OQuadro soltou o videoclipe da música Santo feat Tuyo, primeiro single do Preto Sem Açúcar, produzimos um olhar sobre sua obra!
“Estão todos dançando conforme o comando[…] é OQuadro mané, pra você que não botou fé!”
Nos últimos dez anos, a banda baiana OQuadro não cessou de construir uma história musical e audiovisual que se bem acompanhada nos mostra a relevância estética e a potência construtivista que caminhou do boombap underground até o seu estágio atual. A banda possui algo em torno de 25 anos de existência, mas somente em 2012 lançou o seu primeiro disco.
O que pouca gente sabe é que em 2002 um cd demo foi lançado, contendo 3 músicas, é de lá que retiramos a citação que abre esse texto, refrão e um trechinho de rima do Rans Spectro na música Conforme o Comando, que atualmente não faz mais parte do grupo. É de lá que também vaticinamos o seu começo numa pegada mais boombap underground, apesar de já serem uma banda.
Curiosamente, este ano o disco de estreia da banda faz 10 anos de lançado, um álbum que a ignorância e a xenofobia nacional, não se permitiu conhecer. Ou seja, se formos tomar os anos de lançamento do grupo, então temos 20 anos de uma construção musical que não cessou de se expandir e que nos presenteou com Preto sem Açúcar, lançado no ano passado e mais uma vez negligenciado pela “crítica” nacional.
Um dos discos mais importantes lançados no ano passado, Preto sem Açúcar ganhou seu primeiro videoclipe com a faixa “Santo”, música que tem a participação da Tuyo. O terceiro disco da banda e sucessor do Nêgo Roque (2017) é recheado de grandes participações de jovens artistas locais e grandes nomes do cenário nacional. Mas nem por isso, mereceu atenção dos especialistas.
Junto a imensa qualidade e o desenvolvimento contínuo de uma linguagem musical original em nosso país quando se trata da música Rap, OQuadro possui também uma filmografia, que acompanha com timidez e uma potência imensa, os passos do grupo. Sempre relutantes às fórmulas de sucesso, sem nunca terem entrado de fato na máquina de moer da indústria cultural branca, a banda de Ilhéus vem erguendo uma obra grandiosa.
Bem Aventurados os que evoluem, Sankofa!
Hoje no regime de representação incorporada ao discurso dos artistas presentes no mainstream do rap nacional, a afirmação da negritude muitas vezes recai em dois problemas. Muitos artistas produzem uma afirmação vazia de fórmulas meritocráticas, acompanhadas de uma apologia hedonista ou a embalagem conceitual marketeira que negocia com as pautas do momento.
Em Preto sem Açúcar (2021) do OQuadro, a banda sul baiana segue rompendo com os comandos e impõem um rigoroso trabalho musical complementado com um discurso que visa identificar e propor uma reflexão que volta ao passado para impulsionar as possibilidades de um outro futuro para o povo preto. No entanto, esse movimento de chegada possui uma construção histórica da banda que atravessa todos os seus videoclipes.
Retirado do cd demo lançado em 2002, o clipe de “Valor de X²” é a primeira peça dessa produção de sentido e de registros históricos que nos dão a ver o desenvolvimento da banda. Sem um som propriamente de banda, início do desenvolvimento de uma linguagem própria da banda, somos apresentados ao trio de mc’s e a banda ainda de certo modo comandada pelos beats do DJ. O pique é de um boombap underground e o videoclipe ilustra através de imagens encenadas a pegada anti-capitalista da música!
Música presente em todos os seus shows desde antes do lançamento de seu primeiro disco, Bem Aventurados é a tônica, o enunciado primeiro sob o qual o grupo nunca parou de romper com os comandos. Algo facilmente identificado, ora pela atenção com os seus componentes em trabalhos solo, ora no próprio trabalho da banda.
Gravado na Inglaterra durante a sua primeira turnê a Europa, Bem Aventurados é um clipe on the road. Composto através de imagens de shows e dos MC’s em localidades na Inglaterra. Em uma experiência que catapultou jovens homens negros nordestino e sul baianos – totalmente fora dos padrões – para o continente causador de todos os males contra os quais, os mesmos produzem arte. Por lá, os baianos tocaram em vários países e se apresentaram em diversos festivais, a exemplo do conceituado Roskildes!
Único clipe registrado do disco de estreia, lançado a 8 anos atrás, Bem Aventurados é um registro importante pois nos lembra do impacto causado pelas apresentações ao vivo. Três anos depois viria o primeiro grande audiovisual da banda “Filme”, que já começa a colocar a produção imagética da banda, assim como suas líricas e música em um aprofundamento maior de pesquisa e produção. Gravado em Salvador, local onde o qual o grupo desde os primeiros momentos sempre se relacionou, se apresentando e formando parcerias, escrevi sobre o videoclipe na época de seu lançamento, leia aqui.
Os dois trabalhos audiovisuais lançados pelo grupo, não à toa trabalham com uma tela sem profundidade, “Jahggant” e “Beats Profundos”, neste sentido nos parece uma preparação inconsciente – não inconsequente – do que só agora veem a luz. Em Jahggant, música lançada no disco Nêgo Roque, temos a centralidade das ações em torno da bateria de Victor Santana, que sampleia Max Roach e Tony Allen conduzindo o “tamborismo” da música. Ao redor, a banda dança e canta, juntos a linda Lili e sua mãe a grande professora Patrícia, e nomes importantes do hip-hop como Lazâro Erê e Mobiu!
Em “Beats Profundos”, novamente o esquema da tela chapada dá o tom do audiovisual com a colocação em primeiro plano do corpo de Ricô, que é o vocalista e um dos responsáveis pela criação do audiovisual junto a Ricardo Itan. Aqui já percebemos os aspectos afro-futuristas desenhado sob outras bases em “Filme” e “Jahggant”. As bases eletrônicas, o canto, de certo modo nos remete às origens da banda.
É impossível apreender um sentido único no trabalho d’OQuadro, porque ele simplesmente não existe, ao contrário de muitas produções do mainstream. A produção constante e coletiva da banda, nos apresenta um diferenciante como substância poético musical e aqui enquanto produção audiovisual, que é complexa e que remete-nos a visões e percepções múltiplas da negritude. Há um refinamento presente em camadas que impossibilitam a fácil prospecção.
Essa geologia estética que remete a qualidade e a pesquisa dos músicos e dos MC’s, não é encontrada em nenhum outro grupo em terras brasileiras, da mesma forma. Há um plano de consistência existencial próprio d’OQuadro na história da música brasileira em geral e da cultura hip-hop em particular. A banda de Ilhéus produz a diferença!
“Deixa o meu santo conversar com o seu Axé! Axé! Guarnição!
Os meus inimigos vão achar os seus. Já não quero nada em vão!”
Recortado do infinito Preto sem Açúcar, Santo é a faixa que nos determina um sentido pelo menos um ponto de chegada e uma posição política muito ímpar. Enquanto música e seguindo a linha francamente afrocentrada presente no disco, “Santo” fala sobre a necessidade da massa negra se compreender dentro de uma estrutura de extermínio em todas as esferas da vida humana. E sendo portador dessa compreensão, ser capaz de formar um povo.
Um povo que não se rende às migalhas ofertadas pela branquitude, que busca a compreensão dos seus, que busca o engrandecimento dos seus, que luta contra o verdadeiro inimigo, não busca o seu reconhecimento. Essa nos parece a destinação presente na música, doce na voz de Ricô, mas portadora de uma potência incendiária, para além do fake fogo nos racistas.
Lançado nesta quinta-feira (28/07), o audiovisual é a transposição dessa essência político musical para as imagens belíssimas construídas pela trinca de direção criativa formada por Helder Fruteira, Ricô e Roncca. Em um recorte particular onde o amor entre homens pretos é o foco visual, sem necessariamente o ser na música abstrata por essência. A concretude dos corpos negros presentes na tela, em momentos de enfrentamento e afeto, propoe outra forma de nos pensarmos enquanto homens pretos.
Enquanto boa parte do game se propõe a reforçar estereótipos produzidos pela branquitude e que buscam animalizar a existência negra: agressividade, sexualidade e autodestruição, OQuadro segue rompendo os comandos e vivendo a anos luz dessa forma de autodegradação. Sem idealizações, aqui sim temos uma fabulação que vale a pena pensar juntos e além, que é necessário construírmos.
Boa parte hoje do que ouvimos e vemos no rap nacional, é o integracionismo embalado em lacração militante, que não dura 5 minutos de debate ou uma página de crítica. A projeção em ser cria, em ser rua, em ter armas, em ser uma máquina sexual, em matar inclusive, são projeções que lidam com o inconsciente do público de modo a conquistá-lo ao preço do reforço de modos prejudiciais e ideias imbecis sobre o que deva ou não ser vitória dos pretos, do que seja conquista do povo preto.
Em seu último trabalho, Preto sem Açúcar, O Quadro canta rima e toca para um povo por vir, em “Santo” com a bela participação da Tuyo, as imagens sintetizam, mais de duas décadas de desenvolvimento estético e um futuro de luta e produções que esperamos estar aqui pra ver. Não perca tempo, assista e pense:
-“Santo” feat Tuyo, um olhar sobre o caminho audiovisual d’OQuadro!
Por Danilo Cruz