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Soulseek – minha revolução, minha igreja

HP-SLSKExiste um lugar além do horizonte, bonito e tranquilo, cheio de riquezas, conheçam o soulseek, onde minha vida mudou e segue me enriquecendo.

É certo que eu já tinha sido infectado pelo vírus e já adorava a música e todos os seus deuses mais conhecidos. Digamos que eu era um monoteísta em dissidência. Ainda refém da coleção de discos do meu padrinho, do rádio. Da mesada minguada que permitia comprar um cd novo por mês, às vezes dois, se fosse naquela promoção esperta das lojas americanas (Mundo livre S/A perdido na seção de forró por 7,90).

Se tivesse sorte e me privasse de algumas outras coisas (lanches, cinema, passeios) que a merreca proporcionava, era possível que rolassem uns três cd’s usados na loja Mutantes, no 2 de Julho. Preso de certa forma ainda aos dogmáticos gêneros, ouvia um pouco de MPB, rap, hardcore melódico (sim, i confess) e os clássicos do rock nacional e internacional, reggae e samba. Mas tudo ainda num ecletismo frouxo.

Um vitrola velha na casa de minha sogra, anos depois e os preços ínfimos de vinis e fitas cassetes, começaram a virar o jogo. Uma coleção de uns setenta vinis comprados por cinquenta reais. Passeando pela cidade com o walkman numa altura tão absurda que dentro de um elevador eu era motivo de risos. Até tirar o fone do ouvido e perceber que o som que eu ouvia era mais alto que a por definição: péssima música de elevador. Ah, tinha uma towner que vendia cd’s  também, Big Star, Allman Brothers, Novos Baianos, por R$ 5,9o em São Caetano. Sim era surreal.

Mas foi então que o mago, o bruxo, o drogdealer mor, apareceu em minha vida, me escravizando e libertando por toda eternidade. “Ah, esse cara tem me consumido.” Começou como todo bom sedutor, jogando charminho, mostrando pequenas doses, um cd gravado (meu primeiro) no PC de mesa, com uma coletânea que ia do Velvet Undergound até Sex pistols, passando pela turma de Nova Iorque, Stiff Little Fingers e etc… Depois mais um outro com as pérolas do blues rock: Cactus, Canned Heat, Eric Clapton, Ten Years After, Creendence. Fudeu, overdose, morte, renascimento. Eu era o próprio Renton afundando no tapete da sala com fones de ouvido.

Um escritório meio falido e imenso, com quatro computadores conectados à distante internet para mim na época. Era ali então onde o Escobar da música tirava uns trocados. Fim de expediente, algumas cervejas, som alto, e o precário Kazaa. Kkkkkk Sim, hoje posso abrir a boca e blasfemar, mas naquela altura, foi ele a porta de entrada para outros mundos: Grant Green, Sly Stone, Rory Gallagher, Curtis Mayfield. Música a música, variando de quinze a vinte e cinco minutos por música o download. Ave maria, era gozo total! Abrir o allmusic, pesquisar um artista que gostássemos, ir na seção Similar To, Influenced Buy, Followed By: e meter mão no Kazaa.

Em poucos meses foram vários cd’s de mp3 gravados, outros tantos cd’s originais pegos emprestados, “pirateados” e escutados a exaustão. Um ecletismo que ia aos poucos se dilatando pelo corpo todo, como aquela substância do filme clássico de terror: A Coisa. Passado um ano: 2002, faculdade, pintou uma grana. Computador pessoal, internet discada em casa, melhorando verdadeiramente de vida, duro ainda, mas abrindo minha própria biqueira kkkkk. Dica de um Dj amigo: baixe o Soulseek, é um programa melhor de p2p, pois por lá você pode baixar o disco todo… Meu deus…. Lágrimas me escorrem nos olhos agora só de lembrar. Kkkk

Foram noites e noites, internet caia, voltava, cinco horas pra baixar Xângo/Ogum – Gil & Jorge, e o sorriso estampado de orelha a orelha. Encher o hd, comprar mídias de cd e fazer back-ups, pesquisar e ler tudo que achasse sobre músicas não conhecidas. Catálogo de discos, ordenado alfabeticamente. Foi a minha febre do ouro pessoal. Minha visão de mundo se revolucionando byte a byte na medida em que entrava em contato, com Fela Kuti, Beethoven, Fat’s Waller, Serge Gainsbourg. Lia, escutava, tomava um porre, acordava de ressaca, ligava o discman de mp3 e pegava o busão entre náuseas com a satisfação de ir assistir aula ouvindo Ben Folds Five: Philosophy.

Muito vem se discutindo de lá pra cá, sobre a revolução que a tecnologia e os downloads causaram nas formas de consumir e produzir música. Há quem advogue o colapso do mercado da música por conta da deterioração do mercado consumidor e consequentemente do mercado produtor, alegando a baixa qualidade e a incipiência no surgimento e desaparecimento de músicos e bandas. Existem também os que consideram que os artistas hoje, apesar da dificuldade para conseguir produzir material de qualidade, conseguem se apropriar e lucrar – mesmo que minimamente – com toda cadeia produtiva. O fato é que a reflexão sobre isso não impede a produção artística, que, na minha humilde opinião, está mais ampla e com mais acesso a todos. Na troca de informações, no barateamento dos equipamentos capazes de gravar com o mínimo de qualidade aceitável, no contato entre as regiões e culturas, que possibilitam turnês e a venda de merchans pelas bandas e artistas, assim como contribui para ampliar a visão artística das pessoas.

Pra mim, esse processo foi algo que mudou minha vida para sempre e não somente por conta da música, poderia escrever e acho que vou fazê-lo um dia, sobre o acesso ao cinema. De dentro da favela, tomei contato com Mizoguchi, Bresson, Altman, de Grátissssssss kkkkkkkkkkkkkkk e pude reproduzir para centenas de pessoas, cd’s, dvd’s, pdf’s etc. Se isso é ruim, eu não sei mesmo o que é bom.

O nosso pirata mor, Dell Glover foi o responsavel pelo vazamento de mais de 20 mil discos na internet.

No entanto, preciso voltar ao espaço que é o motivo deste texto. Espaço onde ainda hoje, com torrents e streamings abundando, eu sempre vou pra prestar reverência ao meu sagrado: SOULSEEK. Foi nesse programa onde através de madrugadas a fio, fui conseguindo álbuns completos daqueles fragmentos baixados no Kazaar, foi por lá onde as raridades que não possuíam links diretos a dez anos atrás eram encontradas. E nesse processo, conhecendo nick’s e recebendo dicas, preciosíssimas, pois o programa possui uma função que eu chamo de “busca de intimidade”, mas que poderia ser também algo como: “demonstração de afeto” kkkkk A função é o famoso Browser User Files que lhe permite ter acesso, se devidamente autorizado, a todas as pastas compartilhadas por outro usuário.

Foi assim, que passei a baixar também discografias, a arriscar em nomes desconhecidos, apenas por estarem na coleção de alguém de quem eu só baixava coisas boas. É até hoje um deleite. Certa feita, numa dessas incursões, encontrei um disco raro da música baiana, uma banda chamada Abaeté. Porém, ao consultar o dono da pasta sobre a possibilidade dele me liberar o download, descobri que o cabra era alemão de Dusseldorf, mas que já tinha morado alguns anos no Brasil, o que explicava sua paixão e raro acervo da nossa música. Somos amigos de Soulseek até hoje, passados doze anos.

Talvez o grande diferencial do programa seja exatamente o fato de permitir essa interação entre os usuários, afinal, só conheço esse p2p atuando ainda com tamanha intensidade. Lá você pode também participar de chat’s separados por estilos, num detalhamento absurdo, onde é possível encontrar estilos de eletrônico, metal, funk, rock e temáticas próprias, daquela sala. Mesmo na internet, o contato mais humano ainda conta e muito.

Também importante dizer que o drogdealer me desafiou certa vez, num arroubo de autoridade. “Quero ver se esse programa tem uma banda raríssima!” Mule? Em dois minutos, já estava baixando do outro lado da linha e comemorando uma primeira vitória sobre o mestre. Porque o torrent, ou streaming só é gerado mesmo com uma novidade ou com uma raridade muito apreciada. No Soulseek você tem acesso ao acervo de um velho punk de Cleveland, ou de um rapper mexicano, ou de alguém que curte o rock psicodélico japonês. Pois depois desse “pare-lá” o mestre passou a usar e utiliza até hoje o programa, como um grã-mestre que reconhece o sagrado quando o vê e passa a congregar por lá também.

Deixando claro que esse pequeno texto não tinha nenhum interesse de analisar os aspectos mais profundos sobre a troca de arquivos, livremente pela internet, antes é uma pequeno relato, desses que ouvimos dos neo pentecostais aos gritos nos ônibus. Pois passados todos esses anos, me converti também definitivamente à música em quase todas as suas expressões, seja boliviana ou cambojana. Não cultuo mais os falsos deuses dos gêneros e encontrei a verdade, o caminho e a luz na Música. E minha igreja é o Soulseek.

Venha conhecer a nossa igreja.

Para saber mais sobre a revolução do p2p recomendamos esse documentário sobre o Napster.

Assista o trailer:

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