Soul – animação da Pixar – mistura Jazz, os improvisos da vida e o caráter etéreo do som com grande sensibilidade.
O que faz você levantar da cama? Qual é a fagulha que aquece sua alma e motiva sua existência? O som alimenta, apaixona, encanta e mostra o lado mais belo da vida, mesmo sob os acordes de uma balada daquelas de quebrar o coração. Sabe quando começa a tocar “In a Sentimental Mood” (com aquele feat do Coltrane com o Duke?) Pois então.
Eu vivo pra sentir a paixão dos músicos enquanto eles expressam sua própria verdade, seja por meio de um saxofone ou um groove de 4 cordas. O Jazz é o estilo que mais me chama atenção nesse sentido e sempre o fez, justamente por ser como a vida: imprevisível. Tal qual as linhas do Ornett Coleman, o Jazz pode ser Free, Fusion, Funk e Avant-Garde (para os apreciadores de rótulos), por exemplo.
No entanto, o que blinda o estilo com essa malandragem descolada dos chamados cool cats, bom, essa bússola é o improviso, algo praticamente intrínseco à vida. É nessa dualidade do improviso versus tema que gosto de caminhar e pesquisar sobre música para conseguir fazer análises das discografias que tanto nutrem a mim mesmo.
É dentro dessa verdadeira pangeia – de enfáticas raízes negras – que dialoga com diversos gêneros diferentes, encurtando distâncias estéticas, que gosto de mergulhar e observar o caráter infinito das fusões que esse estilo é capaz de promover.
E é com esse viés filosófico de perguntas como: “de onde viemos?” ou ainda: “para onde vamos?”, que o filme “Soul” – animação da Pixar lançado no dia 25 de dezembro de 2020 – mostra como o Jazz imita a vida, enquanto nos faz pensar sobre nós mesmos e os diferentes caminhos que os improvisos que fazemos durante nossa passagem nos fazem tomar.
A maneira como os diretores Pete Docter e Kemp Powers conseguiram tangibilizar a paixão do personagem principal (Joe Gardner) pela música é inspiradora. O roteiro (escrito ao lado de Mike Jones) se desenrola de maneira leve e orgânica, abordando assuntos de natureza absolutamente abstrata, mas que ressignificam os acontecimentos do filme enquanto o Jazz caminha emoldurando a trilha sonora.
“Soul” é um filme de rara sensibilidade. Fala sobre Jazz, mas também aborda questões como vida e a morte. Joe (dublado pelo Jamie Foxx) é um pianista que se divide entre um trabalho de meio período como professor de música, enquanto corre atrás de seu sonho nas gigs pela madrugada adentro.
Sua mãe condena essa escolha, pois Joe já está longe de ser um garoto e assim como seu pai (também músico), o negrão nasceu pra tocar piano, porém sua coroa se preocupa e muito com a estabilidade financeira do sideman.
Só que aí é que entra o improviso na vida do ser humano. A escola que Joe leciona oferece uma posição integral para o Jazzman, mas ele recusa depois de descolar uma gig com uma grande saxofonista da cena.
Detalhe que tudo isso aconteceu no mesmo dia, curiosamente, o último dia de Joe como residente com CEP na terra. Após deixar esse plano, o pianista – desolado por perder o que parecia ser a maior oportunidade de sua vida até aquele momento – vai parar numa espécie de limbo, coordenado por “Jerrys”, uma espécie de time de gestores (com paciência infinita) que decide quem entra e sai do limbo com direção ao mundo físico.
Em questão de minutos, o pianista sai de Manhattan e vai parar num limbo com uma invocada alma que por lá vagava. A peculiar desalmada atende pelo nome de 22. O papel de Joe nesse cenário é servir como seu guru, dando algum tipo de direcionamento que a permita encontrar um propósito que a cative à ponto de mandá-la para a terra na forma humana. Só assim ele vai conseguir chegar a tempo para o seu show no Half Note.
Até aquele momento, 22 não tinha encontrado seu propósito na vida, mesmo depois de passar por diversos tutores em vários séculos vivendo no limbo. A rabugenta, porém carismática personagem não vê motivo para assumir um corpo e descer para a Babilônia… A selva de pedra assusta o seu eu lírico.
Só que depois de arquitetar um plano mirabolante, Joe convence a cética 22 a ajuda-lo a voltar ao mundo real para recuperar sua gig. O problema é que na hora de executar o planejamento, ambos assumem o corpo errado e aí o enredo é bastante calcado nos desencontros dessa troca e nas diferentes perspectivas que Joe (no corpo de um gato) e 22 (agora no corpo do pianista), possuem sobre a vida, já que que ambos entenderam seus diferentes referenciais.
É com esse enfoque metafísico/transcendental que o filme valoriza a beleza da vida. É no brilho de um solo onde Joe mergulha dentro de si mesmo – entre o mundo espiritual e o físico – para se conectar com suas convicções e ajudar sua comparsa 22 a encontrar seu próprio caminho no Jazz da vida.
Segundo os Jerrys, cada um de nós possui apenas um único propósito durante nossa jornada e é justamente nessa ânsia de encontrar “o sentido da vida” que a história orbita. Nós não possuímos um único propósito. Viver é imprevisível e assustador, mas ao mesmo tempo é poético e libertador.
São com esses paradoxos que a animação da Pixar valorizar o que faz o seu olho brilhar. É como um dos longos solos que o maestro executa no longa… Ele parece chegar no Nirvana e, por mais infame que pareça, ele não apenas se mostra sempre em conexão com o som e o fim condutor é sua alma (“Soul” como já diz no título). Nós precisamos nos encontrar, de fato, mas não precisa ser apenas num lugar específico.
É como acontece nas famosas “Coltrane Changes” (presente na´icônica “Giant Steps”). Se a vida é um padrão tradicional de Jazz, aposte na mudança de acordes e eternize o seu próprio solo de piano, talvez não como o Tommy Flanagan fez nesse clássico (de mesmo nome), lançado em 1960, tampouco como o Joe Gardner, mas sim como você mesmo.
Soul: sensível e emocionante, igual o Jazz, a vida e vice e versa.
Confiram um pouco no trailer oficial:
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