Made in Roça (2013) foi a introdução da Sara Donato no cenário nacional, e que logo após iria fazer parte do icônico Rap Plus Size!
O ato de relembrar trabalhos da história de uma cultura é algo fundamental para o fortalecimento da mesma, pois é assim que se comunica a tradição, os erros e acertos para as novas gerações. Porém, esse ato que deveria ser de conhecimento comum, de base escolar, diríamos, não é uma prática da maioria das mídias e consequentemente do público. Como sempre insistimos aqui, uma mídia/mediação que estimula e propaga apenas o hype gera uma massa de desinformados atentos aos últimos fogos de artifício, mas não à cultura hip-hop.
A estreia de Sara Donato se faz relevante de ser lembrada por diversos motivos. Um desses motivos se dá pelo fato dela ter lançado o seu disco de estreia diretamente do interior do estado de São Paulo (São Carlos) em um período onde começamos a ver um maior número de produções femininas – em termos de quantidade. Depois por ser o trabalho de uma mulher gorda que com o seu corpo e suas vivências politiza sua lírica nessa e em outras direções. Terceiro porque estamos falando de uma MC que alguns anos depois iria integrar o icônico grupo Rap Plus Size, e obviamente por fim, por ser um trabalho digno de lembrança.
Em entrevista ao podcast Rap Falando, Sara Donato conta que fazia parte do grupo Verso Consciente em sua cidade junto ao seu irmão e que ao gravar com o grupo, das 13 faixas do disco só cantava em 3. Essa prática de escantear mulheres, de coloca-las apenas para fazer backing e que foi desabafado pela Sara é uma prática que tem se exaurido. E se tem se exaurido é exatamente pela luta das mulheres do cenário que como a Sara Donato ao ter uma porta aberta com honestidade para que se efetuasse o seu trampo, soube aproveitar com maestria.
O disco Made in Roça é produzido por Lincoln Rossi e possui 13 faixas com participações de diversos MC’s e beatmakers. Esta estreia da Sara Donato além de ser um disco relevante para o cenário hip-hop pelo seu caráter combativo, pelo fato de nos apresentar o vir a luz de uma voz que se firmou como importante para o cenário, apresenta-nos também questões que precisam ser debatidas mais a fundo. Sendo assim, Made in Roça carrega uma potência que de certo modo lhe ultrapassa, seja pelo fato de apresentar uma MC ainda tomando ciência de seu ofício, seja por neste sentido conter percepções sobre a realidade que obviamente mudaram!
O combate a desigualdade, seja de gênero, seja social, seja racial, a busca por uma verdade muito própria que se espelhe em sua própria arte e contamine os seus iguais, talvez sejam os vetores que melhor tangenciam essa estreia solo. Desta forma, do título à introdução Made in Roça é um pequeno manifesto que se afirma vindo do interior, dentro de um contexto onde somente os raps feitos na capital são realmente valorizados, algo que não mudou muito nos últimos dez anos com as exceções evidentes de Neto do Síntese e da Soundfood Gang. Sara Donato já abre o disco se afirmando como Real Caipira, o que pra muitos desavisados pode parecer pouco, mas pelo menos em mim, ali na época do lançamento calou fundo, pois eu só conhecia OQuadro, do interior do rap baiano!
É louco pensarmos que todes e quaisquer MC’s são produtos e produtores de suas próprias produções líricas, uma vez que enquanto seres humanos são localizados em um contexto social e um período histórico, porém enquanto artistas que trabalham com a linguagem e com conceitos combatem a realidade opressiva e produzem percepções críticas desta. A primeira música do disco: “A Bela (prod. Lincoln Rossi)”, já puxa o debate sobre o conceito de beleza se tornando em um documento único dentro da história do nosso rap.
Através de um beat na linha do boombap reflexivo com um sample de violão muito bem encaixado à proposta, Sara dixava na terceira pessoa do singular as ideias sobre os padrões de beleza em nossa sociedade que valoriza uma determinada forma de aparência calcada em uma visão eurocêntrica e publicitária de magreza como sinônimo de beleza e consequentemente saúde, onde a moral e a política se confundem tornando assim a estética um mercado. Todo esse “regime de coisas” socialmente validados consequentemente geram distúrbios mentais e crises de identidade que já naquela altura Sara Donato chamava atenção.
Tendo partindo de percepções e de sua própria condição mas habilmente mantendo o discurso indireto sobre A Bela, na sequência com “Paradoxo de Mim Mesma” ela assume a 1º pessoa do singular para dar “um testemunho” sobre o que ela almejava naquela altura, ser uma artista, uma MC dentro da tradição combativa do rap nacional. E para isso, em um beat mais swingado do Lincoln, ela “prega” a revolução e uma visão política do mundo.
Em “A Canção”, 4º faixa do disco que conta com a participação de S-Mil, a pegada é de crítica política, abordando os descasos do estado com a população. Com a música “Quarto de Despejo” referência direta ao clássico livro da escritora Carolina Maria de Jesus, Sara Donato constrói uma poesia falada no beat do Thiago SM, mostrando os problemas raciais de nossa sociedade sob sua ótica! A luta contra as opressões que atravessa todo o disco, encontra em “Diferenças (prod. Esquina da Gentil)” um bonito registro sobre as condições especiais de pessoas portadoras de outras necessidades, problematizando – desta vez – o conceito de normalidade. Conceito este que produz, assim como a noção de padrão de beleza, outras formas de opressão e consequentemente de exclusão!
“Eu sou caipira mesmo e aí vai segurando, eu faço rap como se tivesse capinando, passo o rastelo e tiro fora as más influências. o que é bom nós cultiva e floresce como essência”
Com a faixa título “Made in Roça” – uma das nossas preferidas – um boombapzão pesado com uns samples loucos de orgão, um legítimo bate cabeça que apresenta a noção de essência como um traço comum do interior. A música que traz a participação, também uma das melhores do play do Gaiva e beat do Curirim, nos dá muito a pensar sobre a perversidade da indústria cultural do eixo que exclui até mesmo os sotaques próximos. Certamente as linhas destacadas acima são das mais bonitas e bem acabadas do disco e que remete mesmo a música caipira para além do rap, ao mesmo tempo que reafirma uma independência que não se rende a um som mais comercial. Uma pedrada!
Sem deixar a peteca cair, “É logo Ali” a artista que é original do bairro Cidade Aracy produz no swingue do beatmaker Leandro Bandeira, uma bonita rememoração de sua vida na sua quebrada. Memórias simples que quem é de quebrada logo se identifica, e problemas que são constantes em todas as favelas do Brasil. No final da faixa a inserção do sample com o Helião falando: “Atitude, pesquisa, companheirismo tem sido assim a milianos, né não irmão”, me retira um sorriso sempre que eu ouço, afinal quem foi criança nos anos 80 e adolescente nos anos 90 em bairros periféricos pelo Brasil e entende a cultura Hip-Hop saberá identificar a beleza da simplicidade dessa faixa, que encontra neste insert um comentário esperançoso e de reconhecimento de nossas lutas.
Novamente com a participação do S-Mil, que canta muito bem e aqui faz o par romântico da Sara Donato em uma lovesong: “Esta é pra Tu”. Porém não estamos aqui diante de uma lovesong melosa rimando flor com dor, como se tornou um padrão nos últimos anos. A faixa em questão traz uma ideia muito boa do amor como cura das mazelas sociais, raciais, e a citação do período da escravidão pinta isso com cores fortes. Aqui, temos uma construção muito interessante neste dueto entre Sara Donato e S-Mil.
Em diálogo interno e direto com a faixa “Não Adianta Tentar”, a música “Não Basta Crer”, nos mostra porque a Sara não é uma ancestral das atuais coachs, pois a ideia aqui como lá, se constrói em torno da luta para conquistar objetivos. Porém, aqui ela faz uma crítica às esperanças metafísicas mais notadamente aos dizimistas que vivem a teologia da prosperidade – dos pastores. Um tabu quebrado aqui e que serve também de base para as duas músicas em questão, que é o seu ateísmo, ora se não se acredita em predestinação, em uma estrutura divina com serviço de atendimentos aos nossos anseios, só nos resta lutar. E aí faz sentido!
“Vejo mentes escravizadas, corpos como mercadorias, vejo venderem a dignidade, seios cheios e cabeças vazias!”
Na última faixa do disco, “Pra não Virar Estatística” Sara Donato faz um manifesto contra o machismo patriarcal e o feminicídio, boombap pesado com um flow bem cadenciado ela enfileira as opressões e abre o leque das infinitas possibilidades que as mulheres devem ter em nossa sociedade. Uma letra combativa e que fecha o disco deixando claro para o ouvinte que Made in Roça passados dez anos é um disco plural em suas pautas, combativo em suas letras e com uma sonoridade calcada no boombap. Porém, o verso acima destacado nos dá a deixa para abordar a única faixa sobre a qual não falamos.
Dentro do capitalismo todos os corpos são vítimas de exploração, no entanto no rap nacional ao longo de sua história são raros os casos que não moralizam e consequentemente discriminam as trabalhadoras sexuais. A quinta faixa presente em Made in Roça não é diferente, “Prostitutas Audiovisuais” que conta com a participação do MC Amarelo, reforça a ideia de que uma profissão deve ser estigmatizada.
As causas são conhecidas, a confusão entre más escolhas estéticas ou mesmo a total transformação de uma arte em mero produto de rápido consumo encontra na falta de uma análise mais crítica uma péssima analogia com as trabalhadoras e os trabalhadores sexuais, algo muito corriqueiro até hoje no rap nacional. Outro ponto comum também não apenas nessa faixa, é a noção cristã de que a mente é superior ao corpo, logo um trabalhador intelectual é superior a trabalhadores sexuais. Enfim, são questões muito mais amplas e nas quais a música em questão escorrega, porém sem retirar o valor de resgate de um trabalho inicial de uma MC que hoje já não pensa do mesmo modo.
Quando falávamos no início deste texto da importância de resgatar trabalhos da história de uma cultura, para que pudéssemos ponderar criticamente erros e acertos, nos referirmos a essa necessidade crítica de entendermos que os artistas e as obras mudam, pois certamente hoje 10 anos depois também, Emicida provavelmente não gravaria Trepadeira. Mas em tempos de hype e debates muito profundos no twitter, isso não parece ser uma constante!
Ouçam a Sara Donato em Made in Roça, que inclusive nos confidenciou que está preparando um trabalho solo para comemorar os 10 anos de sua estreia. Vida Longa!
-Uma jovem Sara Donato lançava Made in Roça, 10 anos atrás!
Por Danilo Cruz