Oganpazan
Aqui jazz, Destaque, Música

Strata-East Records, um selo musical, um radical condomínio de invenção!

Strata-East Records foi um selo fundado pela dupla de jazzistas Charles Tolliver e Stanley Cowell, arregimentando grandes nomes do jazz 

Pharoah Sanders em Paris 1975

A história do jazz é um campo aberto de descobertas radicais em termos de experiência social, construção política e avanços estéticos. O período que vai dos anos 20 do século passado até a contemporaneidade abarca uma série tão grande de eventos, transformações, diálogos estéticos e filosóficos, grandes nomes conhecidos e desconhecidos, que estamos sempre nos sentindo verdadeiros ignorantes. Ou ainda como disse o filósofo socrático Guilherme Espir: “No final do dia descobrimos que não sabemos porra nenhuma de música.” A primeira grande expressão artística propriamente estadunidense, fruto da força da negritude em diáspora, segue como um excelente território de pesquisa e espanto diante de sua imensidão, passados mais de cem anos de seu surgimento. 

Como expressão negra dentro de uma sociedade onde a branquitude possui o controle dos meios de produção e a hegemonia política, o jazz criou estratégias cada vez mais radicais para evitar a constante tentativa de apropriação cultural. Talvez o exemplo mais impactante e transformador tenha sido o Bebop. Esse sub-gênero do jazz é o responsável por “espantar” a indústria cultural que durante as décadas de sucesso do “Swing”, constantemente apagava os grandes maestros das grandes orquestras negras como Duke Ellington, Count Basie e Chick Webb entre outros. Filmes biográficos foram feitos para figuras como Benny Goodman, Glenn Miller além da própria forma musical do Swing calcada numa música dançante de ritmo sincopado favorecer uma homogeneização estética, um produto de fácil aceitação naquele momento. 

Porém, a turma revolucionária que se reunia no Minton’s Playhouse desenvolveu uma forma musical que não somente barrou essa tentativa da Indústria Cultural, como elevou o jazz a outro patamar completamente distinto. Tente se lembrar de um músico branco do Bebop e falhe miseravelmente. Essa forma de autodefesa estética e de salvaguarda do protagonismo racial foi efetuada com muito sucesso, porém não se deve denotar disto, que o jazz tenha sido uma música excludente, nem poderia. Desde os seus começos, a generosidade, o respeito à liberdade criativa e a singularidade dos indivíduos são o ethos primordial dessa forma de arte, que carrega no seu cerne uma forma anarco-democrática. Retirando-se desses ismos, a carga ocidentalizante que estes termos denota, antes explicitando algo que é próprio de traços civilizatórios africanos. 

Este protagonismo negro no jazz muito evidente pós Bebop, obviamente gerou impactos no público e na indústria. A forma musical vanguardista ao mesmo tempo em que barrava o avanço da indústria musical, criava um certo afastamento do público acostumado com o consumo fácil e rápido, propiciado pelas grandes orquestras. Essa queda de popularidade do jazz de modo geral, nos anos seguintes iria ainda ser agravada pelo R&B, pela soul music e o então nascente rock’roll, além da British Invasion já nos anos 60, entre outros fatores. 

A música preta sempre teve problemas em ser vinculada e reconhecida em territórios da diáspora, a branquitude exerce um padrão de consumo que primeiro critica estas invenções, como algo primitivo, “sexual” demais, pobre, mas depois se apropriam colocando brancos para produzir esse tipo de música, para então consumi-la. E obviamente, esta sempre foi uma dificuldade quanto à possibilidade de lançar discos por grandes gravadoras que sempre estiveram de olho no lucro rápido e por conta disso no controle criativo dos artistas.

Sun Ra e sua banda nos anos 50

Dentro desse contexto, algumas gravadoras e selos tomaram a dianteira histórica e foram de suma importância para o desenvolvimento musical de gêneros como o blues, o rock, o soul/funk e o jazz. Ainda nos anos 40 e 50, o grande Sun Ra já era um músico muito ativo e com seus talentos técnicos como arranjador, preparador vocal e músico de estúdio, muito reconhecido na cena de Chicago. No entanto, apesar de estarem cientes do talento do artista, as gravadoras achavam sua música avançada demais, experimental demais para lançar. Sun Ra funda então em 1957 a Saturn Records junto aos parceiros Alton Abraham, James Bryant e Almeter Hayden, criando sua própria plataforma de lançamentos para os 500 discos a seguir, e ao mesmo tempo sendo o detentor dos direitos de todo o seu material.         

A Chess Records é também um exemplo de gravadora independente que reconheceu e aproveitou a emergência de nomes como Muddy Waters, Etta James, Howlin Wolf, Chuck Berry entre outros, e a recusa das gravadoras brancas, para construir seu nome dentro da história da música. Nos anos 60 algumas gravadoras independentes surgiram também na Inglaterra e no âmbito da música negra americana, obviamente é importante citar a Motown e a Stax Records, responsáveis por centenas de clássicos mundiais, produzidos por uma gama de nomes de valor inestimável para a história da música! 

No campo propriamente do Jazz, já em 1921 os irmãos John e Reb Spikes fundaram seu próprio selo, a Sunshine Records que lançava o que na época era conhecido como Race Records (discos de preto), especializada em blues e jazz. Entre outros, o pequeno selo chegou a lançar um disco da lenda de Nova Orleans, Kid Ory. Outro empreendimento fundamental para a nossa história é a fundação da Black Jazz em 1969, pelo pianista Gene Russell e que como o nome indica, carregava uma forte identidade racial!

Seguindo essa linha cronológica com algumas experiências fundamentais, vamos desembocar no nosso tema: Strata-East e seu modelo de negócios revolucionário e inédito até então. Quando pensamos o Faça você mesmo, (DIY) sempre recorremos ao período histórico do punk rock e da música indie, mas nós vimos acima que o nosso mensageiro intergaláctico Sun Ra já decretava sua independência nos anos 50. A Strata-East surge da mesma experiência vivenciada pelo Sun Ra, com os músicos Stanley Cowell e Charles Tolliver.

“Era um plano grandioso, um plano louvável, um plano culturalmente sofisticado; Só não tenho certeza se era um plano viável. ”- Plunky Branch

Charles Tolliver

Pelo fim dos anos 60, mas exatamente em 1967 os dois foram convidados para trabalhar com o grande baterista Max Roach, que vale citar já tinha sido sócio de Charles Mingus na gravadora Debut Records. Cowell e Tolliver então com 25 anos se conheceram na primeira reunião para a formação deste novo quinteto do Roach, rapidamente criaram afinidade e posteriormente vinham sendo convidados para tocar com nomes muito importantes como Miles Davis, Stan Getz e Bobby Hutcherson. A inquietude e a necessidade artística de lançar um trabalho próprio vieram à luz ao mesmo tempo, e os dois lançaram seus discos de estreia como líderes em 1969, Charles Tolliver com o Tolliver’s The Ringer e Stanley Cowell com Blues For The Viet Cong. 

Porém, como todo músico que se preza Charles Tolliver seguiu criando e em 1970 gravou um disco com uma big band, porém dentro da estética do hardbop, o que fez com que todas as gravadoras lhe negassem o lançamento. Diante desse cenário, com a gravação parada por um ano, Tolliver fez o Stokely Carmichael em um dos seus discursos avisou: “ O guerrilheiro estuda, não descansa, estuda.” E foi o que ele fez, conseguiu informações sobre todos os processos de produção de um disco naquela época. Já Stanley Cowell possuía ligações com uma turma de músicos de Detroit que queria mais liberdade artística e negócios mais justos, Kenny Cox (pianista) e Charles Moore (trompetista), sobre esse momento ele conta: 

Por volta de 1970, eles me procuraram. Eles haviam fundado a Strata Corporation em Detroit, tinham um espaço para shows e iam produzir discos. Todos fizeram parte deste movimento empresarial em expansão: os músicos devem ter autodeterminação em termos do que fazem, nem sempre ficar em dívida com outras pessoas que não se parecem conosco e provavelmente estão nos roubando.” 

Percebendo a mudança que a turma de Detroit tinha praticado em mudar as bases raciais para uma pegada mais empresarial, em 1971, Cowell e Tolliver fundaram a Strata East em Nova Iorque, conectados mas autônomos com a Strata Corporation.  

Ao longo de sua década de duração, a Strata-East só teve um verdadeiro “sucesso”, com o lançamento do disco da dupla Brian Jackson e Gil Scott-Heron, Winter in America (1974) que inclusive contribuiu enormemente para que o selo chegasse até a beirada dos anos 80. Ora, talvez o aspecto mais singular do exemplo histórico do selo Strata-East seja o fato do seu modelo de negócio privilegiar de modo inédito os artistas. A porcentagem de lucros era de 85% para o artista e 15% para o selo, sendo que os autores eram donos integrais dos direitos de suas obras, além de ter total liberdade na feitura das mesmas. Isso certamente, é algo nunca antes visto na história da música.

Stanley Cowell

Enquanto selo, a Strata-East não investia nas produções ficando responsável pela prensagem e distribuição dos discos, ideia que foi expressa pela “noção de condomínio”, criada por Stanley Cowell. É uma noção muito bonita e que poderíamos traduzir aqui para a nossa experiência como um correlato da noção de “aquilombamento”. Contra o processo de exploração de mão de obra que as gravadoras produziam, a Strata-East buscou criar um território de liberdade onde grandes artistas negros pudesem co-habitar em seus próprios termos. E curiosamente, está política é imediatamente também uma estética, haja vista a produção musical que preencheu esse elegante, espiritual e libertário “condominio”.  

Em um mercado onde os artistas em geral recebiam 10 ou 15% de royalties sobre seus trabalhos, esse modelo colocou as coisas de pernas pro ar, visando concorrer com gravadoras já clássicas como a Blue Note e a Atlantic. Esse processo, uma vez visto pelos músicos de então, atraiu muitos nomes excelentes como o mestre Clifford Jordan e o visionário Pharoah Sanders, que trouxeram material nunca lançado por outras gravadoras, como o petardo Izipho Zam de Sanders, gravado em 1968 e lançado pela Strata em 1973.    

Ao longo de quase 10 anos, a Strata-East preencheu um catálogo de muita excelência com 58 lançamentos de nomes pouco conhecidos, porém muito inovadores, geralmente dentro de uma linha que ficou conhecida como Spiritual Jazz e também com muito do Free Jazz. Grandes nomes pouco conhecidos, como o grande saxofonista Shamek Farrah, como o percussionista James Mtume, Plunky Nkabinde e o seu projeto Juju, que mais tarde seria transformado em Oneness Of Juju entre muitos outros deixaram um legado que urge conhecer. 

Abaixo, linkamos o excelente vídeo de indicações de grandes discos e nomes da Strata-East feito pelo Bruno Ascari em seu canal Som de Peso, o único lugar da internet brasileira onde encontramos conteúdo (muito bom) sobre o tema!  

-Strata-East, primeiro selo realmente independente completa 50 anos

Por Danilo Cruz 

 

 

 

 

Matérias Relacionadas

Covers melhores que os Originais? Bolodoido Musical chama treta!

Dudu
3 anos ago

16 Beats no EP C.O.L.Ô.N.I.A. – Um papo sobre Rap, Lutas e Pan-Africanismo

Danilo
7 anos ago

Tirzah – Devotion (2018) Uma estreia singular Drops Oganpazan

Danilo
6 anos ago
Sair da versão mobile