O ano de 2024 assinala a volta de Rah Lobato ao cenário do rap nacional com a parceria artística e elegante do Digmanybeats em discos e singles!
Só podemos ter saudade do que conhecemos, e neste sentido muito se perdeu no rap nacional sem que a imensa maioria do público tenha ideia do que deixamos de ter. Alguns anos atrás, auxiliado pelos mestres Blackalquimista e pelo meu conterrâneo e irmão Dr. Drumah tive acesso a algumas pérolas do rap jazz nacional, muitas das quais estão fora das plataformas de streaming.
Ao fazer o dever de casa, passando o pente fino nas pastas com os discos, o coletivo Bossa Beats começou a chamar a nossa atenção com discos do próprio Dr. Drumah, do Primeira Audição, do Gelleia e do Ritmistas da Sessão, dentre outros. Esse primeiro trabalho de prospecção se transformou em um pequeno guia que publiquei aqui no Oganpazan.
Corta para o começo deste ano, sendo impactado pelas produções e batendo papo com o produtor Digmanybeats ele me informava que dois discos sairiam em parceria com o Rah Lobato e que ele voltava ao cenário após uma pausa na carreira. E na minha ingenuidade perguntei quais discos ou singles ele tinha lançado antes, ao que ele me respondeu: ele era do Ritmistas da Sessão.
-Leia o artigo no site 5 Grandes Discos do Jazz Rap Brasileiro Que Você Precisa Conhecer
Pois é, caro leitor, o Rah Lobato junto com o Alemão formavam o Ritmistas da Sessão, grupo sensacional de rapjazz que lançou um disco fino demais e homônimo em 2012. Certamente, um dos documentos históricos do Rap Jazz Nacional que está até o presente momento fora das plataformas, mas a boa notícia é que o disco está em vias de subir nos streamings e o Oganpazan estará na contenção com matéria especial sobre essa reparação histórica.
“Construindo e ritmando uma carreira solo potente”
Desde o Ritmistas da Sessão, Rah Lobato só tinha lançado um single em 2021 com a faixa Firme e Forte, que está presente no seu Spotify. A música “Questão de Tempo” presente no seu primeiro disco solo lançado esse ano, Convite, nos dá uma explicação sobre esse período sabático onde ele se organizou para recomeçar. E neste sentido, a parceria com Digmanybeats foi fundamental para esse retorno em grande estilo.
Após três singles com produções do mestrão Blackalquimista (“Lírica Glock”) e do Digmanybeats (“E Se Não Fosse o Rap?” feat Goldman e “Real Pixo”), que apresenta a sujeira, o conhecimento e o amor à cultura hip-hop, Rah Lobato construiu este ano um excelente portfólio. E importante destacar, o MC amplia bastante as temáticas mas principalmente a sua forma de entrega, os climas e temáticas desde o tempo do seu antigo e clássico grupo.
-Leia mais sobre Blackalquimista aqui no site, na resenha que fizemos sobre o seu último disco!
Com o disco “Convite”, composto por 11 faixas, todas produzidas pelo Digmany na linha do drumless, percebemos o quanto o cenário tinha perdido com a sua ausência. Rah Lobato, o Liricista traz em suas linhas muita vivência de rua e consegue mesclar com bastante qualidade técnica crônicas sociais, observações críticas sobre o cotidiano, apresentando sempre imagens poéticas que fogem ao ordinário. O seu estilo é direto, sem muitas abstrações, mas as construções que o MC apresenta, sempre surgem muito bem amarradas e ricamente ilustradas pelo domínio técnico de flow e jogos de rimas que primam pelo liricismo.
Prova disto, a música “Lados da Moeda” onde Rah Lobato aborda o tema da desigualdade social promovendo um contraste poético na forma de um storytelling que nos apresenta os dois panoramas que o título suscita. Aliando a técnica na construção das rimas a um flow sempre assertivo e modulando a entrega de acordo com as texturas sonoras que o beat enseja. O MC apresenta-se em 2024, 12 anos após o lançamento do seu primeiro disco com o Ritmistas da Sessão, com uma forte consistência poética de rimas e flow, mas também com uma sede imensa de produzir.
“Elos nas sessões, Hip-Hop como vício e expressão de vida”
A adicção por drogas é uma patologia que o portador carregará por toda vida, e certamente um fardo psicológico a ser enfrentado todo santo dia. Recentemente, pipocou um meme na internet que dá conta do peso existencial, social e político que é ser artista. E sabemos o quanto é difícil e até massacrante lidar com a cultura preta e periférica no Brasil. O extermínio da população negra em nosso país possui diversas camadas de atuação, e certamente uma delas é a busca pelo apagamento, pela ostracização dos artistas negros do país.
O segundo disco lançado por Rah Lobato neste ano, traz músicas que refletem a sua adicção pela cultura Hip-Hop, ao mesmo tempo que a sua produção reflete formas de driblar as dificuldades de produção impostas aos artistas negros e periféricos. “Elos” traz mais uma vez a produção do Digmanybeats que ajudou a “resgatar” a carreira do Rah Lobato, oportunizando em uma forte parceria as condições de produção para que o MC tivesse um ano tão forte quanto neste 2024.
-Conheça a trajetória de Digmanybeats, lendo a nossa entrevista feita com ele aqui no site!
Aliança que se conjuga sobretudo pelo vínculo da cultura que é capaz de unir universos distantes e fazer-nos reconhecer parceiros que de outro modo talvez nunca conhecêssemos. Na entrevista que fiz com o Digmany ele nos conta sobre a identificação com o modo de trabalho do Rah Lobato e como isso casou perfeitamente consigo mesmo. Prova disso são as 25 faixas lançadas em parceria pela dupla, divididas em dois discos e 3 singles.
Primeira música presente em Elos, a faixa “Cheguei” ganhou um clipe gravado na Caverna do disco de Vinil em SP. A escolha do cenário, um sebo de discos e livros, entrega de saída quais são os interesses do artista dentro da cultura, por qual motivo ele milita e como suas ideias são construídas. Estudo, vivência, ideia reta, a SP404 do Digmany fazendo a cama cadenciada e ilustrada por samples ricamente pesquisados e colhidos da fina flor da música mundial.
No disco, um afeto muito presente é o da observação do cotidiano pelas lentes da ritmía malemolente que balança corpos e mentes dos amantes do boombap. E obviamente, isso é artisticamente ilustrado sem nostalgia fajuta dos amantes do rap real, tudo embedido de muita vivência de rua com aquela substância malandra que nos ajudou a superar obstáculos estrategicamente colocados para nos fazer – povo preto – tropeçar.
Após o lançamento do single da faixa “Cheguei”, foi a fez de outro videoclipe, desta vez da música seguinte: “Golden Era”. A música traz uma apreciação do tempo e da história que nos faz pensar no quanto por vezes estamos afundados pela ausência de um horizonte de futuro político. Essa falta de perspectivas, a imobilidade de quem não luta, faz com que muitos recaiam na nostalgia, na ideia chucra e conservadora de que “no meu tempo é que era melhor”.
Em “Golden Era”, Rah Lobato transporta para sua própria formação esses anos de ouro, mas longe de produzir uma ode ao saudosismo mais “reaça”, ele rima de modo a nos fazer pensar que, essa história não é imóvel, e não se cristalizou. Ela se afirma como possibilidade de futuro e luta no presente, na própria obra atual do MC. O audiovisual e a edição do clipe ficaram a cargo de Tom Vargas (@gorila_strong).
Um ponto interessante neste sentido no audiovisual, é a presença do grande “Carlinhos”, irmão mais velho do MC e que foi o responsável por lhe aplicar a importante formação supracitada. Muitas vezes não valorizamos pequenos “signos” como estes, mas que neste caso nos comunicam vida, continuidade, presença no tempo após grandes feitos. O irmão mais velho, vendo ali o seu importante trabalho presentificado e com excelência.
Como anunciado pelo Digmanybeats na intro do disco, cada palavra que termina uma música, inicia a próxima e fortalecendo o “Elo” das ideias e da poesia, Rah Lobato segue à risca a proposta. Se “Golden Era” se encerra com a palavra “calçadas”, na 4º música que compõe o disco, “Correria” se inicia nas “Calçada de SP…, onde o MC produz uma crítica muito sagaz sobre a exploração do nosso povo trabalhador em uma São Paulo feita para adoecer, como de resto em todas as nossas grandes e médias cidades.
O ritmo frenético é inserido na construção do beat pelo Digmany através de sons de telefone, de um synth no limiar do ruído junto ao ritmo. Assim como pelo DJ WillCutz nos riscos inserindo o sample em repetição da palavra “correria” tirada do clássico dos Racionais MC’s: Mágico de Oz. junto essa parceria cria ideia sonora de atordoamento presente na lírica.
Como cronista de alta sensibilidade, em “Entre Linhas” – talvez uma das nossas músicas preferidas do disco – Rah Lobato produz com leveza e beleza observações sobre nossos pares trabalhadores nos trajetos de ida e volta para a lida. Os temperamentos, humores, tipologias, distrações que aliviam esse que é um dos gargalos na vida das cidades. Ao mesmo tempo, o DJ WillCutz em um trabalho que só DJ ‘s podem fazer com essa maestria, insere um sample do clássico O Trem do RZO. Mostrando-nos o quanto músicas assim são importantes para que possamos perceber as mudanças e permanências que a Arte nos faz perceber na História.
Ao longo de todo o disco, as faixas são curtas como também estava presente no contrato inicial proposto pelo Digmany na Intro. Porém, a minutagem das músicas estão muito distantes de representar a duração que as rimas e batidas nos transmitem. É fundamental não deixar de apontar neste sentido as inserções de neurocirurgião promovidas pelo DJ WillCutz, pois é o terceiro “elemento” a fechar expandindo a parceria entre Digmany e Rah Lobato em Elos.
A corrente espiritual que une pessoas e que é presentificada aqui através da Cultura Hip-Hop, faz com que este elo seja um objeto artístico digno de admiração. Sublimando as alianças artísticas e culturais em um objeto artístico rico sonora e poeticamente nas avaliações que ligam a formação individual ao contexto coletivo, sem ideias tortas, sem arrego ideológico e sobretudo com muita inventividade e combatividade criativa.
Ainda temos as duas faixas finais, que trazem duas participações especiais. Primeiro com o Mattenie, na música “Ecos da Vida” em um drumless do Dig, onde podemos resumir como uma música sobre plantação na vida. Onde os MC’s nos falam sobre uma postura saudável diante do caos em que estamos, para que sejamos capazes de dar o nosso melhor para os nossos nessa epopeia silenciosa, sem espetáculos que vivemos.
Finalizando com um feat internacional do WRD Life, MC de Nova Iorque da banca “Four Elements and Beyond”, onde se rompe o contrato assinado no início do disco com uma faixa que chega aos 3 min e 17 s. Porém, a justificativa podemos retirar da geografia e da distância que envolve os “Relatos NYC & SP”. Junto a desculpa esfarrapada mas não sem alguma razão – se nã o formos dogmáticos – do produtor de que ele cola também dois beats na faixa. Para facilitar e onde os dois MC’s justapõem suas críticas e observações sobre os status quo, diferenças e semelhanças entre as opressões sobre as duas cidades.
Você que chegou até aqui, cansou? Pois, a parceria de Rah Lobato e Digmanybeats nem um pouco, afinal os caras soltaram após tudo isso acima descrito mais um single: “Nerd Brota”. Com a participação do Danilo Skrap, a faixa é um escalde no Ed Motta que andou mais uma vez falando merda na internet!
O fato final é que Rah Lobato tem nas ruas um ano de 2024 preenhe de futuro, com obras que estão no mais alto nível do que foi feito até aqui. Ao mesmo tempo, reconstruindo no sentido de voltar a fazer, com a sede e o ímpeto de um viciado que não reconhece obstáculos para realizar sua necessidade. E para isso devemos dar graças ao Carlinhos que fez um excelente serviço de viciar o jovem irmão. Porém, não teremos tragédia por aqui, só realizações como foi neste ano, assim como alianças com outros tantos adictos dessa cultura que amamos!
Não sentiremos saudades do Rah Lobato, valeu Carlinhos, Valeu Digmany!
-Rah Lobato em um 2024 de “Elos”, sem saudades do passado em rimas e batidas! – Artigo
Por Danilo Cruz