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Servo & Chiarelli lançaram um disco que é uma reflexão profunda sobre cenário do rap atual

Servo

O MC Servo e o beatmaker Chiarelli lançaram um disco interrogando musical e poeticamente o rap nacional atual!

Cria da Baixada Fluminense no Rio de Janeiro, o MC Servo estreou em disco com a produção de beats a cargo do beatmaker Chiarelli. Em “Hiato entre a Necessidade e o Ego”, a dupla nos entrega uma profunda reflexão sobre o cenário do rap atual no Brasil, ao longo de 15 faixas embrulhadas na estética do boombap sujo e do drumless. Um dos grandes discos do underground nacional, a pedrada chegou nas plataformas digitais a cargo do selo Sujoground. 

O disco foi lançado no dia 10/10, aniversário do filho do Servo, que serviu de inspiração para a produção da capa, onde ele aparece como a cara metade do artista. Este signo visual dialoga bastante com a integridade artística e com as ideias de desenvolvimento cultural que o MC dichava ao longo de suas músicas. Como se, mais do que um disco para o seu filho, a obra fosse a realização de sua criança interior, dedicado para todas as outras crianças sonhadoras e merecedoras de dignidade.

A intro “Eu Queria Ser Feliz” que abre o disco, sampleada por Chiarelli da música “Cais” do famoso disco do Clube da Esquina de Milton Nascimento & Lô Borges, nos parece um excelente ponto de partida. Pois, constitui um comentário cifrado e intertextual sobre as possibilidades de criação entre o cais seguro da música comercial, do rap pop tão em voga e a capacidade de driblar o desejo por sucesso, para navegar os mares da criação. É exatamente o que vai nos oferecer criticamente a faixa seguinte: “Ego”.   

Entre a “Necessidade e o Ego”, o MC Servo segue no fio da navalha de ser um artista negro e periférico que faz uma música rap fora dos padrões exigidos pela indústria. Em um país como o Brasil, em que mesmo no underground, os poucos artistas que conseguem algum nível maior de visibilidade são brancos, manter o “Hiato” entre o que se necessita para viver com o mínimo de dignidade e controlar a vontade de entrar no jogo, é um exercício de desindividualização.

“Que diminua Eu, para que minha arte cresça”

Ao citar Van Gogh e Cartola como inspirações, Servo se alia a dois nomes que apesar da genialidade nunca de fato conseguiram viver de sua própria arte e somente no segundo caso, houve um pouco de reconhecimento, já no fim da vida. Porém, segurar o “Hiato entre a Necessidade e o Ego” é o que o MC vai nos oferecer a partir da faixa 3: “Cordilheira dos Andes”, respirando o pouco oxigênio que altas altitudes possibilitam.  

A produção soturna do Chiarelli ao longo de todo o disco brilha, e na música “Ave de Rapina com Cara de Ganso” ele brinca na construção de um dos melhores beats de 2024. Dentro do modo de fazer que ficou conhecido como drumless, ele elabora um beat que começa entre loops de bateria e piano, expressando musicalmente as ilusões desejantes do que Servo rima. Relógios caros, uma favela onde os menores estão inseridos em atividades culturais, uma relação plena com o seu menino, vinganças bem executadas, para uma virada onde um sample de guitarra dará o tom melancólico para a descrição mais realista do caos em que vivemos, onde punchlines não resolvem a vida de ninguém. 

Obviamente, há uma urgência latente que percorre todo o disco, que comunica com outros tantos artistas que depositam suas fichas nas suas criações, buscando viver dignamente com a sua arte. A faixa homônima ao disco trabalha essa pressão de modo ambíguo, pois o Hiato acima referido, e presente nos títulos do disco e dessa música, se refere sempre aos “perdedores”, os artistas citados são quase sempre os malditos.

No exercício de se desindividualizar, Servo assume o papel de um cronista, uma espécie de Superego fundado nos valores da cultura Hip-Hop. Se ele parte das reclamações, dos protestos, das vivências que lhe são mais próprias, termina por alcançar pautas que são coletivas. “Três Fontes” vai nessa linha, entre os desejos individuais o que lhe incomoda são os problemas coletivos, em favor da vida. 

Em “Tá Difícil Ser Eu sem Reclamar de Tudo”, um boombap da safra do Chiarelli, segue aprofundando as reflexões sobre o que se quer e o que se tem, tipo um professor que incentiva estudar para ter um vida melhor e vive endividado. Tudo isso, mesclando referências que vão de Fernanda Abreu a Rachmaninoff. Em “Necessidade”, o MC da Baixada rima como Miró da Muribeca, através da janela do ônibus, e nos leva por uma viagem sobre os nossos desejos de dignidade e os obstáculos seculares. 

Nessa música, Servo destila suas vivências de modo muito profundo, ao contextualizar suas influências – Don L – e como ele hoje é referência para os que vivem o que ele já viveu. “Estranho no Ninho”, que retira o seu título do clássico cinematográfico de Milos Forman, começa com um sample do filme Coringa (2019), deslocando essas referências para a constituição cruel de nossa sociedade colonial. Voltando à questão do rap underground, uma lírica mais intrincada, o negro no Brasil não é visto nesse lugar, no lugar do experimentalismo, da construção de uma música desafiadora, que rompa com os formatos mais simples de canções pop. 

Em seu disco, Servo entrega 15 faixas que trabalham o tempo inteiro de sua duração, o apuro sonoro e poético de um rap realmente underground, com cheiro de favela, de suas vivências reais, de suas pautas mais fundamentais. Ao mesmo tempo, que constroi um “Eu Lírico”, fora da curva que não fala a língua do dia a dia, mas faz a diferença. Foge do comum, do ordinário, das reificações tão em voga nos trappers e rappers de sucesso. Ao que parece os brancos que vez por outra escolhem um objeto do rap para inflar, ainda não chegaram no Servo, e nem nos outros excelentes exemplos que possuímos de MC’s que fazem realmente algo inventivo… 

Com “Eu Quero Uma Casa No Campo” temos um respiro com o MC se fortalecendo, na beira mar, porém sem perder atenção aos perigos que cercam um homem negro. É preciso uma casa no campo mas é necessário também um ferro malocado para auto proteção. A participação da braba Janvi em “Coro com Coça” traz uma de encontro amoroso, deliciosamente poético sobre relações de modo descontraído e festivo. 

Tanto em “Motivos Plausíveis” quanto em “Desengano da Vista”, Servo reafirma suas diferenças a tudo que está posto no cenário do rap nacional, com críticas muito bem elaboradas, ao contexto social, político e estético, através de uma poética muito própria. Já em “Hiato”, a citação de Rubem Alves, um dos grandes educadores do nosso país, mas infelizmente pouco conhecido, tem a participação de Matheus Coringa. Os dois MC’s desenvolvem a ideia de lidar com o sofrimento e seus efeitos, uma “estética da insônia” e da inconformidade. 

O disco se encerra com a pesada “Pé no Chão Canela Russa”, que traz a participação do excelente “qualqpa” que lançou o pesado EP “$audosa Maloka”, no ano passado. Com direito a interpolação do verso do Froid no “Favela Vive”, Servo projeta seus desejos de dignidade, porque o discurso de viver bem com pouco é romantização da pobreza e não é esse o seu desejo. Um disco que conceitualmente discute com propriedade as questões que atravessam como uma espada, as questões referentes à indústria musical e o rap nacional, escute.

-Servo & Chiarelli lançaram um disco que é uma reflexão profunda sobre cenário do rap atual

Por Danilo Cruz 

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