Será realmente que estamos vivenciando a morte do Hip-Hop no Brasil, seria o Trap o grande vírus machista do rap nacional? Ou isso é pura ignorância?
A morte e a morte do Hip-Hop nacional!
Um dos grandes problemas que ocorrem no “debate” público sobre as questões que envolvem a cultura Hip-Hop no Brasil, diz respeito muitas vezes ao quase completo desconhecimento da história da cultura e das suas formas singulares de desenvolvimento em nosso país e do grosso da produção no que tange ao rap nacional. Sobre o rap especificamente, a ausência de uma perspectiva ampla historicamente e que dê conta da diversidade de gêneros e subgêneros musicais, lançados em discos e singles em abundância ao longo dos anos, pode ser entendida como uma das causas desse problema.
Geralmente, seja entre a maior parte dos articulistas e consequentemente entre grande parte do público, há um “consumo” contemplado e enviesado pelos gostos e idiossincrasias dos mesmos. Em tempos onde o algoritmo expõe sempre o mais do mesmo, esse problema se agrava e surgem falsas questões e ou uma má colocação das mesmas. Quantas vezes lemos/ouvimos coisas como: “Rap de Mensagem”, “Rap de Verdade” e ou afirmações como essa:
“O rap, e em especial seu subgênero mais bem sucedido no nosso país, o trap, cada vez mais se afastam da criatividade lírica, da crônica urbana, do diário pro mundo do oprimido, dos pensamentos intrusivos intimistas que nos conectam enquanto humano.”
Esta citação acima, retirada do artigo “Seu MC não é deus: O Hip-Hop está morrendo e o Rap tem um problema” de autoria do jornalista Matheus de Moura é um exemplo, da falta de uma perspectiva mais ampla da produção do rap nacional. Essa falta de perspectiva da produção fonográfica, encaminha neste caso para uma má colocação dos problemas reais, que o autor levanta ao longo de seu texto, porém sem nenhuma historicidade e de modo generalista. Algo comum não apenas no texto publicado no site Flagra Rap, mas que desvela um outro problema coletivo inerente à produção jornalística dentro do rap e da cultura Hip-Hop nacional.
“Em algum momento da nossa cultura nós começamos a supervalorizar os rappers a ponto de apagar a relevância dos breakdancers, dos grafiteiros e até mesmo dos DJs.”
Ora, desde de pelo menos a década de 90 do século passado, que de modo geral o rap se descolou bastante da cultura Hip-Hop em termos de exposição e comercialização por parte da Indústria Cultural. No Brasil, em termos de comunicação, as primeiras revistas já iam na direção de serem revistas de RAP, não da cultura Hip-Hop, por motivos de “engajamento comercial” e de uma editoria que entendia a música como o principal condutor enquanto produto da cultura hip-hop para o mercado cultural. E é sempre bom lembrar, revistas que possuíam pequenas redações, pouco ou nenhum investimento e que tiveram pouca duração temporal,abordando basicamente o rap feito no eixo Rio-SP. Situação que perdura até hoje nas “redações” de sites e perfis de instagram do rap nacional.
Basta analisar rapidamente a primeira edição da pioneira revista Pode Crê que saiu em fevereiro de 93. KL Jay escreve um artigo sobre o Arrested Development, o Rap é o tema central tanto desta quanto das outras três edições. Uma iniciativa da Geledés que trazia a grande filósofa Sueli Carneiro, importantíssima para a nossa história, mas que infelizmente não durou muito tempo para que fosse possível desenvolver talvez uma linha editorial mais abrangente.
A revista Rap Brasil foi a publicação mais duradoura de revistas desse segmento no Brasil, tendo funcionado por dez anos com esse nome, e que também não era “uma revista de Hip-Hop”, no sentido de tratar todos os elementos de modo igualitário. Ao longo de dez anos, de muito esforço por parte do seu criador Alexandre de Maio junto ao seu parceiro Marques Rebelo (In memorian), a Rap Brasil sempre esteve mais ligada ao rap, mas ainda assim lançou edições especiais sobre o grafite, com a revista Graffiti. Existiram publicações no Brasil de revistas específicas de Grafite e inclusive de DVD ‘s com fascículos escritos, onde a cultura do DJ era contemplada. No entanto, a indústria cultural se consolidou no rap tanto aqui quanto nos EUA anteriormente, através da transformação da música em principal mercadoria da cultura Hip-Hop.
Os sites de mídia ativismo cultural, surgidos no começo dos anos 2000, basicamente são sites que falam do Rap. Mesmo analisando, o maior e mais antigo site do rap nacional, o Bocada Forte, veremos que ainda que possuam em seus arquivos muitos textos e reportagens voltados aos outros elementos do Hip-Hop, o grosso da produção diz respeito a música. Com o aumento da inserção do rap no mercado musical no Brasil, um outro problema passou a gracejar nas mídias de rap na internet, algo que perdura até os dias atuais que é a replicação de releases feitos por assessores. O que poderia ser um espaço crítico bastante rico em perspectivas, dada a dificuldade que o amadorismo dessas mídias impõem para um trabalho em tempo integral, viraram “meios” de mera replicação do produto a ser vendido.
Ao mesmo tempo, tanto perfis de instagram com milhões de seguidores, como sites grandes, negociam seus espaços para a replicação de releases sem alertar o leitor de que aquilo é uma publicidade. Não seria errado dizer que no Brasil, a profissionalização da mídia do rap – pouquíssimos casos – se deu através da renda do Jabá. Enquanto que grande parte das mídias amadoras – que são geridas por trabalhadores de outras áreas, em seu tempo livre – vão desaparecendo ou recorrendo aos nomes que possuem mais números para ter o mínimo de relevância algorítmica.
Uma conjunção de fatores que não cabem no espaço deste texto, poderiam explicar o porque os sites e perfis de rap nacional passaram a trabalhar em grande parte entre a fofoca, replicação de releases de assessores de imprensa – alguns deles, colaboradores e ou articulistas dos próprios sites – e noticiando e analisando apenas os nomes com grandes números, com raríssimas exceções que confirmam a regra. Mas é o resultado disto que nos interessa aqui, o desconhecimento generalizado de público e articulistas do que é produzido em larga escala em nosso país. Há sempre essa visão enviesada de que o Trap responde pela totalidade, quando é apenas uma parcela, com imensa visibilidade, porém uma parcela.
A história do rap nacional é também contada pela boca de pessoas contratadas pelos artistas, assim como com uma total falta de conhecimento histórico fonográfico, com uma xenofobia gritante que impede a própria noção de nacional, fazendo com que se possa afirmar de modo generalista problemas que estão desde as origens desse gênero musical em nosso país. Mas, que nos coloca a questão do olhar, da escuta perspectivista que lançamos aqui para que não sejamos também navegadores dessa poça comum que se pretende o oceano do que é o rap nacional.
A misoginia e a homofobia, tal como apontadas no texto do jornalista Matheus de Moura, assim como uma aderência cada vez maior ao discurso neo-liberal no rap nacional, são de fato questões presentes na cultura Hip-Hop e que estão longe de deixarem de ser um problema preocupante. E certamente, não é uma característica única das novas gerações, aja vista o recente caso revelado pela filha do MC Kaskão do reverenciado grupo dos anos 90 Trilha Sonora do Gueto, para ficar em apenas um caso.
A forma alarmista, o tom apocalíptico utilizado e a completa ausência de historicidade e de contrapontos atuais, impedem que pensemos de modo adequado as questões levantadas. E sobretudo imputa a um subgênero musical da cultura uma carga de problemas que estão na sociedade como um todo ao longo de séculos e na cultura desde o seu início. Não tem nada morrendo, a não ser infelizmente os sites de rap. O Hip-Hop no Brasil permanece cada vez mais vivo, nas ruas, não nas redes sociais e muito menos nos streamings, apesar destes problemas apontados pelo autor.
É curioso notar que nenhum articulista do rap nacional tenha se atentado ou fale – desconfio que é porque não conhece e não ouve – da imensa produção de artistas homens, mulheres e LGBTQIA+ dentro do underground nos últimos três anos pelo menos. Um movimento que tem reunido produtores, MC’s e DJ’s de regiões distintas do país como nunca antes em nossa história. Com discos, singles, audiovisuais os mais diversos possíveis e sempre com um veia insurgente e diversa!
Mesmo que o seu elemento mais “rico”, o Rap mainstream, faça hoje milhões nas mãos de alguns poucos e de maioria branca, o campo existencial que o segue mantendo é a cultura Hip-Hop nas ruas do país. Sem otimismo algum, as diversas “Frentes Nacionais da Cultura” seguem trabalhando nacionalmente, firmes e fortes e inclusive alcançando resultados históricos como a recente conquista de fundos federais para a cultura Hip-Hop no país inteiro.
A volta dos que não foram! O Boombap hoje no Brasil.
Se é um fato, que desde pelo menos 2015 o Trap galgou espaço na indústria musical e hoje é o subgênero do rap mais ouvido no país, é verdade também que de lá pra cá, como acima mencionamos, as mídias foram progressivamente, se voltando a noticiar e publicar sobre artistas dessa vertente. Após o advento de Sulicídio e as primeiras séries da Pineapple com o “Poetas no Topo”, houve uma maior abertura para artistas principalmente do nordeste e de Minas Gerais alcançarem o mainstream.
Por outro lado, nomes como nILL, Flora Matos, FBC, Zudzilla, Vandal, Don L, Victor Xamã, Rico Dalassam e a BrisaFlow, criadores substanciais em termos de inovações estéticas e de discografias exemplares, hoje habitam um midstream. O Rap Nacional possui hoje a geração mais diversa de sua história, a custa de muita luta de diversos atores e precursoras nocauteades no trajeto. Aqui também, sem hipérbole e muito menos otimismo, pois é possível ver artistas hoje que fazem sucesso com diversos gêneros e não apenas com o Trap, existe uma pequena fatia de mercado hoje toda voltada para o “Grime” por exemplo, para o Drill com nomes como Leall. Mas, um fenômeno que hoje é mal ou pouco noticiado diz respeito ao boombap.
Nos últimos três a quatro anos, a tradição amplamente desconhecida do boombap underground, tomado aqui como uma forma estética, tem sido revitalizada com resultados fabulosos em discos e ep ‘s, mixtapes, singles e videoclipes. Não à toa, virou piada a afirmação oportunista feita uns meses atrás sobre a volta do boombap, com razão, pois ele nunca foi embora. E aqui vemos como a afirmação sobre o Rap, sobre o Trap segue sendo uma afirmação estapafúrdia se tomarmos o grosso da produção.
Certamente, esse atores e atrizes que hoje compõem o cenário do rap underground na vertente estética do boombap, do jazz rap e do drumless, não são seres imantados com a pureza política e ética que os exclua de incorrerem em preconceitos como o machismo e a homofobia e tantos outros, no entanto, de tudo que nós temos tido acesso, o cenário é muito diferente do “Contos de Aia”, desenhado pelo Matheus de Moura. A rigor, nos parece que pelo menos neste ano, saíram mais discos desse cenário underground do que do “Trap Assassino do Hip-Hop”, mas esse “achismo” nosso é exatamente isso, achismo, infelizmente não possuímos recursos para essa análise estatistica.
Nessas produções que saíram e a que estamos atentos, esse Conto de Aia não tem se realizado na lírica, e muito menos alguém posando como o Lobo de Wall Street. O fato é que, quando direcionamos o nosso olhar para produções que possuem falas deploráveis como as denunciadas no texto em questão, nossa percepção fica determinada por aquilo. Um efeito parecido com o que ocorre nas redes sociais, chama-se economia da atenção e os resultados são o adoecimento mental e um recrudescimento discursivo que perde o foco no principal inimigo.
-Leia no Oganpazan sobre o Rap Nacional Underground!
Como estamos chamando atenção ao longo do texto, a Indústria Cultural Supremacista Branca, no Brasil, através de diversas iniciativas, investidores e selos, reforçam um Trap ou Rap diluído, repetindo o que bem disse o Matheus:
“[…]uma cultura tão embebida onde homens viciados em falar sobre “maconha & vadias” ou “nota$ & carro$ ltda” que a menor crítica ao som deles soa como uma ofensa à religião.”
Essas duas “duplas” existem desde sempre praticamente, se olharmos para os grandes do rap norte americano, e às críticas aos MC’s em rede social sempre vão encontrar a fã base sobre isso, o MC Baco Exu do Blues do Velho Testamento, já tinha cantado:
“Faz de MC’s divindades, tenho dívidas pra pagar, foda-se sua vaidade
Foda-se seu backstage, foda-se a sua vaidade/ Riram do meu sotaque, Sulicídio não foi um ataque /Foi um foda-se ao público, esses moleques não são de verdade
Porra, não são de verdade, amam MC’s e não o Hip-Hop, você ama o rap, prove”
Sendo assim, um esforço que nos parece mais prolífico seria o de, ao invés de demonizar a música Trap, seus grandes nomes nordestinos como Matuê e sobretudo sem generalizar e sem historicizar os problemas, dar espaço a quem tem feito o “Rap de Verdade” ou o “Rap de Mensagem”. Ou se é para decretar a morte de alguém ou de algo, coloque a mira em dias, pois senão corremos sempre o risco de reforçar essa estupidez de colocar a todos de um cenário em uma cova coletiva!
-Rap Nacional 2024, enquanto o Hip-Hop não morre e o Boombap não volta!
Por Danilo Cruz