Sumidouro: o Brasil de Igor Pimenta, disco de estreia do baixista apresenta um grande time de músicos e revela vasto repertório
A música se manifesta nas coisas. Ela extrapola uma caixa de som, um fone de ouvido e incita diversos estímulos a todo momento. Apertar o play é muito mais do que apertar um botão. Colocando isso na perspectiva do músico, depois que o engenheiro apertou o REC, todos sabem que é hora de eternizar um momento.
É a licença poética para aplicar a concepção criativa que foi discutida e idealizada. O botão representa a oportunidade de canalizar os ensaios e de fato externalizar esse conceito. É sempre um desafio, mas discos como Sumidouro (2020) – primeiro trabalho solo do baixista paulistano Igor Pimenta – mostram que por trás de um grande registro, existem não só grandes seres criativos, mas também grande seres humanos.
Com todos imersos nessa dualidade da vida, todas as ideias que permeiam “Sumidouro” foram bem pensadas e arquitetadas. A audição é sublime, leve e nos guia cuidadosamente ao curso de 10 faixas e pouco mais de 43 minutos de grande beleza e sensibilidade. Tudo isso para atingir um resultado orgânico, sincero e que nesse projeto em particular, conversa com o ouvinte, enquanto conta histórias emolduradas no mais belo tear instrumental.
Um discos brasileiro em sua essência, o primeiro esforço solo do Igor Pimenta saiu dia 16 de junho e reúne grandes nomes da música instrumental brasileira. Eloquente e com luz própria, o baixista destila um repertório que esteve em processo de maturação por quase dez anos. Por essa razão, Igor tinha tudo muito bem delineado para essa sessão que foi registrada na Gargolândia.
Gravada por Thiago Baggio, com produção musical de Neymar Dias, mixagem do Ricardo Mosca e masterização de Maurício Gargel, “Sumidouro” é um mirante. Sua vista mostra os caminhos singelos da viola caipira, os traços do som de Minas Gerais, – um belíssimos trabalho de arranjos, tudo com um acabamento Jazzístico e um toque majestoso na roupagem que torna a audição impecável, dentro desse rico pantone de instrumentação.
A abertura do disco já surge demonstrando grande lirismo. “Lamentos de Mãe D’Água” conta com a participação de Tatiana Parra na voz, elucubrando dramática, sob o flutuar de uma bela melodia. O piano de Salomão Soares surge triunfante até que a voz volta e os ecos de aço e nylon são harmonizados por passagens de clarinete e clarone.
Os timbres são um capítulo à parte. Em “Semillas Al Viento”, Antônio Loureiro e André Mehmari fazem uma cama na voz e sinth que se transforma na via principal da faixa. O solo de baixo do Igor é a cereja do bolo dessa composição – um tributo ao músico argentino Pedro Aznar – e seu fraseado entre o Folk, Rock e o Jazz.
Na sequência, “Brasilina, Chico e Zeize” – com participação de Toninho Ferraguti no acordeon e arranjo de Neymar Dias. O trabalho do quinteto de cordas leva o ouvinte para a França dos anos 40 e sua vielas, reverberando Jazz Manouche. Na versão de “A Sede do Peixe” (Milton Nascimento), aparece até um fagote (cortesia de Alexandre Silvério) e a maneira como o arranjo cresce, ascendente, com o cello de Vana Bock – mais uma vez na plenitude de sua beleza – cria um clima quase poético em meio à suas ambiências. O Milton precisa ouvir essa versão.
“Lamentos de Mãe D’Água”
“Semillas Al Viento”
“Brasilina, Chico e Zeize”
“A Sede do Peixe”
“Insieme”
“Procissão das Velas”
“Quarteto Para Tempos Bicudos”
“…Queima, Fere, deixa sangrar”
“Three Friends”
“O Sonho de Lara”
O tema seguinte é com Igor soberano. “Insieme” é um número para baixo acústico. De levada encorpado, a melodia vai preenchendo espaços, enquanto seus harmônicos mostram a vibração e a paixão de um grande solista.
Cada take é bastante categórico. Em “Procissão das Velas”, Salomão volta ao piano, enquanto André Juarez aparece com um vibrafone repleto de opções. No baixo, Igor mostra versatilidade – entre o fretless, acústico e a voz – enquanto Neymar Dias destila um solo memorável. Enche os ouvidos e os olhos. Cada ideia é plenamente trabalhada e, mesmo na vinheta fantasmagórica de “Quarteto Para Tempos Bicudos”, percebemos justamente esse cuidado com cada detalhe que cria esse belíssimo ecossistema.
No caminhar para o fim do disco, “… Queima, Fere, deixa sangrar” surge como um acalanto. Rafael Altério e Rafa Castro fazem um trabalho sublime na voz. O violão, a bateria quase como uma alegoria… A prudência dos músicos é algo a se destacar. A interação, o que os americanos chamam de interplay. Em diversos momentos quando determinados instrumentos se sobressaem, nota-se todo um arranjo que permite esse desabrochar, assim como acontece com o solo de violão de Vinícius Gomes. Cada nota é valorizada.
E entre ecos de Rock Progressivo – com uma homenagem ao Gentle Giant – com a versão de “Three Friends”, Igor chefia um trio com fagote e acordeon – dessa vez de Daniel Grajew. Os caminhos sempre surpreendem, mas se encerram com o épico “O Sonho de Lara” (single do debutante) e seus 3 atos: “Divertimento”, “Acalanto” e “O Sonho”.
Sinuoso, leve e exuberante, assim como todo o disco, essa composição cumpre a difícil tarefa de resumir todo esse cativante projeto. Parece até fácil. Toca o ouvinte, e apesar de poucas palavras concretas, estabelece um diálogo duradouro.
É um disco até difícil de definir. Sintetizar alguma ideia chega a ser uma petulância, tamanha a aquarela de possibilidades aqui pinceladas. É digno de deixar no repeat por horas, apenas para apreciar o esmero, a entrega e a verdade de cada um dos músicos aqui reunidor.
Trabalho primoroso. Apenas apertem play. Grande disco de estréia.
Serenidade, apesar dos tempos bicudos.
-Sumidouro: o Brasil de Igor Pimenta
Por Guilherme Espir