O filme Easy Rider (Sem Destino, na versão em português) é uma obra essencial em vários aspectos. Primeiro, porque é um filme que dialoga com seu tempo e com o mercado do cinema sem perder sua carga de significações, seu caráter artístico. Segundo, porque há em seu conteúdo uma mensagem muito precisa: “a luta pelos sonhos e utopias não é brincadeira. O preço pela liberdade é alto”.
Sobre essas bases é que começo esse texto e levanto a seguinte pergunta: Quanto estamos dispostos a pagar por nossa liberdade? Bom, alguns dirão que essa pergunta é frágil visto que teríamos que definir muito bem o que é liberdade, pois o que a palavra significa para alguns, nem sempre tem o mesmo sentido para outros. Ou, outros dirão que a pergunta é impertinente porque a maioria das pessoas prefere a segurança do cotidiano pré-estabelecido aos riscos associados a busca pela tal “liberdade”. Certo, é preciso definir liberdade e levar em consideração a realidade de que a maioria das pessoas está acomodada com sua servidão voluntária e prefere sentar em frente a televisão e esperar aquilo que a sociedade tecnológica ocidental tem a oferecer. Mas, continuemos.
Entendemos aqui a liberdade no sentido político da palavra. Não no sentido individualista ou subjetivista. Devemos ir além do que cada um compreende por liberdade, pois aí, cada um terá sua própria definição – e isso é muito válido. Não há problema nenhum nisso. Porém, no que concerne ao caráter ideológico e político do termo, precisamos entender que a liberdade deve ser pensada como a possibilidade real e irrestrita de escolha e ação que todos os indivíduos devem possuir perante a realidade humana. Ou seja, a liberdade do indivíduo no sentido de pensar e ser aquilo que se auto-determina. A liberdade de acessar todo conhecimento produzido pela humanidade e de poder também contribuir livremente para a sua continuidade.
A contracultura dos anos 60 ilustra bem essa ideia. Havia um movimento da juventude que exigia a possibilidade – em um mundo cada vez mais padronizado em termos culturais devido ao surgimento da globalização econômica e da expansão dos meios de comunicação – de pensar diferente daquela lógica patriarcal judaico-cristã utilitarista constitutiva da civilização ocidental da segunda metade do século XX. Eles pregavam essa nova postura pois estavam percebendo que os avanços da sociedade capitalista haviam produzido também fenômenos muito nocivos.
Easy Rider pode nos ajudar a compreender um pouco sobre esse processo de libertação dos códigos da cultura hegemônica proposto pela contracultura dos anos 60. Peter Fonda, Dennis Hopper e Terry Southern, os roteiristas da história original (sendo Hopper o diretor do filme), estavam bem antenados com os acontecimentos de seu tempo e utilizaram, de forma genial, a linguagem do cinema para apresentar algumas contradições de sua sociedade a partir desse fenômeno cultural de busca por uma liberdade ideológica em relação ao sonho americano do pós-guerra.
Algumas cenas do filme esclarecem questões citadas aqui, como as passagens que ilustram esse tal “preço” a pagar pela busca da liberdade. Não podemos esquecer que, ao final dos anos de 1960, a guerra-fria estava em seu auge e a dicotomia entre capitalistas e comunistas era mais que evidente. O movimento hippie propunha o desbunde. O abandono dessa visão maniqueísta de mundo. Propunha uma radical abstenção dos valores da sociedade ocidental e uma veemente negação das doutrinas revolucionárias do proletariado. Era tempo de paz e amor, embora muita guerra. Mas, esse posicionamento pacifista também gerava atritos e a desconfiança de outros. A simples mudança de estilo de vida já se demonstrava uma tarefa nada fácil. Pregar uma vida mais equilibrada com a natureza e não-consumista, viver em consonância com isso implicava suas próprias contradições.vv
Se isso é ser civilizado, nós somos selvagens
“Get your motor runnin’/ head out on the higway/ looking for adventure/ in whatever comes our way”. Canta a banda Steppenwolf na música emblemática Born To Be Wild, tema do filme Easy Rider. Um grande hino de convocação para a nova jornada. Cair na estrada é uma chamada literal e metafórica. Não é apenas ter uma motocicleta que conta, mas jogar-se no mundo. Estar disposto a ser o próprio veículo de libertação. Acelerar o motor e transpassar os limites do pensamento ocidental. Porém, as altas velocidades exigem maior cuidado. Uma curva acentuada adiante ou óleo na pista podem causar acidentes fatais.
Wyatt e Billy (os personagens principais do filme) não estão preocupados com isso. Eles precisam viver e chegar a tempo de curtir o carnaval do Mardi Grass, em New Orleans. Enquanto as famílias continuam seu dia a dia. Os homens vão ao trabalho e depois ao bar. As crianças brincam e estudam nas escolas. Enquanto a América (na verdade os EUA) se firma como a maior potência mundial e as donas de casa se abastecem de eletrodomésticos desenvolvidos a partir da tecnologia bélica, os dois protagonistas de Sem Destino levantam uma grana traficando certa quantidade de cocaína do México para o país do tio Sam. O dinheiro da transação custeia a jornada.
Quem assistiu o filme conhece sua beleza. Tanto em termos de fotografia (com belíssimas paisagens do interior dos EUA), como em termos de trilha sonora. Há um maravilhoso casamento entre imagens e música. Ideias e canções. É interessante perceber o poder da trilha sonora. Certamente que a música tema é mais famosa que o próprio filme. As canções, tomadas isoladamente, são pequenas células que compõem o corpo. Esse corpo seria a história que é contada, ou seja, a busca pela liberdade individual.
Em cada uma das canções podemos notar o reflexo dessa ideia geral. Elas versam, cada qual a sua maneira, sobre a questão da liberdade. “Alright, ‘cos I got my own word to look through/ and I ain’t gonna copy you” – diz Hendrix em sua If 6 was 9, demostrando clara aversão em relação aos colarinhos brancos (citados mais a frente na canção) e sua moral cristã corruptível. Em, If you want to be a Bird, a letra sugere: “If you want to be a bird/ Why don’t you try a little flying”. A libertação é um processo, e portanto um movimento. Liberdade exige tomada de ação. Porém, tudo tem seu preço. Em Ballad of Easy Rider, os Birds anunciam: “All he wanted/ was to be free/ And that’s the way/ It turned out to be/ Flow river flow”. A canção embala a cena em que Billy é covardemente assassinado por dois caipiras preconceituosos enquanto dirigia sua motocicleta na rodovia. A busca por sua libertação terminava ali. Talvez a real liberdade esteja nos esperando do lado de fora das fronteiras da vida.
A morte é apenas um dos aspectos do problema. No caso, o filme aponta sempre para a vida e o fluxo do movimento, o que não exclui a presença da morte – como na cena da viagem de LSD que os protagonistas e mais duas prostitutas vivenciam em um cemitério. A sequência nos sugere a morte simbólica dos personagens através de sua experiência psicodélica. Uma morte para o mundo da razão aristotélica e cartesiana. Uma abertura para outro fluxo de energia e sentimentos. Embora estejam no cemitério, eles brindam e transam com as mulheres. Eles estão vivos, mas também entram em estado de paralisia catatônica.
Em um determinado momento, Wyatt jaz enquanto cristo nos braços de uma representação da virgem Maria, encenando a famosa La Pietá. É momento de morte e ressurreição. A viagem interior do cemitério lembra muito as descrições de Timothy Leary em seu livro A Experiência Psicodélica, um manual baseado no livro tibetano dos mortos. O profeta do LSD cita o Dr. Evans-Wentz: “Para aqueles que passaram pela experiência secreta de morte pre-mortem, a morte é justamente uma iniciação, conferindo, assim como faz o rito iniciatório de morte, o poder de controlar conscientemente o processo de morte e regeneração.”
Antes ou depois de cada situação que ocorre no filme, dois elementos sempre estão presentes, além, claro, da nossa dupla de protagonistas. A motocicleta e a estrada são importantes para se entender esse fluxo da vida. As rodovias são como as veias de um Estado- nação, elas conectam zonas distantes entre si. Por elas passam pessoas e coisas. Nos Estados Unidos, a rota 66 ficou famosa por alimentar o sonho de muitos estradeiros em cortar o país de leste a oeste. Como se a estrada representasse a fuga do cotidiano massacrante, a busca pelo novo e o encontro com liberdade. A motocicleta, elemento marcante do ideário americano, sempre esteve relacionada a rebeldia juvenil e sua energia pujante.
O filme O Selvagem (1953), com Marlon Brando no papel de um jovem rebelde insatisfeito com os códigos pré-estabelecidos, delimitou essa fama das motocicletas. A imagem de alguém pilotando uma moto em uma estrada envolvida por uma bela paisagem é uma desgastada metáfora da liberdade. A estrada representa a via por onde a vida se estende e a máquina sobre as duas rodas a energia e o movimento. Easy Rider utiliza essas imagens para marcar e definir sua mensagem – a libertação é um movimento. E como na velha história do caminhante, mais importante que o destino é a jornada. Talvez, possamos comparar a viagem de Wyatt e Billy com as velhas tradições de peregrinação, onde as iluminações acontecem enquanto se percorre o caminho. Ao final do trajeto há o concretizar da mudança. A transformação interna dos indivíduos.
Pedágios instalados na rodovia liberdade
No final dos anos 60, o período da contracultura hippie chegava no seu auge. Ele era caracterizado por uma série de ações isoladas ou em rede que propunham formas diferentes do indivíduo se relacionar com o mundo existente. Uso de drogas psicodélicas, formação de comunidades alternativas, militância ambiental, etc. Haviam muitas frentes de batalha pela busca de um novo estado de consciência e da superação da ética belicista e consumista da civilização ocidental. Era uma época de radicalidades. Hoje, muitos frutos que foram plantados naquela fase áurea estão amadurecendo. Wyatt e Billy puderam observar, durante sua viagem, o elevado custo que aqueles pioneiros tiveram que bancar por suas escolhas. Puderam vivenciar na própria pele esses problemas.
A primeira dessas dificuldade que o filme apresenta é a da complexidade de fatores para a manutenção das comunidades alternativas. Muitos daqueles que aderiam ao estilo de vida dessas comunidades, estabelecidas na zona rural, eram de origem urbana. Acostumados com o sistema de compra e venda de produtos no mercado, em suas comunidades teriam que aprender a auto-suficiência. Há uma cena do filme em que rapazes e moças aparecem semeando um solo seco e estéril. Muitas vezes, a falta de conhecimento desses indivíduos em relação ao cultivo da terra e a localização das comunidades em áreas de solos não agricultáveis impedia a manutenção e o desenvolvimento das mesmas. São muitas as histórias que conhecemos do fracasso dessas comunidades hippies dos anos 60, exceto em casos raros.
O preconceito das pessoas comuns em relação aos indivíduos que buscavam essas novas configurações de existência muitas vezes acabava em ódio e violência. Essas novas abordagens em relação à vida e a sociedade eram acompanhadas de um estilo próprio de comportamento, vestimenta e fala. Os cabelos compridos, as roupas coloridas e o linguajar dessa juventude incomum ameaçavam os códigos de conduta estabelecidos.
No filme, é possível acompanhar esses pontos de tensão provocados pela discriminação, como por exemplo, no momento em que os protagonistas estão em uma lanchonete, acompanhados do jovem e relapso advogado George Hanson (que haviam conhecido na prisão), e são hostilizados por um grupo de homens locais. Então, resolvem sair do estabelecimento antes que ocorra um confronto. Porém, quando fazem seu acampamento na beira da estrada para passarem a noite, são surpreendidos, no meio da madrugada por aquele mesmo grupo da lanchonete que espanca o advogado até a morte.
Simples preconceito contra forasteiros e hippies. Ou seja, a ruptura com o modelo cultural imposto é literalmente um risco de morte. É esse tipo de situação que nos faz pensar que todas aquelas pessoas que encampavam a contracultura (jovens que abandonavam seu antigo estilo de vida para experimentarem o novo) estavam dispostas a pagar um alto preço pela busca de sua liberdade. Não foi um parque de diversões ou uma festa rave o movimento contracultural dos anos 60. A busca pelo prazer e libertação exigiam também disposição para enfrentar os riscos.
Easy Rider nos apresenta esse outro lado do chamado hippismo ou movimento de contracultura dos anos 60. Apresenta parte da conta que foi paga por aqueles que ousaram buscar o novo. Atualmente, parece que as ideologias se arrefeceram e o individualismo pragmático impera. Mundo em que a juventude se tornou utilitarista. É praticamente impossível pensar que nos dias atuais alguém esteja disposto a pagar qualquer preço que seja por um ideal. Principalmente por ideais utópicos. Utopia virou um palavrão para as novas gerações.
Para os jovens do século XXI, a palavra liberdade está associada à capacidade de consumo, à seu nível de aceitação no mercado profissional. Liberdade é o sucesso financeiro. Não há grandes questionamentos em pauta. Se há insatisfação nas ruas, nada passa de ligeiras necessidades não atendidas que impelem os incomodados a se movimentar. A velha frase de John Lennon faz muito sentido: “O sonho acabou”.
De qualquer forma, quando discutimos, na realidade atual, questões como sexualidade, direitos humanos, sustentabilidade, espiritualidade, etc; estamos adentrando em determinados campos de nossa consciência humana que foram expandidos, em grande parte, por essa magnífica experiência psicodélica ocorrida no período retratado pelo filme. E o que podemos perceber é que essas importantes conquistas se concretizaram na base dos erros e acertos. No experimentalismo existencial. Tempos de glórias e derrotas. Sem dúvida, a luta pela liberdade é para aqueles poucos que não se contentam com o utilitarismo vigente.
https://www.youtube.com/watch?v=cbq3qam0TqU