Oganpazan
Artigo, Destaque, Lançamentos do Rap Nordeste, Rap Nordeste, Resenha

Quais os “Milagres” que fizeram Avicena voltar ao cenário do Rap Sergipano?

“Milagres” feat Sarah Vasconcelos é o primeiro single da volta Avicena, após anos de afastamento da música e da cena do Rap Sergipano  

Avicena
Avicena em seu habitat natural

Longe de qualquer tipo de elitismo, a arte é uma forma de pensar o mundo, logo os artistas além de trabalhadores da música são por óbvio pensadores. São eles que através do seu ofício nos apresentam afectos e perceptos capazes de nos tirar do lugar, o resto são entertainers, influencers e toda essa turma do vazio. O que não é o caso de Avicena, que carrega no vulgo, o nome de um dos filósofos árabes mais importantes, e sempre prezou por construções que nos dão a pensar.  

-Leia no site os textos que publicamos no site sobre a rica cena e sobre diversos artistas do Rap Sergipano

Após 8 anos de afastamento do cenário Rap em Sergipe, Avicena lançou recentemente o primeiro single de sua volta aos trabalhos artísticos: “Milagres”. Contando com a participação de Sarah Vasconcelos, o instrumental de Victor Leonardo e a produção musical de Braga, o single que ganhou um audiovisual pela Look.mov é o primeiro movimento deste retorno, e curiosamente já nos primeiros versos, Avicena rima: 

“Eu encontrei algo que me fizesse ir, precisava de algo que me fizesse voltar, ainda preciso de algo que faça ficar”

Já nesse jogo entre os tempos do verbo “fazer”, Avicena nos convoca a pensar sobre a sua trajetória e sobre a sua obra, então interrompida e agora retomada. Ao mesmo tempo que nos lança sobre as espirais do tempo que constroem em nós e nos “outros”, os encontros, as necessidades e sobretudo nossas buscas: “encontrei”, precisava” e “preciso”. Sendo assim, vamos voltar ao passado…

Um dos renovadores do Rap Sergipano, em meados da segunda década do século XXI, ele fundou o Alquimia Solar, reunindo MKM, Pedro Guaraná e Dartha. Juntos, o grupo trazia uma lírica underground sem perder as características regionais e lançaram um EP que marcou não apenas o Rap Sergipano, como iniciou uma prolífica parceria com nomes do rap underground baiano. Caduceu (2017), trazia as parcerias sergipanas de Sinônimo Subversão nas rimas e produções do Douglas de Paula, enquanto pela “Linha Verde”, se coligaram com o Beiranto Teto (headB e Davzera). 

Avicena Após a iminência do “Ano Lírico”, Avicena se destacava por seus lançamentos solos que o colocavam no mesmo patamar artístico dos nomes que então se destacaram. Porém, lançamentos como “Recado a Babel”, ‘“Inferno de Dante” e vários outros entre solos e participações, não alcançaram repercussão nacional. Neste momento, “vivendo uma vida de fuga”, entre o homem Lucas Safadi e o poeta Avicena, se fez uma cissão, e não estou aqui psicologizando a caminhada e a música de Avicena. 

Esse dado de uma vida de fugas pode ser denotado, de um verso presente da canção “Milagres”, onde o MC vai mais longe e nos conta uma parte importante dos problemas familiares pelos quais passou ainda na adolescência: 

“Minha puberdade sendo espancada dentro de uma clínica, pois mamãe estava internada por uso abusivo de drogas” 

Note-se que o MC não relata um espancamento físico, mas como uma parte importante de sua constituição subjetiva se fragilizou pela sua condição familiar. E neste sentido, Avicena não recorre ao recurso de causar no ouvinte qualquer tipo de comoção, mas antes nos relata poeticamente algumas das causas que lhe levaram a “encontrar” mas ao mesmo tempo, a reconhecer no outros, alguns “Milagres”. 

-Leia os textos, resenhas e artigos publicados no site sobre o MC sergipano Dartha

Certamente, se você possui um contato menos superficial com o cenário musical independente em geral e com a cena sergipana de rap em particular, você já deve ter percebido que por trás dos holofotes, das roupas bonitas, dos videoclipes existem vidas que estão lutando para se expressar. A relação entre trabalho e arte, infelizmente por uma construção colonial e sobretudo capitalista, leva milhares de pessoas a imaginar que a vida artística em qualquer âmbito é um sonho. 

Porém, os grandes artistas estão felizmente para nós e muitas vezes infelizmente para eles sempre em busca de algo que não encontram, algo que faz com que eles estejam sempre criando. O escritor tcheco Franz Kafka, abordou essa questão em um dos seus contos, nomeado como “Um Artista da Fome”, onde ele descreve “um” artista como profissional na arte do jejum. Já no final do conto, há um diálogo esclarecedor entre um inspetor de circo e o artista da fome, onde o Jejuador ao ser interrogado por ainda estava ali jejunado, lhe diz: 

“Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo.”

Aqui, não há moral da história, a convicção que leva o Jejuador a continuar o seu ofício, até ser enterrado com a palha sob a qual praticava o seu ofício se comunica diretamente com a volta de Avicena e com todos os artistas que se mantém ao longo da vida criando. É talvez a única constante presente em tantos artistas diversos ao longo de todos milênios da civilização humana, A Busca. E para a nossa felicidade, Avicena encontrou a estabilidade necessária para retomar a sua.

O audiovisual que acompanha o single é um registro simples, mas poucas vezes comunicou mais com a essência do single como aqui. Há uma intenção estética por trás de tamanha simplicidade, que o fato de registrar o local de onde Avicena nunca deveria ter se afastado: os estúdios de gravação, o habitat, o espaço onde ele primordialmente vai plasmar as suas vivências e dar expressão a sua alma. E além do registro espacial, vemos também o artista em ação com os seus companheiros e toda a energia que os liga. O trabalho da Look.mov está longe de alcançar a banalidade de um mero registro.

“Sei que todos buscam algo que faça sorrir, só chorar de gargalhar, esquece esses traumas” 

Neste trecho da música, que recebe a interpolação da Sarah Vasconcelos que com um bela voz canta: “Todos os dias acordo e é um grande milagre”, vemos como o artista trabalho a necessidade primordial da existência humana, não apenas sua. Nenhum ser humano vive buscando o sofrimento, a felicidade é desde sempre a busca principal da humanidade. No entanto, por fatores diversos, presentes ou não na música, o sofrimento infligido pode fazer com que caiamos em armadilhas disfarçadas de felicidade para curar os buracos da alma. 

A busca por um mínimo de sanidade, que sobreponha a busca pela sobrevivência escancarada por Avicena ao se referir ao nosso sistema político, econômico e cultural, revelam o que o eu lírico do poeta mais tem valorizado e que foi o sustentáculo de sua volta a arte: a família e os amigos. Que lhe proporcionaram estabilidade emocional suficiente e colaborações empáticas de verdade, para além do famoso: “Tamo Junto”. 

É essa construção orgânica que faz com que Avicena reconheça e nos faça reconhecer o aspecto essencial de nossa existência, a vida que emerge em nós, sem romantismo acerca do dom divino – pelo menos não para mim – e sim com a consciência de que o nosso tempo na terra não pode ser definido apenas pelas necessidades e sim pelos encontros. Por aquilo que ao nos trombarmos sentimos estar sendo levados a uma outra configuração de vida, de alegria, de potência de viver. 

Esses encontros são nomeados de infinitas maneiras, mas para mim, são a música e o amor da minha família, o carinho dos amigos, a troca de ideias e a visão de beleza da natureza e de outros seres humanos que estão conseguindo alcançar suas liberdades e vivendo mais plenamente. Pode parecer piegas, e não quero meter um ‘minutos de sabedoria” aqui no final do texto, mas é como vejo. 

Sobre quais os “Milagres” que trouxeram Avicena de novo ao cenário, espero ter conseguido responder. Os dois minutos da música já os deixam bastante claro, sendo assim, só quis mesmo ressaltar esses aspectos que não dizem respeito apenas ao homem Lucas Safadi e ao Avicena, mas a todos nós que possuímos o atributo de absorver e produzir arte, pois de certa maneira, fazer arte e fruir a arte são dois lados da mesma moeda. Que sejamos capazes de nos reconhecer nessa mesma substância.    

-Quais os “Milagres” que fizeram Avicena voltar ao cenário do Rap Sergipano?

Por Danilo Cruz 

Matérias Relacionadas

Rap Nova Era lança Vai Cair(2018) Terceiro single rumo a Renovação!

Danilo
7 anos ago

The Baggios lança Juliana EP (2018) Colocando afeto na política!

Danilo
7 anos ago

Biscó lançou o single “Genocida no poder”

Dudu
4 anos ago
Sair da versão mobile