Primeiro grande trabalho do rap nacional em 2021, o Tetriz solta o EP Bonus Stage, Ramiro Mart, Matéria Prima e Goribeatzz jogando de smoking!
“A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade; é o amor que ressuscita sempre depois de morrer.” Rubem Alves
Um dos projetos de maior excelência do hip hop nacional, um super trio reunindo Ramiro Mart, Matéria Prima e Goribeatzz, acaba de lançar o EP Bonus Stage (2020). Após o Primeira Fase (2017) e o Segunda Fase (2018), somos levados a outro nível, aqui concebido não meramente como uma evolução mas como processo, construção de um outro espaço.
O Tetriz traz no seu nome uma certa concepção de jogo, partindo da ideia/conceito daquele joguinho que na verdade é um quebra cabeça, onde o objetivo maior é juntar as peças. Ao fazer esse movimento, o jogador cria blocos ou linhas que vão abrindo mais espaço, e quanto menos se for capaz de juntar peças com encaixes perfeitos maiores os obstáculos. O jogo chega ao fim quando todo o espaço é tomado por encaixes mal feitos e não há espaço para peças novas.
No meio do rap é muito comum ouvirmos a expressão Rap Game, um outra concepção de um jogo um tanto turvo, obscuro, com regras pouco explícitas. O que é esse rap game? O que significa estar no jogo? Deveriam ser perguntas comuns, juntamente com uma pergunta mais essencial: Qual a relação da arte com o jogo? Não seria o rap game uma forma do mercado esvaziar toda a força política e ética, levando o rap consequentemente a promover uma homogeneidade estética?
São perguntas difíceis de serem respondidas de supetão e demandam uma longa reflexão e sobretudo um conhecimento amplo daquilo que é produzido no país. Porém, essa lógica da disputa utilizada inicialmente na cultura hip hop para sublimar a violência foi inteligentemente codificada pelo capitalismo transformando o rap numa rinha. Onde os vencedores são exaltados por sua força meritocrática, enquanto milhares de outros artistas minguam ou se digladiam para chegar lá.
Práticas escusas são admitidas dentro do rap game, falar no coletivo buscando o individual é comum, hoje a representatividade inclusive virou um ativo. Distorções promovidas pela indústria cultural que transformou o cenário musical numa luta de todos contra todos, e quem regula as leis dessas disputas é a mão invisível do mercado. Algoritmos ditam quais são os consumíveis, e quais devem permanecer no anonimato, as mesmas marcas e empresas que exploram e ganham milhões com a pobreza do povo, pesca no “hip-hop” seus garotos propagandas. É nesse nível de jogo que estamos!
“Conversar é ficar batendo sonho para lá , sonho para cá. Sonho para lá, sonho para cá…”
O pensador brasileiro Rubem Alves, possui um pequeno texto muito interessante onde ao pensar sobre o casamento, nos propõe uma distinção entre o tênis e o frescobol, como práticas esportivas. Distinção basilar que nos mostra duas formas de pensar as relações humanas em seus aspectos éticos e políticos que são opostos. Há aqueles que impregnados pela lógica do capital entendem as relações como um local onde é necessário vencer, dominar, controlar, são os tenistas da nossa sociedade. Por outro lado, existem aqueles que entendem o convívio social como locais de troca, de solidariedade e de reconhecimento da alteridade.
Esse binarismo inicial, na verdade coloca em jogo concepções de mundo muito diferentes entre si e ao mesmo tempo nos alerta sobre nossas formas de pensar o outro, a arte, a política e etc. Obviamente todos nós trazemos o tenista dentro de nós, mesmo quando queremos ser o parceiro do frescobol. A concepção de jogo que o Tetriz apresenta em sua arte é a deste parceiro de produção de idéias, de um espaço liso onde a empatia governa as relações entre rimas e batidas verdadeiramente em prol do coletivo.
Em 16 minutos, durando ao longo das 7 faixas que compõe esse novo trabalho, o Tetriz solta o primeiro grande EP do ano de 2021. Resistem com muita elegância ao game que visa a aniquilação de quem não abre mão de si mesmo, para jogar nos melhores consoles. Nesse sentido, o apego “vintage” é sinal de futuro, ao mostrar as infinitas possibilidades que sempre se apresentam – existentes para quem não se rende a lógica excludente de vencedores x perdedores – aos verdadeiros criadores.
A cultura hip hop enquanto produção afrodiaspórica possui a potencialidade de ser um espaço de colaboração e invenção, porém a visão segue cada vez mais turva. Esfumando o olhar como a catarata que me assedia nos últimos meses e que faz a maioria não perceber os contornos perversos, cruéis do game. Ouvir Matéria Prima e Ramiro Mart rimando em cima dos beats de Goribeatzz, longe de ser um bom augúrio para o ano que se inicia, impossível de resto, nos dá força para seguirmos resistindo.
“Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então, que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…”
Longe dos gritos de guerra que se esvaziam rapidamente, e das palavras de ordem requentadas, o Tetriz busca o auto conhecimento e a expressão livre, a conversa como caminho. E entende também os próprios limites da arte. A faixa “Dor no Peito” reconhece esses limites e aponta na sua própria feitura as possibilidades, trazendo o Elo da Corrente no feat, os riscos insanos do DJ Macko e o saxofone do Victor Lemos. Se nenhum refrão “per si” dará jeito àquela dor no peito, a amizade, a expressão fruto da arte, a conversa e a invenção de espaços acolhedores, podem nos ajudar. A luta só pode ocorrer coletivamente, assim como quaisquer que sejam as mudanças que pretendemos para nossa sociedade.
Curioso como buscamos salvadores na política, da mesma forma que elegemos o nosso ídolo em detrimento de toda uma cena e muitas vezes de toda a cultura. É a estupidez atravessando nossa subjetividade e fazendo com que nos comportemos contrariamente ao que falamos. Juntos, Ramiro Mart, Matéria Prima e Goribeatzz possuem agora três grandes trabalhos, separados o número é muito maior. Donos de uma discografia imensa, são três nomes excelentes mas que seguem invisibilizados por um público que se compraz em ser fã base de alguém.
O exercício ético também se faz através da negação e da busca de relações e aliados que potencializam nossa existência. Assim como a construção de uma solidão povoada, forte o suficiente para manter o silêncio e não recair em moralidades infantis. “Cuidado Com Quem Desabafa” traz o beat do Lassmar, DJ Castro riscando bonito, “eu tenho algo a dizer”, porém precisamos filtrar, selecionar o que e quem ouvimos.
A busca de uma saúde hoje cada vez mais escassa, que faz com que muitos queiram saber a vida do outro para melhor esconder suas próprias chagas. O bom humor como remédio contra essa e outras doenças aparece com “Vizinhança”, versando sobre nossas vidas em comunidade. Perceber a realidade com os sentidos aguçados, através da vontade de compreender a realidade em que vivemos. “Leitura Dinâmica” vai na direção de uma sinergia sóbria.
Todos presos nas telas, além da distinção entre real e virtual enquanto rumamos inconscientes para a extinção, “Planeta Proletário” reativa a distinção de classes que compõem vitoriosamente o nosso planeta. Distinção muitas vezes – convenientemente – esquecida no rap nacional, com aqueles papos pueris de grana, carro e mulheres, como expressão de poder. Aqui temos a participação da bateria do mano Pablo Duca (BBHT) e do Arthur Moreno no baixão.
Vai Além, Continue
Trabalhos como esse do Tetriz apesar do aspecto menor em termos de alcance e tamanho – 16 minutos é pouco gente – condensa quase que aforísticamente diversas questões hoje fundamentais. Daqueles trampos que quem busca o rap como diversão e conhecimento, dá o play, ajoelha e toma a pílula dizendo em seguida: amém. Goribeatzz comanda as produções com a já conhecida excelência, com beats que fogem às léguas do comum, só boombap pesado, sujo, daqueles que nos fazem balançar imediatamente. Os MC’s Ramiro Mart e Matéria Prima já possuem discos suficientes provando suas imensas qualidades na produção de flows, rimas e visões.
Sobretudo visões, que aqui fazem com que música e poesia limpem o espaço de tristezas, vulgaridades, conservadorismos, produzindo assim aquele espaço liso que chamamos atenção lá em cima. Como mais uma fase dp “tetriz”, nos preparando para a próxima sequência de peças que nos serão constantemente apresentadas. O Tetriz se apresenta como essa força de pensamento, de invenção que utilizamos para vencermos nossas próprias limitações, ao invés de vencer os outros.
É aquela sensação gostosa quando conseguimos manter a bola no ar, consertando a bola torta recebida do parceiro ou sendo salvo pelo mesmo quando mandamos ela – a bola – torta. O prazer do frescobol é exatamente esse, a conversa, não o resultado, é a alegria de estar junto não a de dar uma cortada e eliminar o adversário. A forma como o Tetriz concebe o game, é essa um jogo sem perdedores como tem que ser o hip hop, e nisso como no resto, estamos em sintonia!
-Tetriz em Bônus Stage (2020), por um jogo sem perdedores
Por Danilo Cruz
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