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The Descendants of Mike and Phoebe, Spike Lee e sua genealogia!

The Descendants of Mike and Phoebe, grupo de jazz da familia Lee e liderado pelo pai Bill Lee, estão presentes no cinema do Spike Lee!

Muitas pessoas admiram a cinematografia do grande cineasta Spike Lee, porém alguns detalhes presentes em seus filmes desde a parte técnica até as inspirações temáticas possuem ligação direta com o trabalho jazzístico de seu pai Bill Lee e de sua família. Spike Lee e seu pai são parceiros de trabalho desde seu primeiro longa metragem: Joe’s Bed-Stuy Barbershop: We Cut Heads (1983), filme feito com o investimento de 10 mil dólares de sua avó e que foi seu trabalho de conclusão de curso na Tisch, a prestigiosa Escola de Belas Artes da Universidade de Nova York. Ao longo de sua carreira cinematográfica essa relação se evidencia como uma forte influência estética e de resgate da sua própria ancestralidade, e artisticamente isso se materializou em um disco. 

Baixista com longíssima folha corrida de importantes serviços prestados na história da música, William James Edwards Lee III, tocou em discos como o clássico “The Folk Lore of John Lee Hooker (1961)”, com nomes como Bob Dylan, Aretha Franklin e Clifford Brown, entre vários outros, como artistas hoje menos celebrados como José Feliciano e Peter, Paul e Mary. Por esses poucos exemplos já é fácil notar que estamos diante de um músico de larga envergadura, capaz de ir do blues ao Jazz como quem troca de roupa. Porém, um disco nos toca profundamente por seu protagonismo e ao mesmo tempo por reunir outras peças importantes dessa relação acima mencionada, entre alguns filmes de Spike Lee e a música do seu pai e da sua família. 

Recentemente fuçando pela internet para preparar uma matéria sobre a clássica e desconhecida gravadora Strata-East, conhecemos o disco do grupo The Descendants of Mike and Phoebe, intitulado A Spirit Speaks lançado em 1974 e ao pesquisar um pouco mais, percebemos como esse disco fala diretamente com o cinema do Spike Lee, no sentido de que é possível perceber uma evocação continuada em sua obra e começada aqui com seu pai e seus tios e tias. Não se trata de uma relação forçada, por um motivo simples: há uma genealogia estética entre A Spirit Speaks (1974) e filmes como sua estréia acima citada, além de outros filmes como Crooklyn: Uma família de pernas pro ar (1994), Mais e melhores Blues (1990) e Febre da Selva (1991), pelo menos. 

Durante toda a década de funcionamento da Strata-East, Bill Lee se envolveu como instrumentista em diversos desses discos, tocando com o “patrão” Stanley Cowell em “Regeneration (Strata-East) 1976”, no disco “The New York Bass Violin Choir”  e muitos outros. Porém, com o projeto The Descendants of Mike and Phoebe, junto aos seus irmãos Cliff Lee, Grace Lee Mins e Consuela Lee Moorhead, o que temos é um disco em homenagem aos seus antepassados e ao povo negro escravizado. Isso fica muito claro, pela força evocativa que o “spiritual jazz” composto e executado com muita força pelo grupo nos transmite. Uma obra bastante singular dentro de um catálogo como o da Strata-East, que só possui pérolas, e que ainda conta com os apoios do Sonny Brown e do Billy Higgins.

Interessando-se menos em experimentar nas dimensões do free-jazz e mais preocupado em criar um disco de tonalidades onde o gospel, o funk, soul e mesmo a música europeia clássica dialogassem com o jazz, Bill Lee, realmente nos oferece junto aos seus irmãos uma experiência de militância e vanguardismo estético. Os títulos das faixas nos comunicam também estas intenções, onde homenagens a mestres espirituais “Coltrane”, conversam com a homenagem aos homens negros historicamente oprimidos e mortos: “Attica”, assim como reverenciam a ancestralidade como médiuns “A Spirit Speaks”, título homônimo ao disco.

A canção de abertura “Little Bitty Baby” apresenta-nos o baixão do Bill Lee a frente do grupo com o groove leve de uma linha serpenteante nesse funkão jazzy, o piano da Consuela Lee Moorehead também joga livre, enquanto a voz da soprano Grace Lee Mins de rara beleza nos apresenta o disco.

A voz da Grace é certamente um espetáculo incomum e a parte nesta produção, não é de praxe obtermos vocais de tessitura “clássica” em discos de jazz, porém, a utilização desta técnica no disco A Spirit Speaks reafirma a ampla abertura que a forma musical do jazz possui em seu DNA. A construção rítmica e harmônica intrincada da faixa “Coltrane”, é uma homenagem emocionante, trabalhando dentro do hard bop, as relações entre percussão, baixo, bateria e piano vão sendo tecidas com paciência e com o entrosamento de “família”. O piano translúcido de Consuela na terceira faixa é um espetáculo fabuloso, segurando-se e levando a frente o groove nas quebras rítmicas, com a bateria do Sonny Brown espancando o kit sem dó, em uma violência elegante e malemolente, enquanto Bill vai dedilhando o rabecão com a intimidade que possui.  

O disco possui 10 músicas que são daquelas preciosidades muito pouco valorizadas e pouco conhecidas, e que terminaram por ficar afastada do cânone que se estabelece sempre e toda vez a partir da exclusão. As composições são divididas entre Bill Lee e Consuela, o pai e a tia do Spike Lee conheciam demais do riscado. além de Thomas A. Dorsey. Em uma das músicas mais comoventes “Take my hand precious lord”, a soprano Grace Lee, produz uma mistura emocionante entre o seu canto lírico e o gospel, com Bill Lee operando o baixo com o arco, e o piano da Consuela dedilhando com sutileza nos intervalos do sagrado. A elegância superior de “Too Little Too Late” fecha o disco em trio nas vozes de Grace, Bill e Cliff, com o próprio Cliff desenhando um solo modulado com o seu trompete.

Já na estréia do Spike Lee, a força do apego às questões históricas de violência, crueldade e opressão estão muito bem trabalhadas num roteiro intrincado e impactante onde o diretor reflete sobre a condição atual das comunidades negras americanas. A trama de Joe’s Bed-Stuy Barbershop: We Cut Heads (1983) gira em torno de um dos signos mais fortes destas comunidades: a barbearia. Local de reunião, de criação das belezas cotidianas, da auto valorização, das resenhas e gastações presentes em quaisquer comunidades pretas do mundo, no continente ou na diáspora.

A música de Bill Lee assume a dianteira em diversos momentos entregando uma força muito grande a película, com o jazz que nos serve durante a audiência como uma potência de pensar o que está sendo mostrado. A produção independnete, abre a película com um dialogo em off e em seguida vemos um desenho de um homem negro e um mula diante de um campo arrado, com a irônia conhecida, Spike Lee nomeia a sua produtora independente de “Forty Acres and A Mule”, numa clara referência ao seu primeiro ancestral em terras americanas: Mike.  

Essa carga política presente desde de sua estreia na direção e produção de filmes e ainda hoje revigorada e revigorante, no caso de Spike Lee carrega uma forte herança familiar. E já em Crooklyn (1994) podemos ver como o artista reorganiza esteticamente suas histórias de infância, e por isso chamamos atenção para essa relação. O roteiro semibiográfico, nos apresenta sua família composta por um pai músico desempregado (Delroy Lindo) e uma mãe preocupada em educar e sustentar os cinco filhos. É óbvia aqui a referência ao Bill Lee, pai do Spike, que como todo músico de jazz nunca viu as vacas gordas do dinheiro por sua arte, por muito tempo.

Inclusive Crooklyn, que no Brasil ganhou o título de “Uma Família de Pernas Pro Ar”, é uma excelente porta de entrada para se compreender a riqueza da família Lee. O roteiro do filme foi assinado por Cinque Lee e tem a participação de Joie Susannah Lee e do próprio Spike. Baseado no livro da atriz, produtora e roteirista Joie Lee, o filme apresenta a figura de Jacquelyn Caroll Lee, a mãe dedicada e que foi a responsável por apresentar o cinema de Martin Scorcese para o filho Spike Lee, que se tornou seu cineasta favorito, além de incentivar a ele e aos seus outros irmãos, como Christopher Lee (Shadow), grafiteiro e trompetista, o amor pela arte e pela cultura negra, os levando a exposições, peças de teatro e museus. David Lee, também irmão do Spike Lee, é fotografo e já trabalhou em filmes junto ao irmão. 

Em “Mais e Melhores Blues” as nuances de um músico de jazz em relação com o contexto que lhe circunda nos guetos desde os anos 80 – pelo menos – é trabalhado à perfeição. Assim como de resto Spike Lee sempre nos oferta, nos mostrando uma visão crítica, bem humorada mas sem negligenciar os aspectos mais trágicos da experiência da vida negra na América. Bill Lee seu pai e músico, é o responsavel por algumas de suas trilhas sonoras e participou de alguns de seus filmes, que diga-se de passagem, são excelentes. Uma parceria bonita que trabalha no registro da herança e da criação, nos trazendo obras que nos ajudam a pensar a condição de ser negro em diaspóra. Porém, após a morte da mãe de Spike Lee, eles brigaram, mas esse fato não deixou de ser registrado no cinema. 

Joie Lee, Bill Lee e Spike Lee

O filme Febre da Selva, não possui a trilha sonora do Bill Lee, mas foi motivado pela briga dos dois e levou o cineasta a gerar um filme onde se debate as relações inter-raciais, por conta do seu pai ter se casado pouco tempo após a morte de sua mãe com uma mulher branca. Ora, mais do que mera fofoca ou um caso de família, é interessante notar como um verdadeiro artista lida com questões que lhe são muito caras. Transformá-las em objetos de pensamento, comunicar-nos afetos e percepções sobre um problema de origem pessoal e que sem essas informações factuais e mesmo para além delas, nos leva a pensar sobre a nossa própria condição, é um dos motivos da arte. 

Bill e Spike Lee possuem uma obra que são dois monumentos à cultura negra, à nossa história em diáspora e que se comunicam e em certa medida estão entrelaçadas de modo indissociável. Conhecer essa relação é também expandir os conhecimentos que já possuímos sobre o cinema de Spike Lee e para alguns conhecer o trabalho do grande Bill Lee, assim como dos tios Grace, Consuela e Cliff Lee. Um família que mesmo com origens humildes, conseguiu transcender e gerar uma imensa rede estética e política, e daí o nosso interesse de traçar essa relação entre The Descendants of Mike and Phoebe, pois não estamos diante de um acaso. 

O grande cineasta Spike Lee, sua família são descendentes de Mike e Phoebe, dois seres humanos negros capturados no que atualmente chamamos de Gâmbia/Senegal e escravizados nos EUA. Tendo chegado no continente americano através do porto de Charleston, Mike foi vendido na mesma cidade enquanto Phoebe desceu o rio para ser vendida. O casal de noivos separados só se reencontrou vários anos depois que Mike trabalhando conseguiu juntar dinheiro suficiente e depois de procurar Phoebe insistentemente pelo Sul profundo dos EUA, a encontrou e comprou sua liberdade.  

O disco de onde surge toda essa tentativa de reflexão é um ponto atrás da cinematografia do Spike Lee e que remete a um caso real de uma história que possui muito a nos ensinar. Os descendentes de Mike e de Phoebe se reúnem atualmente de dois em dois anos, conhecem a sua própria história e a preservam e a expandem, É dificil ver com tanta clareza os espíritos falarem em voz tão clara entre os descendentes de um casal preto, como aqui. Façamos o mesmo, A Spirit Speaks, sempre!

-The Descendants of Mike and Phoebe, Spike Lee em A Spirit Speaks (1974) 

Por Danilo Cruz

 

https://www.youtube.com/watch?v=Mdl39Frc7rk

 

 

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