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Discos, Resenha

Selvática (2015) – Karina Buhr

Karina Buhr

Selvática (2015) - Karina BuhrEm Selvática Karina Buhr cruza referências e temas produzimdo um dos melhores discos do ano.

“Ela come a selva de fora, ela vem da selva de dentro, ela pare a própria hora, ela pare em pensamento”. Excelente forma poética presente em Selvática que encerra uma disposição para a compreensão plena da alteridade, da diferença e das minorias, de um devir mulher irresistível, forte e alegre. 

Esse refrão que encerra o disco da Karina Buhr poderia ser aqui apresentado como o ritornelo que atravessa todo o disco. Ritornelo esse que apesar de integrar a última faixa é usado aqui para demonstrar logo de cara sob qual território essa guerreira vai nos conduzir, ritmando de várias maneiras nosso trajeto tortuoso, lugar onde nós muitas vezes nos negamos em estar: o lugar da equidade de gênero.

Hoje vivemos um tempo de discussão ampla dos movimentos sociais, onde os modos de ser tem se configurado em objetos de contestação politica. A prova do Enem deste ano causou estardalhaço nas redes sociais quando colocou uma das suas questões sobre o pensamento da escritora e filosofa francesa Simone de Beauvoir. Questões, como o lugar da mulher na sociedade, o feminicidio, feminismo negro, sororidade, aborto, são questões que vem ganhando forte e estão aparecendo agora entre nós e causando furor (pelo menos ao grande público). Porém uma das lições mais importantes da filosofa francesa, a cantora e compositora baiana criada no estado de Pernambuco, parece já ter assimilado muito bem: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Karina Buhr assume em seu último disco essa posição contra o essencialismo, o que de certo modo conduz magnificamente sua poesia e música por um caminho de certo modo inaugural.

Selvática se coloca politicamente situada dentro do espectro feminista, porém não é um simples panfleto. Uma das coisas mais chatas na música são obras meramente panfletárias e Karina compõe suas próprias linhas de fuga desse e de outros “esquema-otários”. Outros indices podem ser levados em consideração,  a começar pelo fato de Selvática ter sido lançado com dinheiro arrecadado por crowndfunding. Depois pela capa do álbum estampando uma linda foto da artista com os seios amostra segurando um punhal – foto essa que o Facebook censurou. Alternativa sim, mas aos esquemas padrões de produção e buscando uma estética que rompe com o senso comum.

Se não bastasse essa independência e iconoclastia, a compositora convoca através de suas músicas devires-animais, devir-mulher, outras possibilidade de ser (torna-se mulher) para fazê-los debater no âmbito dos afetos e dos ritmos uma outra percepção micropolítica. Um monstro, uma leoa, guerreiras do Daomé, a cidade como personagem em disputa, são outros tantos devires capazes de romper a apatia dazamigas, de contra efetuar o machismo, repensar nosso assustador e imóvel cenário macro político atual, criticar a cidade como um local que tem se tornado inabitável para as (os) selváticas (os). Um disco de resistência na forma e no conteúdo.

Tudo isso é obviamente recheado ou empacotado com formas musicais também insurgentes, passeando por ritmos, punk, reggae, balada, que são antes acelerações e lentidões desses devires. Trilhas sonoras onde os personagens convocados nas composições aparecem cheios de vigor, crítica, lamentos irônicos, posições de batalha. Pataxó montada numa jaguatirica, Tuareg se deslocando lentamente num camelo, mina de São Paulo a pé pela Augusta.  E não é força de expressão e nem metáfora. Em Selvática Karina Buhr brinca com as palavras, com os ritmos e as melodias de forma a não encontrar unidade, senão no reconhecimento das diversas lutas. Com as diferenças pivotando em diferentes direções encaminhadas pelas letras, pelos ritmos e melodias, um a cada vez respondendo a um determinado chamado.  Desse modo produzindo um outro tipo de disco, outras paisagens sonoras e outros corpos, possibilidades de outros modos de existência. Um disco molotov, um disco punhal-ponta de lança, um disco esmalte, uma trilha sonora para as ruas de São Paulo ou para a beira do Nilo.  

A abertura com Dragão talvez já nos dê pistas suficientes para entendermos qual é a pegada daí por diante: “A tristeza é amiga da Onça, ensina a enfrentar leões”. Karina encontra um belo equivalente, mesclando a hierarquia animal calcada nos instintos e na força, para justamente contestar a posição cultural, social e política da mulher. “Passar por cima de uma coisa que tá no lugar da outra”. Demonstrando num reggaezinho delicioso (com pitadas de dub) qual será daí pra frente sua postura. A tristeza ancestral que o patriarcado tenta infligir nas mulheres as ensinarão como lutar.

E sabemos todos que os poderes entristecem causando apatia, Eu sou um Monstro vai nessa ferida. Transmutando-se a cantora larga a real de sua posição construída por séculos de opressão. Da rivalidade fabricada historicamente entre as meninas que precisam disputar quem é a princesinha do baile, necessariamente recebendo como prêmio o príncipe encantado. A música trabalhada num ritmo mais lento e cadenciado, onde a cantora vai suavemente cantando para encontrar o poderoso refrão com a parede de guitarras e toda a banda montando o equivalente sonoro da poesia expressa. Somos companheiras e dentro dessa perspectiva que está dada: eu sou um monstro!!

Conta Gotas reflete numa poesia mais intrincada, cantando o sofrimento do feminino, combinando essa complexidade poética a um mix de música eletrônica e banda orgânica. Uma combinação deliciosa que demonstra o quanto o disco é rico de timbres e propostas musicais. Com uma banda afiada dos sopros à bateria, percussão colocada cirurgicamente pra compor os beats. Um flerte com o fluido, com o liquido, talvez com a liquidez dos nossos relacionamentos que buscam fugir do encarceramento conjugal. Fuga que recai (muitas vezes por seu caráter reativo) em outros sofrimentos e numa liberdade de abismo.

A quarta faixa de Selvática, Pic Nic, tem cheiro de briga de casal, churrasco, cerveja sem gelo, duas crianças de relacionamentos diferentes, incompatibilidade de preferências e desejos. Mas – calcada num ritmo punk – cheira à mulher decidida, indisposta para dramas conjugais. Um grito de guerra direcionado a relacionamentos claustrofóbicos. Outra agressão que nos leva a pensar sobre o nosso lugar e a pensar também os lugares subjetivamente e socialmente aceitos. As feministas reclamam por conta das reações nas redes sociais sobre campanhas como #meuamigosecreto ou #meuprimeiroabuso, o fato é que determinadas formas de pensar não aceitam a agressão verdadeira e limpa, a denúncia ética. Capazes de expor o rídiculo de certas posições assim como de nos fazer repensar, de nos colocar-mos no lugar do outro.

Esôfago caminha no rastro de desvendar em seus 2:43 minutos o contexto criminoso em que acontecem muitos feminicídios. Assumindo ironicamente o papel do machista, Karina desmonta a máquina paranoica que justifica a violência contra a mulher, em muitos casos indo ao assassinato, como frutos do amor. A banda que acompanha a cantora e compositora em Selvática é um petardo, contando com as guitarras de dois dos maiores nomes do instrumento em nossas terras: Edgard Scandurra (Ira!), Fernando Catatau (Cidadão Instigado), acompanhados com luxo pelos não menos geniais Guilherme Mendonça (Guizado) e Manoel Cordeiro.

O direito à cidade (Estelita), a mulher assumindo e delirando em todos os nomes da história, Cerca de Prédio é a música que fecha a tríade punk em sequência e vai na linha das Mercenárias. Uma filhota de pai ausente, que deixa as mamães mega orgulhosas pela combatividade, pela consciência do tempo em que se vive. Vela e Navalha decreta as maldições que os canalhas deveriam encontrar, como uma espécie de carta para alguém que passou por nossas vidas e que nos fez sofrer.  “Quando você escorrega, te peço nada, te desejo um centro de ouro, que o teu cavalo sele, que no teu caminho vele navalha. Todo mal fazer do mundo, fazendo corte profundo, como a unha na cerra, areia clara, terra no olho”. A guitarra e sua virtuose desfilam tranquilamente, enxergando possibilidades maravilhosas para a música e concretizando as visões com um solo final impressionante.

Rimã parece evocar os tempos da Comadre Fulorzinha (que minha amiga Mila Mendonça me apresentou há muitos anos atrás) encontrando aqui uma revigorante atualização. O trompete inserido com uma frase que parece uma conclamação doce à postura alegre e revolucionaria capaz de compreender as deidades de África, como outras forças aliadas. Composição de nosso imaginário mais poderoso, uma aerodinâmica do certo, certamente, por que instrumento de encontro e empoderamento de muitas mulheres. O feminino no nordeste das nossas ancestrais cantigas de roda que construíram durante muito tempo estratégias de resistências através desta forma expressiva.

O reggae volta agora para falar da vida de muitos que recebem decretos de morte em nosso país, seja pelos tribunais do Facebook (o mesmo lugar que proibiu a foto do dorso nu da artista), seja dos esquadrões da morte oficiais. Alcunha de Ladrão tenta uma visão humanista que se para muitos é óbvia, é descartada pelo julgamento moral das boas almas, daqueles bons cidadãos, filhos de famílias bem construídas por papai e mamãe:

Não era esse seu oficio, nem o que sonhava para si, mas a fome não mede o porvir, e exigi na pança o peso, se leso consegue fugir, não entende como passou, só sabe que precisava, não teme quase nada, suas asas que seguem inteiras, pairam beira do perigo, não tem vicio praticamente, não sente arrepio na vista, não tem quase medo de nada, mas teme ainda a policia.” Forte o suficiente para fazer refletir pelo menos qualquer pessoa que entenda o ser humano como uma construção em um determinado meio dado. Mas que infelizmente não comove de verdade a muitos.

Quando em Selvática encontramos uma música que poderíamos chamar de romântica, não acredite não tá? Karina Buhr está mais interessada em desvendar prazamiga e prozomi mais atentos as artimanhas e os mecanismos que historicamente se deram de forma naturalizada como frutos da história, por que sempre foi assim. Naturalizações que disfarçam posições de poder social. A confusão de uma noite tórrida de sexo, onde as posições de poder estão definidas como o dominador (interessado em sexo) e a dominada (secretando juras de amor), faz com que se confunda às vezes a carne dura com juras de amor, e uma masturbação (“Quando você botou o dedo no meu coração”) como um toque metafisico no coração. A necessidade de segurar as rédeas do encontro e dar conta do pós-encontro, para que não hajam ilusões e para que as decisões anteriores sejam tomadas com consciência. Sem manual, a cantora apenas ironiza a Carolina que fica na janela na manhã seguinte, esperando a vida passar e sentindo cansada, triste, sem ter recebido a ligação ou as flores do dia seguinte.

Karina Buhr tem uma forma de compor que é intrigante. Parece fácil em alguns momentos, não segue a linha que muitas outras cantoras da nova geração seguem, com aquele toque alternativo descolado. No entanto, compondo num estilo livre e gostoso. Que mesmo sendo ricamente construído é capaz de se comunicar com muitos públicos. Sua voz não é dada a grandes arroubos, ao invés disso ela segue numa consistência invencível e cativante, sem espaço para o bel canto que é facilmente substituído por uma expressão rocker capaz de atravessar diversos estilos. Um canto de eras, de geografias diversas, multiplicidade recolhida no corpo feminino como lugar fértil por natureza, mas politicamente ilustrado o suficiente para produzir máquinas de guerra contra qualquer forma de opressão.

O disco termina em alto nível, com uma coleção de imagens muito forte, rock’n roll pra frente. Selvática, é a subversão das imagens delas, que religiosamente foram tornadas vãs de acordo com a imagem e semelhança do Pai. Karina Buhr avisa que nossas fogueiras vão se apagar com um sopro suave de uma nordestina que acende o fogão de lenha, com a mesma facilidade com que incendeia a casa da opressão. Já se passou da hora de perceber que faz um tempo que elas tomaram a palavra e aos poucos as cirandas compostas vão acabar com suas ladainhas. Com toda vontade de repressão do corpo feminino, do não reconhecimento de outras orientações. A transgressão é a palavra do dia e de corpos femininos onde não tocarás com nenhum instrumento que não seja o amor, o carinho, a paixão ou no mínimo o respeito, o domínio pertence às Lilith’s e ao seus corpos.

Amém Buhr!

Você pode baixar Selvática gratuitamente clicando aqui.

Selvática (2015) – Karina Buhr:

Nota: 

Selvática by karinabuhr

Selvática – Ficha Tecnica:

Produção: Bruno Buarque, Mau, André Lima, Victor Rice

Gravação e Mixagem: Victor Rice

Masterização: Fernando Sanches/estúdio El Rocha

Gravado no estúdio da YB

Produção Executiva: Melina Hickson, Fina Produção

Produção: Olívia Ferreira, José Oliveira, Virgínia Correia

Fotos: Priscilla Buhr

Design Gráfico Capa e Encarte: Mozart Fernandes, Vértices.

Figurino disco: Drica Cruz

Making Off gravações: José de Holanda

Making Off da capa: Hélia Scheppa

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