O Small Axe de Steve McQueen, Reggae Resistência!

A pentalogia Small Axe do diretor inglês Steve McQueen, revela através de filmes ficcionais e cinebiografias, 5 histórias de resistência

Steve McQueen

“I say you’re working iniquity

to achieve vanity, yeah”

Lançado no final do ano passado pelo diretor britânico Steve McQueen, a série Small Axe, composta por cinco filmes, se configura em um excelente estudo sobre a experiência dos imigrantes negros na Inglaterra. Um império erguido às custas da intensa exploração da colonização, da escravidão e expropriação das riquezas de suas colônias e que ainda no século XX, possuía como política a manutenção da pobreza em seu infame neocolonialismo. Política que apesar  da “exportação” de mão de obra negra das ilhas caribenhas, se manteve ao longo do século 20 com nuances sempre perversas e que alcançou o seu auge com a Frente Nacional no final dos anos 70 e começo dos anos 80 , durante o governo neoliberal de Margareth Tatcher.

O diretor inglês traz a luz diversos aspectos dos problemas e das resistências gerados pelo movimento de imigração àquele país, de povos negros das Índias Ocidentias. A Inglaterra, que “recebeu” em seu território um forte contingente de imigrantes a partir da década de 40 do século 20, provindos das terras que explorou ao longo dos séculos, possuía em seu território uma estrutura racista que foi construída ao longo dos séculos de exploração de suas colônias. E é no choque dos imigrantes negros a essa estrutura cruel que os cinco filmes irão se desenvolver, revelando aspectos pouco vistos nos filmes produzidos naquele país ao longo da história.  

E é na diversidade de contextos que o diretor focaliza sua câmera, em histórias que percorrem os 5 filmes e que atravessam 3 décadas de opressão ao povo negro naquele país. E da mesma sorte, evidencia as estratégias de resistência do povo preto. É uma série que demanda contextualização, e que não se explica por meramente mostrar os aspectos divertidos e exóticos do reggae e ou de uma trilha sonora eivada de clássicos desse e de outros gêneros musicais. 

Assim como o direotr polonês Krzysztof Kieslowski produziu um decálogo de filmes que refletiam sobre os valores propagados pelos 10 mandamentos cristãos se configurando em um clássico, Steve McQueen produziu uma pentalogia sobre o povo negro na Inglaterra! Diretor dono de uma filmografia muito forte com filmes elogiadíssimos como Junger (2008), Shame (2011), foi com o multi premiado 12 anos de Escravidão em 2013  que o artista passou a ser mais conhecido em nosso país.  

Os cinco filmes apresentados em Small Axe compõem um mosaico muito poderoso ao mostrar como a música negra é parte fundamental das estratégias de resistência e sobretudo de resgate dos laços das comunidades negras e da história negra na Inglaterra. Já o primeiro filme da série Mangrove, baseando-se em uma história real demonstra essa importância, com as cenas de carnaval com música caribenha. O Magrove foi um estabelecimento comercial que ficava localizado no bairro de Nothing Hill em Londres e que foi amplamente perseguido pela polícia local ao longo de décadas. Essa perseguição gerou um movimento de resistência com protestos contra a violência policial que terminou por causar um processo – o primeiro de muitos – que levou 8 pessoas no tribunal para se defender da acusação que poderia gerar penas altíssimas de prisão. 

“Why boasteth thyself, oh evil men

Playing smart and not being clever?”

Aqui Steve McQueen produz um filme de tribunal que desmascara as instituições racistas inglesas, não apenas a polícia, mas todo o sistema judiciário, procedimento que será explorado nos outros filmes. Notadamente nos episódios que tratam da própria polícia tentando uma campanha de busca por policiais negros (Red, White and Blue), como também em um dos episódios que abordam o sistema educacional (Education). Ponto comum, em todos os filmes, a música negra como elemento fundamental e porque não como suspiro, fortalecimento existencial dos personagens negros. Por outro lado, Mangrove serve-nos para perceber uma transição de gerações entre os imigrantes iniciais que se submeteram ao racismo estrutural Britânico, e uma nova geração com sangue nos olhos!

Sejam nas reuniões no Mangove, e no embrião do famoso carnaval de Nothing Hill capitaneado por pessoas negras de diversas regiões do Caribe, seja na festa do premiado Lovers Rock – segundo episódio da série de filmes – é a música o contorno e a liga mais potente das histórias. As trilhas de cada um dos filmes termina por ser um meta-comentário às violências e opressões sofridas pelos diversos personagens e ao mesmo tempo uma atualização da força combativa e  de resistência cultural da música jamaicana. 

“But the goodness of JAH JAH endureth forever

O filme Lovers Rock todo construído dentro de uma blue party, festas onde os soundsystems eram montados dentro de uma casa e onde cobrava-se ingresso e cerveja e comida típica eram oferecidas, impressiona e já pode configurar como a melhor produção a abordar os efeitos da música reggae no povo preto . Esta tudo aqui, a sensualidade, o amor, os flertes, a política, tudo muito bem filmado pelo Steve McQueen, seja nas reações da juventude negra ao lover rock, ao dub, ou mesmo ao funk norte americano, na melhor cena já feita com a faixa Kung Fu Fighting do Carl Douglas; Porém, apesar de se manter de pé sozinho, Lovers Rock que tem sido celebrado em separado, só alcança a potência desejada se visto junto aos outros 4 filmes que compõem a série. 

Talvez não seja ingênuo pensar que foi exatamente a luta do Magrove e a consciência de um espaço coletivo que possibilitou e ou reforçou a necessidade dos povos negros criarem suas próprias festas. Certamente estamos diante de uma série que foi pensada numa continuidade de histórias que juntas criam um caleidoscópio muito necessário para pensarmos a forma como a Inglaterra “absorveu” e  prolongou as opressões a essas populações em sua própria terra. Vale aqui pensar na ideia que Winston Churchill estadista britânico tinha sobre o papel superior dos anglo saxões. 

Nesse sentido é importante notar como o diretor Steve McQueen faz um escolha muito importante em não mostrar as penetrações da cultura negra na classe trabalhadora branca, que desde o final dos anos 60 – especialmente a juventude rebelde dos mods e skinheads – se aproximavam. Uma escolha narrativa certamente necessária para não passar a impressão de que essas lutas tiveram algum tipo de auxílio da branquitude em seus inícios. Somente tendo uma adesão mais profunda no final dos anos 70 com o clássico Rock Against the Racism!    

Um dos filmes que também atravessam todos os outros em conexões ancoradas pela história é a cinebiografia Alex Wheatle (2020). Quarto filme da série e um dos mais potentes por ligar a história real do personagem ao desenvolvimento das lutas raciais em Brixton, narra a trajetória do hoje escrito através de sua passagem pelas instituições da seguridade social britânica. As torturas, o racismo sofrido, a descoberta da música reggae e como essa o faz pouco a pouco tomar consciência de sua condição de homem negro vivendo na Babilônia. Sua paixão pelos Sound Systems, seu talento para escrever canções e se tornar um MC, quase são totalmente destruídos pela sua prisão durante as manifestações em Brixton. 

“Sharpened to cut you down”

Na cadeia um velho rasta lhe educa e de certa forma termina sua educação ao lhe mostrar a importância deste descobrir sua história, do seu povo e cultivar a leitura. Um talento que aflorou na prisão, tendo passado por imensos sofrimentos ao longo da vida, e que pode ser linkado imediatamente com o último filme da série: Education

Ao longo de todos os filmes somos levados a perceber a crueldade das instituições britânicas, e em Education a mira é apontada para o sistema de exclusão das escolas públicas durante o governo de Tatcher. Episódio tragicômico presente nessa série é um dos professores racistas e incompetentes tentando cantar House Of The Rising Sun, uma música sobre prostíbulos do The Animals, para uma classe com diversas crianças neuro diversas. Mais uma vez é através de estratégias comunitárias que a possibilidade de lutar contra o sistema é dada. 

A trilha sonora compilada no spotify com o nome de playlist não para de tocar aqui em casa. rocksteady, ska, dub, lover rock, roots reggae, e mais funk, soul, rap e música caribenha, são mais de 4 horas de todas as músicas que tocam ao longo dos episódios e mais alguns acréscimos. É ouvir e imediatamente ser levado às cenas, a relembrar personagens, e rememorar as impressões fortes que os filmes constroem em nós. Além dos grandes nomes da história da música jamaicana e negra, há nomes menos óbvios aos neófitos e porta de entrada para ampliar o conhecimento sobre a música jamaicana da ilha e a feita no seio do Império!

“If you are the big tree

We are the small axe”

O que nos fica impregnado é o sentimento de comunidade, e de como somente através dela podemos lutar de modo efetivo. O nome da série foi retirado de uma das canções do The Waillers, grupo clássico capitaneado por Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Wailer, presente no disco Burnin (1973). Small Axe é o pequeno machado capaz de derrubar quem se acha uma grande árvore, uma composição de luta para o povo preto buscar sua libertação por todos os meios necessários. E vemos isso ao longa da série de filmes, através dos personagens, no enfrentamento às raízes racistas da “grande árvore”, na construção de espaços coletivos comuns de diversão e de promoção das heranças culturais que atravessaram de volta o Atlântico.     

Os filmes podem ser facilmente encontrados no cine torrent, e deixamos abaixo a trilha, esperamos que a Amazon Prime lance essa série em seu catálogo nacional o quanto antes. Busquem assistir e ouvir Small Axe, é coisa forte! 

-O Small Axe de Steve McQueen, Reggae Resistência!

Por Danilo Cruz

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