Terreno Baldio onde caminham nosso inconsciente coletivo, lendas e mitos, nossos símbolos primevos, nossa ancestralidade, progressivamente!!
Estou sentado em frente à mesa de trabalho e minha perna começa a balançar, a tremer, a variar. Agora estou no metrô, a caminho de qualquer lugar, e minha perna começa a balançar, a tremer, a variar. Deitado na grama, olhando o céu azul, sentindo a brisa, atento ao balançar das árvores e minha perna começa a balançar, a tremer, a variar. Junto com minha perna, sinto o meu chakra base e o sacral como que se contraírem, talvez recebendo uma carga energética de não sei onde. De não sei onde? Sei de onde, sim. Vem do som, captado pelo ouvido e escorrido para os chakras. Do som de uma banda, brasileira, antiga, anos 70. Terreno Baldio. O disco? Além das Lendas Brasileiras de 1977. Pedra, pérola, dolomita, jasper vermelha, ametista e turmalina.
Rock progressivo, ritmo polivalente, fugas, contrapontos, descompassos e compassos, é assim, assim é. Frenético até a tampa, mas não só. Considero o Além das Lendas Brasileiras (1977) um disco-homenagem. O mais surpreendente é que são roqueiros homenageando seres da mata, do mato, do sertão, do interior. Fazendo um fenômeno plenamente urbano comunicar com o rural, numa das muitas tentativas de re-encantar o mundo. Não há NADA parecido na música brasileira, NADA. Fazer rock progressivo com as lendas brasileiras? Só nos anos setenta. Na linha floresta existem algumas outras, tipo Bacamarte ou a Barca do Sol, mas convivendo de perto com os seres do mato, só Terreno Baldio. Parecida com essas bandas, hoje em dia, que eu saiba (eu não sou muito informado, graças), só a galera do Grupo Instrumental do Vale do Capão.
Agora, nesse momento, você pode clicar aqui e ouvir o disco ao mesmo tempo que lê e ver o que acontece.
A primeira faixa, Caipora, é a causa das primeiras tremedeiras, balanceios e variações da minha perna. Caipora começa logo rasgando com um som da floresta. Flauta doce acompanhada de alguma corda que não sei identificar, ou guitarra ou violão. Vem a bateria, caixa, caixa, caixa, muito rápida, tremendo, trepidando, com um tecladinho de fundo, frenético também. Vem a voz, cantando a Caipora, fazendo louvação à entidade ardilosa. A Caipora corre mais que corre, protegendo sua flora, e corre a galope, a galope de anta, desviando dos galhos, distribuindo salves para os elementais e bichos da floresta.
Pra quem já ouviu a versão de Passaredo de Chico Buarque e Francis Hime, que é foda também, esqueça. Aqui a música ganha uns graus a mais de gravidade que faz dela uma outra coisa. Se a música de Chico e Hime é dos céus, dos vôos altos, a do Terreno Baldio é das copas das árvores no crepúsculo das 17h, que é quando os pássaros fazem suas assembleias e narram o que se passou durante o dia, que é quando narram os perigos que enfrentaram, os encontros com os inimigos, as fugas e desvios no chão e no ar, as caças bem e mal sucedidas, as indigestões e as inevitáveis mortes.
Primavera segue Passaredo. Ritmo mais calmo, pra frente, uma inspiração do ar das flores. É como se o som se instalasse justamente na contração do ar, ao contrário de Caipora e Saci-Pererê, marcada por exalações. Eu acho uma das mais fracas do disco, mas não deixa de ser bacana.
Lobisomem faz a volta do frenético. Onde a maioria dorme o lobisomem faz sua morada. O clima soturno da música faz a gente sentir a noite de luar, faz a gente sentir a tensão do ar úmido da noite, porque os predadores enxergam até melhor na lua cheia, e, se não for viagem minha, creio que o ar úmido propaga melhor os cheiros. A umidade é feita pelo teclado de Lazzarini, e a noite densa cobre a floresta graças à guitarra de Mozart de Mello e ao baixo de Ayres Braga.
A velocidade do disco é incrível, as notas são coladas umas nas outras, sem deixar que o silêncio reverbere para além das lendas. Fazer música é saber variar o silêncio, não? Terreno Baldio faz isso bem, estreitando o intervalo entre silêncios. A bateria, a cargo de Joaquim, é o que dá a quebradeira infinita. Uma das coisas que admiro nas baterias do setenta brasileiro é justamente a ousadia em variar. As bases são secundárias, e não primárias. Mesmo o que não pode ser considerado progressivo vai por aí. Aqui não é diferente, e a bateria é acompanhada ao mesmo tempo que acompanha. Não há cozinha, a meu ver, eu que não sou músico, mas digo a razão: é que a casa é uma daquelas octogonais, com tudo junto em um só cômodo.
As Amazonas é a música mais quebrada do disco. Empresta da imaginada guerra das florestas a polirritmia das pedras amassando as caixas cranianas, das lanças rasgando caixas torácicas, das flechas zunindo e cortando o peso do ar.
Iara é a borda do rio na maré baixa e calma. É a mata ciliar, com suas sementes de vida, com sua lenta absorção da água que está logo ali. Melodia calma, órgão de igreja e flauta doce inspirada pelo céu rosa-púrpura, na aurora. São frases belíssimas de flauta acompanhadas pelos pratos secos. A letra poderosa é um grande elogio à mais bela das entidades. Bela música, sim, bela música…
Negrinho do Pastoreiro vem pra fechar o disco. E é bem uma música de fechamento mesmo. O teclado é que faz, através da repetição de uma frase belíssima, o disco sumir aos poucos. Sem letra, a música, na linha de A Barca do Sol e do terceiro disco de Som Imaginário, traz logo no início um choro de viola que poucos souberam fazer.
O disco ganha muito, muito, por ter como tema algumas lendas brasileiras. Dar sonoridade roqueira ao imaginário de quem vive no mato fazendo a aproximação com a cultura urbanóide é muito massa. É encontrar fora da cidade de asfalto a matéria que pode transformar o universo com mais velocidade. É uma aproximação, uma ligação, uma ponte. Os dois multiversos ganham, porque há penetração, há absorção de um no outro. O resultado? TREMEDEIRA.
Os caras reapareceram 39 anos depois como lendas do nosso rock e mandaram esse som aí!
Por André De Souza