Rashid e os 10 anos de Hora de Acordar (2010), minhas memórias! Um memorial sobre minha reinserção na cultura hiphop por conta desse EP
Em 2010 eu estava no veneno, terminava a faculdade e tinha um filho pra dar comida, tava separado da minha primeira esposa, e dava aula no sistema mais escravocrata possível. Dava aula como um professor concursado e recebia 400 conto, andava quase uns 20 quilômetros por dia, pra ir pra escola e para ir pra faculdade, idas e voltas suando como um porco pelas avenidas Bonocô e Garibaldi. Foi um despertar e nesse movimento, o EP de estréia do Rashid me serviu por muitas vezes como combustível e como uma porta de reentrada no rap nacional!
O fato é que Rashid lançava seu primeiro disco, Hora de Acordar (2010) uma produção que casou perfeitamente com o meu momento histórico, e que a partir do título já me mostrava uma sincronicidade potente com tudo que eu via e vivia naqueles duros dias. Trabalhava pela manhã numa escola, ia e voltava andando e pela tarde ia pra faculdade, só chegando em casa pela noite. Aí era preparar aula, ler, preparar os trabalhos da faculdade, fichamentos e tudo mais que a vida acadêmica vive, como discente e como docente.
Entre a escola e minha casa moravam Bruno e Carol, casal que me servia água e que adubavam meu pen drive au passant, botavam um café, a gente conversava, mas sobretudo me abasteciam de bons materiais do que estava na internet e eu não tinha acesso. Tinha um computador em casa, mas não tinha acesso a internet, logo ou esse casal maravilha me indicava o que estavam vendo ou ouvindo, ou nada. Folheava revistas numa banca que existia no supermercado Bom Preço onde eu passava a caminho de casa, e foi lá que vi numa revista Bravo! que um rapper paulista tinha lançado um EP e anotei o nome.
Inquieto e sem dinheiro, aprendi a baixar o soulseek na sala da Faculdade de Economia da UFBA e lá eu baixei Hora de Acorda (2010), joguei no pendrive e fui pra casa. Foi amor à primeira vista e um dos principais responsáveis por me fazer voltar a escutar rap e a pesquisar sobre a cultura hip-hop. Eu vinha numa caminhada que não ouvia mais rap, tava de saco cheio e tinha parado por volta de 2004, e fui ouvir e pesquisar outras coisas, principalmente rock, jazz, blues, música clássica, afro beat e etc.
Não havia disco melhor pra voltar a escutar, pelo menos não pra mim, porque a partir desse disco, eu acordei novamente não apenas pro rap mas para a força de renovação e para a potência política da cultura hip-hop. Foi a partir daqueles dias escutando Hora de Acordar (2010), ou seja, a 10 anos atrás que voltei a escutar e pesquisar, e hoje escrevo diariamente sobre rap e cultura hip hop. Só ouvia e dischavava pelas ruas as letras e as batidas, firmando os passos no mesmo ritmo do disco. Ali algo começou, naquela altura eu me decidia a assumir a docência e principalmente a docência em escola pública como o caminho da minha vida. Um Só? Sim!
Como muitas pessoas descobri o rap no meio dos anos 90 e estava acostumado a estética daquele período que também foi o responsável por ter me afastado do gênero. A cultura hip hop no entanto nunca deixou de fazer parte de mim. Em meados da primeira década dos anos 2000, por um breve período curti alguns grupos que já renovavam esteticamente o rap e a cultura hip-hop como: Ascendência Mista, Jackson, Quinto Andar, ouvi o Babylon By Gus do mestre Black Alien, mas na real não dava muita atenção, não estava na sintonia. Foi o Rashid e o seu Hora de Acordar (2010) que ao seu modo me colocou na sintonia novamente.
No final dos anos 90 eu ia pro trabalho entregar cosmético ouvindo Xis, Da Guedes, Verbo Pesado, Dina Di, RZO e GOG e Racionais. Essa foi minha escola no rap nacional. Nesse período que talvez seja um dos mais importante da minha vida, Hora de Acordar (2010) me fazia ver as coisas de outro modo e ao mesmo atualizava a força, a potência que os grupos acima citados tinham na época do meu primeiro emprego. A luta coletiva naquele momento permanecia firme no coração, a chama estava acesa, mas ali era possível começar a pensar em aspectos mais individuais. Uma auto afirmação que era ao mesmo tempo um chamado à luta: Acorda.
Esse é um período onde se falou muito de confronto e de decisões pessoais, autoconhecimento e conquistas individuais. Era o começo da popularização do rap na internet, movimento que não acompanhei de perto porque não utilizava direito as redes sociais (orkut), não frequentava a comunidade do hip-hop local e não tinha consciência alguma da força que essa expressão estava tomando no país inteiro. Mas o que Rashid me injetava ao longo das nove faixas serviu-me como trilha sonora da minha própria virada, da minha entrada no meu game, da educação, do pensamento e da minha luta por educação pública de qualidade para os nossos.
Esse texto é mais uma coleção de memórias do que propriamente uma resenha, as quais existem aos borbotões sobre esse disco pela internet. Um pouco pra marcar esse aniversário do Rashid mas também meu, que hoje ainda ouve esse EP com muito sabor, porque recheado de reflexões e lembranças, pensando no presente que vivemos. Um momento onde o rap se mantém forte e firme em pautas políticas e em propostas estéticas inovadoras, mas fora do mainstream.
O motivo para não destrinchar as diversas e impactantes linhas, os flows, as participações de Marechal, Rael, Fioti e Luiz Café no disco, assim como seu posicionamento dentro da história, é bem simples. Primeiro, como uma memória ele me vem como um todo, segundo não me interessa aqui nesse momento fazer uma autópsia de um corpo vivo ainda, tanto na história da música rap brasileira, quanto em minha vida. Nada contra, até gosto de review técnicos e os faço, mas esse aqui não vai rolar, prefiro projetar aqui, mesmo que em cores não tão fortes quanto o disco o faz sobre o próprio Rashid, meu momento, minha caminhada.
Por fim, sugiro que ouçam essa pedra e que quando descobrirem artistas que estão começando, como Rashid estava aqui, deem a devida importância e saibam que a depender da forma como vocês escutarem, aquilo marcará sua vida como um todo. Será como para nós a trilha sonora de um tempo, um bloco de granito de afecções, sentimentos e percepções… Quem sabe um dia não escrevo um livro pra dar conta disso.
Eu sei por que estou aqui!
-Rashid e os 10 anos de Hora de Acordar (2010), minhas memórias!
Por Danilo Cruz