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Discos, Resenha

Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2015) – Emicida

Ser radical significa, etimologicamente, tomar as coisas pela raiz. Esse é o exercício feito por Emicida e que nos proporciona um belo registro de suas viagens. Brasil, São Paulo, Bahia, África, são os territórios pelos quais o artista passeou, desterritorializando sua música. Não, não é aquela história de voltar “simplesmente às raízes”, mas aquela outra, que no processo de volta para casa imprime movimento e condiciona mudanças perceptíveis em nosso ser e na percepção que possuímos do mundo ao redor. Na medida em que contextualiza, ampliando a visão de mundo que é a sua, mas também daqueles que o ouvirem com atenção. Com seu segundo disco de carreira Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, Emicida tece um trama poética complexa, para repensar nossa herança africana, num jogo dialético ancorado ao presente, levando-nos a redimensionar as relações de poder que nos constituem enquanto sociedade e abrindo perspectivas de futuro.

As percepções estanques do que seja: hip-hop, luta politica, história, a rua e seus caminhos, MPB, são chamadas para dançar, seja na Augusta, seja pelas ruas de Angola, sacudindo a poeira dos esqueletos ressecados. Levando nessa viagem esses e outros temas e elementos acima citados a entrarem num processo de desterritorialização intensa, nos obrigando a pensar. “Eu não sabia mais onde estava”. Intocada, a África deu inicio à aventura humana. Escravizada e traficada, ela atravessou o Atlântico para criar as maiores expressões musicais da história humana. Finalmente, suas expressões artísticas fabricaram os grandes pensadores do futuro.

O artista que desde o disco anterior busca se apropriar de outras linguagens musicais para além do Rap – sem deixar de ser hip-hop – leva esse experimento à frente e o aprofunda neste Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2015). Num salto primoroso que abala sua própria identidade como música, na medida em que radicaliza as aberturas feitas no trabalho anterior. Não parece existir território musical onde o rap não seja capaz de pisar, arte feita de pedaços e tradições múltiplas, capaz de subverter uma máquina e lhe tornar instrumento. Emicida possui a consciência plena dessa história e, sobretudo, tem se mostrado capaz de explorar livremente esse mar de possibilidades oferecidas pelas artes.

É difícil mensurar o quanto um disco vai marcar época ou se tornar um clássico, porém com esse disco Emicida marca um período em que o rap nacional se afirma como música popular passível de ser consumida por outros grupos sociais que não estejam identitariamente ligados à cultura hip-hop. Sim, sempre foi música, mas com os estilos mais ligados a grupos e posturas politicas marcadamente combativos.

Ah, então quer dizer que o artista suavizou a mensagem? Perguntaria o asno. Não meu caro, ele está em franco processo de redefinição das possibilidades artísticas e nesse movimento atraindo outros olhares para essa música, na mesma medida em que insere definitivamente o rap no pop. Que se atente para o fato de que pop não quer dizer necessariamente música ruim, houve um tempo em que James Brown, Stevie Wonder, Tim Maia, Jorge Bem, entre outros, eram nossa música pop. Só pra dar uma contextualizada, o momento pré lançamento deste disco, foi com o artista no auge do revide ativista, protestando com contundência na Virada Cultural, pra ficar em apenas um exemplo recente.

Musicalmente o disco é delicioso, negociando com ritmos afrobeat, black music, rap, pop, samba. Sempre num clima otimista, mesmo quando cheio de ódio, ele se mantém pra cima, com certa dose de melancolia, mas pra cima e sereno, organicamente pleno. Auto afirmativamente negro, combativo mesmo nos momentos mais leves. Poeticamente complexo como poucas vezes se viu na música brasileira no século XXI.

A diversidade rítmica, a musicalidade ímpar do disco encontra uma estranha unidade com as temáticas que vão se construindo de modo intercambiável: Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, são perceptos, blocos de sensações, palavras quase-conceitos, conceitos trabalhados poeticamente, quatro elementos que de certa forma estruturam o disco. Ou imagens poéticas que são editadas e ligadas uma a outra através do ritmo, na música dos versos e povoadas com problematizações e diferentes olhares. Os problemas são levantados impiedosamente, ora como elegia (Mãe e Chapa), como pílulas poéticas (Amoras e Trabalhadores do Brasil), reescrita da história e auto valorização (Mufete, Baiana e Madagascar) ou como o combate contundente aos problemas (Boa Esperança, Casa, 8, Mandume, Salve Black).

São muitas possibilidades de interpretação, porque rico é o todo, assim como diferentes as partes do disco. Talvez não seja exagero dizer que a diversidade que nos é alertada sobre a África para o despertar da felicidade é aqui copiada, num simulacro intenso do continente. É preciso reconhecer: o território é ritmado e a África é música.

Crianças

A criança como uma figura do pensamento foi muito bem tematizada pelo filosofo alemão Friedrich Nietzsche, que dizia ser o estágio máximo da maturidade, quando o homem é capaz de encarar a vida com a seriedade com que as crianças brincam. Símbolo de inocência, a criança seria o terceiro e último estágio das transmutações do espirito. Tendo deixado para trás as outras figuras: o camelo (carregador dos valores consagrados), o leão (destruidor destes mesmos valores), resta ser criança (puro espirito criador). Por outros meios e fontes, entendemos que Emicida chegou a essa conclusão também.

“Nós tem raiz, mas né poste”. Em Amoras, ele chama nossa atenção para a pureza de pensamento das crianças e sua capacidade de dobrar mesmo a dureza revolucionaria de um Malcon X. Mas, as crianças constituem também o patrimônio máximo que deve ser preservado em si mesmo, educação para novas gerações orgulhosas de suas raízes. Proteger as crianças “dos martelos de juiz, do tempo de consumo absurdo, da tristeza produtora dos rostos deformados daqueles meninos perdidos, eternos Peter Pan”. Ele próprio parece estar em processo de uma compreensão mais ampla dos processos formadores da nossa sociedade, como uma criança que assimila com rapidez, criatividade e perspicácia uma nova realidade.

Quadris

Aquela pequena “amora” cresceu e certamente se tornará Mãe, matriarca, dona da casa e do terreiro, proletária, mulher negra, feminismo das pretas. Mas o que vemos em geral são essas guerreiras tornadas adultas antes do tempo, mães solteiras, as que sofrem com o cárcere dos filhos, com o sumiço de outros tantos filhos (Chapa), na última escala de nossa hierarquia social, último resquício laboral da escravidão: empregada doméstica, limpando o chão dos playboys. Mas também ativista/artista, Drik Barbosa, botando terror no machismo. Beleza negra, amor afro centrado, “cor nagô, tua guia, pele afro inspirando cem sonetos de amor”. As noites de Madagascar inspirando, curando, servindo de território, ou de torso forte para apoiar a cabeça de um alguém, mas buscando reciprocidade para descansar a sua também. Um par para trazer a leveza necessária, Vanessa da Matta, Passarinhos migratórios, fuga da babilônia. Ou a Sodade da terra natal perdida, a Mãe África, cantada num tom de lamento e melancolia por Neusa Semedo.

Beleza, Pureza, Força, Sofrimento das Pretinhas.

Pesadelos

Um pesadelo vivo, carregado pela boa esperança durante milhas de oceano, nos arrancavam lágrimas que, viagem após viagem, foi temperando as águas do Atlântico. Pedradas, xingamentos, somos preteridos, arrastadas sem poder Raia-r, todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Opiniões assassinas na mesma medida que pretendem o falso universalismo humanista. Milhões de filhxs dos orixás, sendo vendidos, mortos, estuprados, suando e cantando suas especiarias pelas feiras, de São Joaquim até Nova Orleans. Trabalhadores e trabalhadoras com suas forças divinas sugadas, extirpadas em todo caso. Vigiando as guaritas e trocando pau, ou tiro com os fugidos. Objeto de estudos, mestrados e doutorados, mais valia existencial, mas nas palestras e seminários com nós você não vai. Reduzi ao estado pré-natal, humildade imposta, virtude que aprisiona e aos poucos reduz a falta de identidade, a imperceptibilidade.

Ufa, acorda-se em Madagascar numa noite estrelada somente para se dar conta que o pesadelo lembrava apenas alguns aspectos constitutivos da realidade atual. PETO, RONDESP, ROTA, são outras tantas Boas Esperanças, que mancham as ruas de vermelho, deixam as mães ao meio dia pedindo informações sobre os filhos desaparecidos. Davi Fiuza e o eterno pesadelo de sua mãe. Reaja ou seremos Mort@s!

Lições de Casa

Do Brasil até África dialeticamente, um caminho reto, numa corrida pelas ruas, encruzilhadas, individuo que presenciamos num processo de autoconstrução. É, a rua é nós. Aprendendo, entre erros e acertos a construir sua casa na música, tateando outros territórios e absorvendo outras linguagens. Percorrendo o mundo, dançando entre céu e terra, abençoado por estar reconhecendo aqueles orixás lá e cá, irmãos, pais e mães. A viagem nos dimensiona, ou nos faz perder nossas dimensões, o que no final das contas dá no mesmo, desde que movimento ativo. Emicida em sua viagem, em seu percorrer de linguagens conseguiu fazer o que os turistas não conseguem, absorver verdadeiramente o que de humano e racial, natureza e culturas outras podemos perceber como o Outro. Uma visão da alteridade capaz de estabelecer nossas diferenças e reconfigurar nossas identidades. Durante as músicas ouvimos: Mundo, Rua, Casa, e o em casa ele constrói na própria linguagem, poeta que é.

A música de Emicida é hoje uma das muitas saídas do caos que vivemos num mundo que a cada dia mais atravessa fronteiras entre raças, gêneros e classes. Atravessamento que ocorre nos dois sentidos: impedimento e transversalidade. Inclusão como consumidor, exclusão social. Artisticamente o Neguin segue numa crescente impressionante, algo que nós entendemos como muito importante para um futuro que por hora segue como arrego ou revolução. Completa indecisão que revela um momento em que o consumo e produção material alcançou patamares nunca antes vistos na história deste país, ao mesmo tempo em que velhos quinhentos anos de problemas parecem não desistir. E nesse clima, entre a presença do passado opressor e a indecisão do futuro, Emicida parece propor que acalmemos o jogo para melhor entende-lo, ao mesmo tempo em que busquemos nas raízes ancestrais capazes de afirmar e combater com a nossa cultura negra. 

Que venham agora os shows, a mensagem sendo divulgada, e que o matador de mc’s continue matando a mesmice na mesma proporção do começo. Assassinando as raízes engessadas, seguindo na busca do conhecimento que é capaz de compreender o presente. Nem se preocupem que esse Simonal, eles não vão fuder, até porque temos várias ruas juntas nessa, aqui e em Sambizanga. Sendo pavilhadas e fortalecidas pelas palavras e ideias desse grande artista brasileiro do século XXI.

Nota: 

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