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Punho de Mahin, Ancestralidade e Embate – 2022

Em 2022, a Punho de Mahin, banda punk originária de São Paulo, reforçou o cenário musical com o lançamento de seu álbum de estreia, infligindo mais um violento golpe contra o racismo.

Toda e qualquer ação contra a opressão é uma ação legítima 

Frantz Fanon enfatiza em seu livro “Os Condenados da Terra” a importância de estarmos atentos à armadilha presente nos argumentos falaciosos que tentam equiparar os atos violentos do opressor ao revide de igual natureza dos oprimidos. Isso porque consiste num artifício retórico cujo objetivo é deslegitimar qualquer tentativa do oprimido de lutar contra a opressão que lhe é imposta.  

“Representação de Luíza Mahin como potência de força e luta contra o processo de escravidão no século XIX”. Fonte: facebook da Punho de Mahin. Arte: Paulo Kalvo

Estamos observando esse cenário se desenrolar na maneira como a grande mídia faz sua cobertura da atuação de Israel na Faixa de Gaza e na Cisjordânia contra o povo palestino, por exemplo. Contudo, o modo como usam esse argumento aqui no Brasil, não é diferente.

A violência policial, portanto, a violência do estado contra a população preta e periférica, também é justificada nos noticiários da mídia hegemônica brasileira, pautada por esse mesmo argumento falacioso da suposta equivalência entre a violência do opressor e a do oprimido.

Esse tipo de cobertura tendenciosa, ativa o gatilho de um juízo já consolidado no imaginário popular, a ideia de que toda violência possui a mesma natureza, sendo, portanto, equivalentes.

Não vou nem buscar referência em algum autor ou autora do campo revolucionário. Vamos lá na raiz do liberalismo.  A tradição política liberal, desde John Locke (em seus célebres Dois Tratados Sobre o Governo), fornece argumentação consolidada sobre o direito de todo cidadão e cidadã de se contrapor à tirania e à opressão de um estado ilegítimo.

Trazendo para nosso contexto, qualquer ação ilegítima do estado contra sua população, ou seja, qualquer ação que não esteja respaldada pela Constituição Federal de 1988, é ilegítima. Sendo assim, contrapor-se a ela, mesmo lançando mão de violência, torna-se uma ação legítima, respaldada constitucionalmente.

Portanto, devemos bradar em alto e bom som que toda e qualquer ação contrária à atuação inconstitucional do estado é uma ação legítima. Quando a ação do estado descumpre os direitos básicos garantidos pela constituição, como direito à moradia, educação, trabalho, a população tem o direito de se manifestar, respeitando as regras constitucionais, enquanto o estado também respeitá-las, claro.

Diante disso, a classe trabalhadora, a população negra, moradores e moradoras de áreas periféricas, tem o direito de se manifestar contra toda e qualquer instituição que lhes oprime. Porque são essas categorias socioculturais que sofrem a repressão violentas do estado, através das suas instituições, sendo a mais corriqueira a PM.

Quem não se lembra da viatura da PRF transformada em câmara de gás ceifando a vida do nosso irmão Genivaldo de Jesus? O resultado dessa prática foi o assassinato de Genivaldo pelos policiais que o detiveram. Esse caso ocorreu no estado de Sergipe em 2022. (relembre aqui)

Ou os inúmeros casos em que policiais mataram crianças na região metropolitana do Rio de Janeiro (leia aqui). Ou ainda o caso da família cujo carro foi fuzilado por mais de 80 tiros disparados por soldados do exército no Rio de Janeiro. A família se dirigia para um chá de fraldas. O músico Edvaldo Santos morreu na hora (leia aqui).

Ou quando Geraldo Alckmin, nosso atual vice presidente, à época governador de São Paulo, mandou a polícia reprimir violentamente estudantes secundaristas e professores que se manifestavam contra o fechamento de escolas (leia aqui).

Ou ainda quando Beto Richa, então governador do Paraná, mandou que sua PM reprimisse de forma extremamente violenta os professores e professoras do seu estado, por exercerem o direito constitucional à greve (leia aqui). 

O estado brasileiro executa suas ações para defender o interesse da burguesia deste país. Porque esta mesma burguesia financia campanhas eleitorais, ajuda a eleger políticos para cargos no legislativo e executivo para representar seus interesses nas instancias governamentais.

Burguesia cuja linhagem descende do colonizador europeu, dos senhores de engenho. Ainda somos um país alicerçado sob as bases de seu passado colonial e escravocrata. 

O racismo está institucionalizado, faz-se presente nas estruturas sociais e se manifesta cotidianamente nas relações sociais, principalmente naquelas em que há hierarquia. Como entre os representantes dos patrões e os empregados, por exemplo.

Desse modo, a população negra, os trabalhadores e trabalhadores, moradores e moradoras de periferia, toda pessoa alvo de opressão, tem o direito de se organizar politicamente para defender seus direitos através de coletivos e associações populares, movimentos sociais, partidos políticos ou mesmo usando da arte e da cultura para isso. E quando forem alvo de violência, tem o direito de responder à altura. 

Punho de Mahin socando a cara dos racistas

Dito isso podemos falar sobre a Punho de Mahin, banda punk preta, que AFROnta a sociedade racista, classista e fascista. E o faz através de uma sonoridade e discurso pautados por uma verve combativa alimentada pela consciência ancestral de luta contra e através do ódio pelos senhores colonialistas e seus herdeiros.

Punho de Mahin. Fonte: perfil da banda no facebook.

A banda já traz no seu nome a associação de dois símbolos expressivos acerca da luta contra a opressão direcionada ao povo negro no Brasil desde os primórdios deste país: o punho cerrado e o nome da líder revolucionária Luiza Mahin. 

Luiza Mahin, africana da nação nagô, exerceu papel decisivo em uma das principais revoltas negras da nossa história, a Revolta dos Malês, ocorrida aqui em Salvador na primeira metade do século XIX. Daí vocês já tiram a força evocada pela menção do nome e da imagem dessa mulher pela banda paulista.

Para saber um pouco mais sobre Luiza Mahin clique aqui. 

Em 2022 a banda lançou seu álbum de estreia, acertadamente batizado como Embate e Ancestralidade. Associando essas duas palavras a banda une duas ideias centrais para a tomada de consciência da pessoa negra no Brasil acerca de sua condição dentro da realidade socioeconômica e cultural do país.

Primeiro conhecer seu passado, aprender sobre sua herança ancestral a partir de uma narrativa produzida por quem já adquiriu tal consciência. Para assim descontruir a imagem deturpada da pessoa negra produzida pelo colonialismo.

Saber que sua descendência vem de raízes guerreiras, que seus ancestrais escravizados resistiram, lutaram contra a condição a que foram postos por seus captores. A partir daí, tem-se a possibilidade de produção da subjetividade guerreira, independente, pronta para o embate, tanto no campo das ideias, quanto no campo da materialidade. 

A banda paulista foi criada em 2019 e é formada pela vocalista Natália Mota, pela guitarrista e vocalista Camila Araújo, pelo baterista Paulo Tertuliano e pelo baixista Du Costa. Fazendo sua música, a banda cumpre seu papel de dar relevo às questões de raça e classe próprias do cotidiano brasileiro.

E não tem sonoridade melhor para expressar indignação e revolta contra racista arrombado que a dobradinha punk/ hardcore. Isso porque sua natureza já é agressiva. E dentro deste flanco, a banda trava uma outra luta, contra o embranquecimento do rock e consequentemente de todas as suas vertentes, inclusive o punk rock.

Por isso mesmo a Punho de Mahin surge como uma banda totalmente preta marcando sua presença numa cena sequestrada pela branquitude. A banda faz isso de forma contundente, sem pedir licença,  basta ver seus shows, clipes e agora seu álbum.  

A  Punho de Mahin emerge de forma categórica no universo underground, trazendo consigo um hardcore impetuoso e incisivo que se funde às experiências de vida partilhadas por quatro integrantes de origem negra e periférica. 

Os títulos das composições, como “Direitos Violados”, “-Racista”

Arte de capa do álbum de estreia da Punho de Mahin.

e “Navio Negreiro”, delineiam de maneira inequívoca as temáticas profundas que ressoam no âmago da banda.

Essas escolhas de temáticas não apenas refletem, mas também evidenciam as questões sociais, assim como os desafios enfrentados pela comunidade negra e a denúncia de injustiças perpetradas contra os africanos e africanas escravizados e seus descendentes.

Portanto, a música da Punho de Mahin não se limita apenas  à estética sonora,  como aliás rola com muita banda punk/ hardcore por aí, mas torna-se uma expressão incisiva e visceral de uma realidade que clama por reflexão, porém ainda mais por transformação da realidade opressora na qual a população negra vive.

“Xingú”, faixa que abre o álbum, inicia-se com uma declamação que pinta os matizes da escravidão desde os primórdios da colonização portuguesa em 1500. Ao longo da audição, a narrativa central se desenrola em cenários e épocas diversas.

Já Estupidez”, faixa seguinte, surge como um soco direto no estômago, ao questionar a barbárie comportamental enraizada secularmente em nosso país, proclamando no refrão o verso marcante “Estupidez racista”.

Integrantes da Punho de Mahin e da Fuzzuês juntos pra dar todo peso que a luta contra a opressão do povo preto merece. Fonte: facebook da Punho de Mahin.

Versos como “Considerado fugitivo, lutava pelos oprimidos”, da vertiginosa “Carlos Marighella”, expressam a força e resiliência próprias de quem está disposto a lutar. E quem esteve mais disposto à luta contra a opressão na história recente de nosso país do que Carlos Marighella?

A faixa “Racista” enfatiza a ação colonialista sobre a população negra do Brasil ao longo do nosso processo histórico.  Vemos nossos algozes sendo retratados nas entrelinhas em diferentes momentos, sob diferentes personas.

Por isso mesmo a música é executada com a ferocidade que o ódio aos racistas em suas mais diversas personas exige: o capataz, o senhor, o europeu, o patrão, o banqueiro, o empresário, o estado, a policia.

Embora não sejam citados nominalmente, somos levados a inferir sua presença em versos como  “Racistas impuseram sua fé”, “Racistas te marginalizaram”, “Racistas te deixaram com fome”, e por aí vai. 

O quarteto não concede trégua nem musicalmente, nem na densidade lírica. A mensagem é tão agressiva quanto a música, um contraponto à agressão racial perpetuada ao longo de gerações.

“Protagonista” apresenta versos fortes, mostrando que a submissão não é um traço característico de uma pessoa subversiva: “Não posso ser submissa, porque sou subversiva”. A força da mulher, principalmente da mulher negra se expressa em toda sua intensidade nesta faixa.

“Navios Negreiros” é um furacão sonoro. É, sem dúvida, a faixa mais vertiginosa do álbum e uma das mais destacadas. Tanto letra quando música refletem bem a realidade material, emocional e psíquica daqueles transportados como mercadorias nos porões dos chamados “tumbeiros”. Os navios negreiros recebiam essa alcunha devido à alta taxa de mortes entre os africanos e africanas capturados e convertidos em mercadoria.

“Direitos Violados”, penúltima faixa do álbum, aborda de forma direta e taxativa a ação policial contra a população trabalhadora, negra e periférica. Bom, podem inferir a fúria emanada da execução dessa música. Melhor que isso só ouvindo!

Encerra o álbum a faixa que leva o nome da banda. Em Punho de Mahin, a banda conta a história da líder revolucionária, ressaltando sua atuação combativa na luta contra a escravidão. Evocam sua história de luta como fonte de inspiração para as novas gerações ainda sob ataque dos racistas através das estruturas coloniais vigentes atualmente.

Embate e Ancestralidade é uma obra necessária e se apresenta como manifesto sociocultural de conscientização racial e de classe. Através dela a Punho de Manhin busca construir o protagonismo negro dentro da cultura punk fazendo uma música que se apresenta como um chamado à luta e à resistência do povo negro no Brasil. 

 

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