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Sobre Viver: a fênix do reverendo Criolo

O Criolo é um dos grandes oradores do Brasil. Como um peregrino de visão perfeita, guiando um mar de caolhos, seu discurso segue inexorável, expandindo sua própria linguagem, com elementos do Trap, Brega, Baião, Forró e todo tipo de estética que um dia já foi uma oportunidade de depreciar a cultura preta e a raiz nordestina.

Quando a pandemia seguia mergulhada num mar de incertezas, sem vacina, sem auxílio, sem perspectiva, por vezes me peguei pensando sobre o que o Criolo teria a dizer a respeito de todo o caos que se instaurou nesta terra, administrada como uma empresa, por moleque mimados.

Há anos, sua música acompanha diversos maloqueiros com saber empírico. Quando saiu o “Ainda Há Tempo“, em 2006, lembro de ouvir o disco ininterruptamente por meses. Nessa época, o vulgo do Kléber ainda era Criolo Doido e, desde o primeiro play, as palavras do Buda do Grajaú superaram o maior teste de todos: o tempo.

Passados mais de 16 anos, hoje o MC goza de uma liberdade criativa que o permitiu até mesmo gravar um disco de Samba, o sensível e surpreendente “Espiral da Ilusão“, lançado em 2017.

Compositor versátil, sensível e com um flow que afetou profundamente a abordagem do Rap brasileiro, a cada novo capítulo de sua discografia, os ouvintes e a crítica foram arrebatados pelos arrojados rumos criativos do compositor. A urgência das letras e o brio de sua lírica são traços marcantes que o fizeram caminhar pelas linhas e batidas com a naturalidade de um Macunaíma de quebrada.

Foto: Gil Oliveira

Lembro de ouvir o “Nó na Orelha” em 2011 e ficar estupefato. Aquele disco levou o Hip-Hop para outro lugar. Novamente, Criolo foi cirúrgico para criar outro retrato irretocável sobre o cotidiano brasileiro.

Ao longo dos anos, as batidas incorporaram cada vez mais elementos da música popular, além de flertes enfumaçados com o Raggamufin e até mesmo com o Afrobeat. Ao longo dos anos, Criolo também colaborou com diversos mestres do groove, como o etíope Mulatu Astatke, o eterno estudioso do Samba, Tom Zé e a fatal Gal Costa.

Sua lírica e seu flow totalmente avesso a métricas fixas, parecia se encaixar como uma luva em diversas expressões que até então não consideravam o Rap na receita. Com isso, Criolo questionou a própria visão do que era o Rap, principalmente para a crítica, que de início se mostrou um tanto quanto resistente frente às investidas do freguês da meia noite. Ainda neste tópico, o fato do MC só ter começado a aparecer de maneira contundente nos principais veículos do Brasil à partir do lançamento do “Nó na Orelha”, evidencia essa questão.

Nessa época, o vulgo já era mais Doido, mas sua música conquistava novos públicos e palcos com o mesmo fervor avassalador de temas como “Vasilhame”, por exemplo.

Quando saiu o “Convoque seu Buda“, em 2014, lembro de ver o show com banda e concluir – durante um solo de guitarra do Guilherme Held – como sua carreira, tal qual um conto épico, tinha crescido e ido além de qualquer caixinha do mercadológico mainstream.

O motivo? O público já contava com diversas gerações ocupando o mesmo espaço. A música já tinha se tornado inclassificável há muito tempo. As pessoas querem ouvi-lo, não importa como, pode ser num repente do Caju e Castanha ou numa roda de Samba.

Foto: Gil Oliveira

Passados cerca de 5 anos do lançamento de “Espiral da Ilusão”, Kléber volta, marcando (como diria Emicida: O Glorioso Retorno de Quem Sempre Esteve Aqui. “Sobre Viver“, lançado no dia 05 de maio de 2022, é o quinto disco de estúdio do padroeiro da Oloko Records.

Não é papo de coach não, tampouco dicas pra você viver sua vida como um jovem místico. São 10 faixas. Dez ensinamentos sobre a sobrevivência, muitos maiores do que um shadowban barato que o Instagram impõe a quem quer botar fogo nos racistas. Para responder a isso, Criolo esbraveja num loop de 3 minutos que: “Pretos Ganhando Dinheiro Incomoda Demais”. Ele inclusive chamou os meninos de bigodin finin para colaborar nesse novo play.

É de Hariel, uma das vozes em “Pequenina”, com belas arranjos de orquestra do mago Jaques Morelenbaum. Num trabalho que incorpora de Liniker à Tropkillaz, as camadas que formam uma arquitetura sonora forjada em meio a rajadas de tiro, atabaques e um grave padrão Sound System, mostram que Kléber continua fazendo a galera pensar, enquanto bate o pezinho.

Seu novo punhado de pepitas inéditas construiu um disco marcante e de impacto instantâneo. Estreitando laços com o altíssimo nível de produção do Tropkillaz, o MC mais uma vez impressionou na hora de transpor o trabalho de estúdio para os palcos.

E foi isso que pode ser visto e ouvido com a estreia de sua nova turnê, em show realizado em São Paulo, no Espaço Unimed (antigo Espaço das Américas). Com Ed Trombone (percussão, trombone e cavaquinho), Bruno Buarque (bateria, MPC e percussão), Maurício Badé (percussão) e DJ DanDan (vocal), o cronista da Babilônia fez um show que vai ficar na memória.

Esse grupo de experientes instrumentistas merece destaque. Foi interessante perceber como a musicalidade das propostas não perdeu em riqueza sonora, apesar do formato mais enxuto.

Preciso e multitarefa, o trio demonstrou uma interação azeitada, enquanto DanDan e Criolo administraram o show com uma vitalidade e uma paixão de quem sabe que tinha muita coisa guardada no peito.

Foto: Gil Oliveira

“Sétimo Templário” e “Me Corte na Boca do Céu a Morte Não Pede Perdão” deixaram isso claro, categoricamente. A forma como o arranjo de “Sétimo Templário” explode de forma ascendente, transforma a atmosfera da faixa com uma áurea quase celestial, com angelicais backing vocals e uma guitarra rascante ao fundo. Já o tema com Milton Nascimento, trata-se provavelmente da letra mais forte que o carioca cantou na reta final de sua carreira.

Com um set list generoso e completo, Criolo deu foco no disco recém lançado, trazendo também singles que não tiveram a chance de ver os palcos, como “Sistema Obtuso”, por exemplo. Além disso, também foram contemplados clássicos do seu cancioneiro, tanto do “Convoque seu Buda”, quanto do “Nó na Orelha”.

Um performer enérgico e explosivo, foi particularmente marcante escutar “Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer”, ao vivo.

Criolê mostra como também sabe explodir, com ódio na veia, pronto para atirar. MV Bill foi citado de maneira elementar com “Soldado do Morro“, do icônico “Traficando Informação“, seu primeiro disco de estúdio, lançado em 1999.

Um disco de longa e difícil gestação, “Sobre Viver” é um trabalho que cura. É difícil não se emocionar com um artista tão expressivo e verdadeiro com sua própria arte. Para os fãs foi importante saber o que Kléber tinha a dizer. Os tempos são cruéis e apesar de duras, as palavras do compositor são também acalanto.

Foram mais de duas horas de espetáculo. Com os pais na plateia, o filho da Maria e do Cleon mostrou que continua na vanguarda do povo. Pretos ganhando dinheiro incomoda tanto, que o Criolo teve que mandar essa duas vezes.

De solidão aqui jaz Kléber
Na depressão, Criolo caminha

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