. É isso também que nós tentamos mostrar, pois se você perceber, nossos discos apresentam diversas propostas estéticas diferentes ao longo dos anos.

7) Abiodun, mencionei as versões Reggae/Dub do “Understand What Black Is” de 2018, porque o Reggae, assim como utras ramificações da música afro-americana, tem uma ligação muito forte com os protestos e os grooves conscientes dos anos 60 e 70 . Acho esse álbum de versões bem interessante porque a produção ajudou a trazer o conteúdo da letra de uma forma bem meditativa, como um conselho, que na verdade eleva o conteúdo e faz o ouvinte pensar. O que você pode falar sobre seu trabalho contínuo de pesquisa para encontrar novas oportunidades musicais em outras estéticas?

“Understand What Black Is” é uma peça muito necessária porque analisando o nome da faixa literalmente, fica claro claro que isso ainda não foi compreendido pela nossa sociedade.

O produtor do álbum (Prince Fatty) é da Jamaica e utilizar a música Reggae como um recurso acontece de forma natural e orgânica. Eu também interpretei esse poema com a Orquestra Filarmônica de Rotterdam, na Holanda.

8) Agora gostaria de perguntar sobre a faixa “Pelourinho”, do disco “Holy Terror”. Você já esteve na Bahia? Você foi influenciado pela música brasileira em algum momento de sua carreira?

O Pelourinho não é apenas uma das minhas peças favoritas, mas também é o meu vídeo favorito. Você encontra no youtube como “Pelourinho Abiodun”, é só procurar. Respondendo sua pergunta, sim, eu fui muito influenciado pela minha experiência na Bahia. O vídeo dessa faixa foi gravado em Groree, uma ilha que fica localizada na costa de Senegal.

9) Abiodun, obrigado pelo seu tempo e pela oportunidade. Realmente significa muito para mim. Quando o The Last Poets surgiu, o nome do grupo foi inspirado no poeta Keorapetse Kgositsile, que acreditava estar na última era da poesia antes que as armas assumissem o controle. Hoje em dia, qual você acha que é a situação para as próximas gerações? Você acha que ainda temos chances de usar armas e não a arte ou acha que o caminho foi bem construído pelos últimos poetas, como Gil Scott Heron, por eemplo? Aprendemos nossa lição?

Nós devemos fazer uma revolução para salvar a humanidade. Deve ser uma revolução cultural, não sangrenta. Nosso modo de vida deve mudar drasticamente ou então este mundo realmente perecerá. Dinheiro e armas devem ser obsoletos.

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