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Rap fora do Eixo Vol. I, VGBD CREW Parte I

VGBD CREW é um coletivo de hip hop dentre os muitos presentes e atuantes fora do Eixo SP/ RJ, fortalecendo a cultura periférica, fazendo dela instrumento de transformação social, política e cultural.

Quando Baco Exu do Blues e Diomedes Chinaski lançaram o single/ clipe Sulicídio em 2016 enterraram o dedo numa ferida que sempre esteve aberta, embora se fizesse vista grossa, fingindo sua inexistência. Os rappers nordestinos mostraram o elefante branco presente na sala de estar do hip hop nacional, gerando debate e reflexão acerca da própria identidade do rap brasileiro.

Chamou-se atenção para a diversidade sonora do nosso rap, suas especificidades em cada região do país devido a fatores culturais determinantes como o sotaque, as expressões regionais, bem como elementos musicais próprios de cada região do Brasil.

A consolidação de São Paulo como principal polo de disseminação do rap se deve a fatores externos à própria música. São de ordem política, social e econômica. Esse contexto gerou as condições para que o rap em particular, e o hip hop em geral, feitos em São Paulo ganhassem projeção midiática e chegassem às grandes gravadoras (anos 80, 90 e primeira década dos 2000). 

Tais condições levaram São Paulo, depois o Rio de Janeiro, a se consolidarem como a face do rap brasileiro. Contudo, assim como ocorrera em São Paulo e Rio, o restante do país, com algum atraso é verdade, desde os anos 80 teve acesso ao rap feito nos EUA e a partir daí passaram a fazer suas rimas, seus beats, seu rap, adaptado às condições sociais, econômicas e culturais de cada região do país. Isso foi mostrado de forma cuidadosa por Alessando Buzo em seu Hip-Hop: Dentro do Movimento e pelo DJ TR em seu Acorda Hip-Hop, ambos lançados pela editora Aeroplano.

A diferença é que nas demais cidades e estados brasileiros não havia a conjunção de fatores necessários, apontados no início do texto, para dar uma projeção à essa produção, que permaneceu restrita a seus nichos de origem. Sulicídio gerou debate e muita reflexão acerca dessa questão por todos os interessados pelo rap brasileiro páis afora. Inclusive permitiu alguma abertura para que rappers de outros estados ganhassem visibilidade, gerando um canal de propagação de seus trabalhos.

Sulícidio tirou os panos de cima do problema, despertando interesse em saber o que acontece fora do eixo Rio – São Paulo em termos de produção da cultura hip hop. Nesse sentido precisamos “ir” aos demais estados brasileiros, também às cidades interioranas onde há profícuas cenas de hip hop rolando.

Exemplo é a cidade mineira de Ponte Nova, onde a cultura hip hop local vem se fortalecendo nos últimos anos graças a uma das principais crews da cidade, a VGBD. Além de inúmeras ações promovidas pelo grupo na cidade, como a já consagrada batalha de mc´s batizada de Batalha de Palmeiras, que reúne mc´s de toda cidade para se enfrentarem através do freestyle, mantém um canal no  youtube onde divulgam seus últimos lançamentos.

Os três últimos trabalhos divulgados no canal dos caras são da pesada, contando com um excelente trabalho de produção dos vídeos/ singles. Assim que ouvi as faixas tive a necessidade de escrever esta matéria sobre o grupo, tentando seguir os passos de Sulicídio, mostrando a qualidade da produção de rap em locais completamente fora desse eixo sócio-econômico-cultural, daí o nome dessa matéria ser Rap fora do Eixo Vol 1.

Comecemos pelos primeiros vídeos postados no canal para notar a transformação pela qual passou o trabalho dos caras, bem como para que possamos conhecer a diversidade sonora presente na VGBD, lar de inúmeros Mc´s e inúmeros grupos de rap.

Love Sangue – José Mc/ Mashad

https://www.youtube.com/watch?v=XJ0S-1pWAp4

Love Sangue, música de José MC e Mashad inspira-se na leveza da cadência do soul muito bem arranjada nas sutilezas da base, na linha de baixo que ensaia o groove e mantem uma pulsação encorpada, que preenche bem o pano de fundo sonoro para que os dois MC´s desenvolvam suas rimas. A atmosfera intimista, provocativa, beirando a sensualidade enfatiza o tema abordado na letra, que gira em torno das particularidades dos relacionamentos amorosos. 

José MC constrói suas rimas sob um flow bastante versátil, bem coordenado com o beat, acelerando e desacelerando nos momentos certos, gerando uma sensação de movimento no ouvinte, uma dinâmica pendular, que nos coloca em movimento. Esse movimento se encaixa bem com as idas e vindas do eu lírico construído nas rimas que se vê enredado pelo amor pela música e pela poesia e o pelo amor da mulher que ama. Em determinados momentos vemos o movimento também no conteúdo da letra. Isso porque o eu lírico em determinados momentos se vê divido entre o rap e sua amada, em outros encontra a convergência entre ambos os amores, na medida que seu amor pela pessoa amada inspira seus versos. 

Mashad mantém a levada do flow de José, contudo explora sendas mais insanas, se é que podemos colocar nesses termos, ligadas ao relacionamento amoroso. Para isso usa metáforas que remetem a imagens desmedidas, beirando a loucura. Leva-nos a encarar situações em que as paixões suprimem a razão, inflamando as emoções, podendo gerar consequências irreversíveis. Desprovido da razão, governado pelas paixões em chamas, o amante pode ser levado a cometer os atos mais inconsequentes. 

Muitos criticam o segmento dentro do rap que aborda temas próprios da de outros gêneros musicais, como o amor. Tecem essas críticas por considerarem ser inerente ao rap a crítica social. Contudo, MC´s como Mashad e José mostram toda potencialidade musical do rap, que pode e deve ser engajado na luta social, mas que pode abordar qualquer tema, pois já provou ser um gênero musical diverso como tantos outros assim consagrados. 

Ficha Tecnica:

Letra – Mashad, José Mc

Gravação de audio – CoopDope Record´s

Mixagem e Masterização – Mateus Mashad

Direção geral – Lucas Daniel

Edição – Lucas Daniel

Orgulho de Mãe – Ligamente

O título dessa faixa parece soa inocente, talvez sugira certa infantilidade, contudo essa pré concepção cai por terra ao apertar o play. Em Orgulho de Mãe o grupo LigaMente trata de uma questão social fundamental, que envolve o machismo entranhado em nossa cultura, bem como aspectos mais pessoais como a relação entre mães e filhos dentro de um contexto social opressor. 

Ao longo das rimas são construídas metáforas que destacam a força da mulher que se vê na condição de mãe solteira, disposta a lutar arduamente pelo crescimento de seus filhos. Vemos isso muito bem enfatizado nos versos do refrão:

Rainha guerreira, no estilo viking

Sempre te vi reinando mesmo sem castelo ou king

Guerreira amazona que todo dia vai pro ringue

Com sua força nem She-Ha aguentaria o pique

Versos livres de moralismo, auto comiseração ou qualquer recurso que vise despertar a piedade dos ouvintes. O destaque está na força de mulheres que embora sejam vítimas do machismo, abandonadas à própria sorte por quem deveria compartilhar as obrigações de criar seus filhos e sem apoio do estado, colocam-se à disposição para a guerra.

Nessa faixa existem três visões distintas acerca do relacionamento mãe e filho, cada qual construída a partir da experiencia particular de cada um dos rappers.  A música começa com um sampler de Don’t let me be misunderstood preparando o caminho para entrada das rimas de Yuri Belico. Em sua rima Yuri aborda o papel do filho em ajudar a mãe a cuidar da família, assumindo a função reservada ao pai.

Mostra ser essa a sua função e não aquela cuja elite tradicional descendente da Casa Grande lhe reservou, ser mais um jovem de PT na mão, assassinado pelo Estado por estar filiado ao tráfico. Rejeita aquele velho sonho carcomido das elites de ver os filhos formados advogados ou médicos e afirma o seu próprio sonho, de ser poeta e músico. Isso nos coloca diante da recusa dos valores da elite, passo decisivo para se livrar da coleira burguesa e afirmar seus próprios anseios através de sua cultura original.

Em seguida Da Mente assume o microfone e segue rimando a respeito da busca por realizações que despertem o orgulho da mãe. Nesse caminho percalços surgem, comuns à imaturidade própria da adolescência, como matar aulas, a distância, o cigarro, mas em todas as situações a presença materna se faz presente em seus pensamentos, como que acompanhando o filho onde quer que ele esteja. 

Há tempo para relembrar dos tempos que não voltam mais, quando o carinho materno era mais frequente, bem como o arrependimento de não ouvir os conselhos oferecidos, outro traço característico da adolescência. Eis que se estabelece a maturidade do MC ao revelar ter atingido a maturidade necessária para reconhecer toda contribuição da mãe em sua formação, na construção mesma de sua personalidade.  

A parte final é feita pelas rimas de Horói cuja enfase se concentra em mostrar a gratidão pela dedicação de sua mãe em criá-lo, amá-lo e educá-lo. Existe nas rimas de Horói nessa música uma carga emotiva mais forte. Isso porque ela ressalta a construção do vínculo mãe-filho ao longo da vida compartilhada entre ambos.

Temos uma outra percepção da experiência, muito bem retratada pelo rapper, mostrando que para ser mãe não basta parir . Ser mãe não depende de características biológicas, mas da disposição em construir a maternidade através da experiência com o filho. Fica claro ser essa a vivência do rapper com aquela que o acolheu e se fez sua mãe. 

Mesmo eu não merecendo tá comigo até o fim

Nunca me deixou sozin, nem desamparado

Me acolheu desde pequeno, me manteve ao seu lado

Nossa conexão vem de desde quando eu cabia em seus braços

Não me carregou no ventre, mas sentiu por mim tudo 

que uma mãe de verdade sente

Vivemos numa sociedade unilateral em termos de valores morais. Qualquer relação construída numa perspectiva distinta daquela estabelecida como “normal” acaba sendo marginalizada, ou , quando se trata de um comportamento aceitável socialmente, apenas visto como inferior. Nesse sentido uma questão deve ser constante na cabeça de quem é filho adotivo: “Será que ela se arrependeu de ser minha mãe?”. Esse tipo de questionamento se origina do fato de vivermos numa sociedade que considera que a mãe biológica é “mais mãe” que a “mãe adotiva”. Visão estereotipada muito bem desconstruída por Horói ao longo de suas rimas.

O próprio coloca essa questão na música, mostrando sua origem a partir da auto avaliação feita por ele de suas escolhas pessoais feitas até aquele momento de sua vida. Interessante notar o fato de em nenhum momento haver presença de comodismo, ou fatalismo por parte do rapper. Sempre que aparece algo encarado como negativo, faz-se o esforço de superação, de ultrapassar a negação e afirmar-se diante da existência.  Isso fica bem explícito nos versos que se seguem após o questionamento levantado:

Eu tô trampando pra caralho pra te dar um futuro descente

Tenho necessidade de me expressar, ela sabe disso

Desculpe mãe, a correria é coisa do ofício

Pra você aceitar eu sei que é difícil

                                   …. 

Mas relaxa, o rap vai virar e eu vou fazer por você até o impossível

Ficha Tecnica:

Letra: Yuri Belico, Da Mente, Horoi

Mix e Master: Faculdade De Rua

Lyric Video: Lucas Daniel

Mudanças – Mente Roots

Bob Loko e o grupo Mente Roots  buscam inspiração nas raízes jamaicanas do rap. Mescla-se elementos do Dub e do Reggae para criar uma atmosfera leve, porém carregada de críticas ácidas aos valores cultivados pela sociedade. 

A guitarra temperada com pitada de chorus, na batida seca do reggae, ecoando em ritmo lento, dando a base para  que as rimas de Bob Loko tenham o suporte necessário para se desenrolarem. Essa configuração inicial nos leva a esperar por um desdobramento constante do flow presente nesse trecho que mostrar ser um prólogo. 

Contudo, ao final, o rufar da caixa anuncia a virada. Entram as backing vocals somando à voz de Bob Loko timbres cristalinos. A mensagem presente em Mudanças busca provocar a reflexão, cujo propósito consiste em despertar a consciência individual para sua articulação coletiva. Pois só coletivamente é possível gerar situações que beneficiem a todos, ao invés de apenas uns poucos. 

A falta de resistência apontada na música vem justamente dessa incapacidade de reflexão, responsável por encobrir a incompetência causa determinante da falta de compreensão da condição individual e seu reflexo coletivo. A Mudança só vira pela reflexão, através do aprimoramento crítico. Captem essa mensagem na brisa e no embalo da Mente Roots. 

Ficha Tecnica:

Letra – Bob Loko

Mix e Master – Faculdade De Rua

Video – Lucas Daniel

Realidade do Morro – Da Mente

Fechamos essa matéria com o vídeo clipe Realidade do Morro do rapper Da Mente. Trata-se de uma incursão no cotidiano das quebradas brasileiras, moldadas pela violência causada pela ausência do estado  no que se refere à garantir os direitos básicos dos cidadãos. A presença do estado ocorre através das forças amardas e PM, sempre de prontidão para reprimir a população periférica.

Ao morador das favelas resta se adaptar ao habitat que lhe é oferecido pelas elites que governam o país ou se tornar uma força de combate. Da Mente mostra ser essa força de combate através de suas rimas. Mostra a responsabilidade social e política dos jovens da periferia em lutar contra a formatação social a que são submetidos desde o primeiro suspiro de vida. Nesse sentido é preciso lutar contra o aliciamento do tráfico, buscar meios de não ser enquadrado pelo estereótipo racista que tentam lhe o brigar a assumir.

Em seus versos aborda diferentes pontos de vista sobre a condição social de quem vive nas periferias. Existem aqueles cuja sorte foi selada por uma bala, aqueles jogados nas celas das prisões, assim como existem os que fazem a correria pelo certo, tentando escapar do destino que lhes fora designado desde antes de nascer. 

Da Mente não tenta despertar piedade em seus ouvintes, muito pelo contrário, busca sensibilizar a população das quebradas para a necessidade de lutar contra um inimigo camuflado, que tenta fazer com que todos caminhem na direção do abate, tentando através dos meios de comunicação torná-los mansos, para facilmente aceitarem o laço no pescoço. 

Realidade do Morro quer despertar a favela do sono dogmático ao qual é submetida através das redes sociais e tv, para compreender a realidade social em que vivem e que existe um inimigo em comum, que está fisicamente longe, apenas manipulando as vidas, como se fossem peças num jogo de tabuleiro. 

Ficha Técnica

Letra – Da Mente

Lyric Video por Lucas Daniel

Mix e Master: Faculdade de Rua

 

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