Favela Vive, um projeto capitaneado pelo grupo de rap ADL (Além da Loucura), possui um produto que tem feito história no rap nacional, leia:
Lord ADL (Além da Loucura)
Desde a primeira até esta quinta edição, o projeto audiovisual Favela Vive foi se transformando progressivamente em um dos grandes produtos do rap nacional. Capitaneados pela dupla ADL, foram incorporando outros mercados a partir do 3º episódio com a inserção de MC’s do funk e de mulheres fundamentais para a cultura Hip-Hop, como Negra Li e Kamila CDD.
O lançamento do potente Favela Vive 5, novamente gerou uma explosão no cenário. Os envolvidos estiveram em alta no twitter, com números exponenciais e crescentes. Enquanto escrevo, o projeto atual já passou de 1,5 milhões de visualizações no youtube e contando. Como é de se esperar, diversas páginas estão produzindo recortes e comentários, com reacts até do Jones Manoel, ou seja, trata-se de um estrondoso sucesso.
Em termos de roteiro, como peça audiovisual essa edição do Favela Vive possui o mesmo primor que o seu volume anterior. Na real, se faz possível através de uma análise semiótica das cinco edições de Favela Vive, pensar na conjuntura do rap nacional hoje. Percebendo inicialmente que a partir do volume 3 quando passaram a circular pelas areas, o produto ganhou e muito em termos audiovisuais.
Se na primeira edição os participantes estão em cima da laje, já na segunda a coisa é colocada em movimento de baixo de chuva, onde os MC ‘s Lord (ADL), BK e Funkero sobem um degrau para encontrar DK e a grande lenda MV Bill. A partir do terceiro volume as câmeras passam a capturar os MC ‘s pela favela, não mais dentro de uma “base”.
Neste episódio de número 5, a participação de Dona Leci Brandão deu-nos um referencial que serve muito a intenção deste texto. Citando a grande Harriet Tubman e a sua luta para libertar negros e negras escravizados do sul dos EUA, resgatando-os e lhes conduzindo pela Underground Railroad (Vale ver a série da Prime Vídeo), Dona Leci nos mostra o quanto é importante apresentar um caminho fora do padrão estabelecido pela branquitude.
Por outro lado, dentro de toda a visão sobre favela vencedora, inclusive reificada pelos versos do Major RD que compara a fundação Rock Danger e dois cavalos caros à legados, resta nos perguntar: legado para quem? Ora, devemos estar todos sempre felizes com conquistas pessoais de jovens artistas negros, nem nos furtarmos a criticas. Porém, é curioso ver essas conquistas pessoais se inserindo junto a críticas estruturantes. Como diz a nossa mais velha:
“Ou seremos todos Zé do Caroço ou vamos todos puxar carroça” Leci Brandão
Pensamos que a realização destes audiovisuais devem ser certamente um sonho artístico e cultural dos caras do ADL, mas um dado problemático de saída com esse tipo de produção e sua relação com a indústria cultural no Brasil é que apesar de ser o produto audiovisual de sucesso mais “Hip-Hop”, ele ficará apenas como uma virtualidade. Dependendo do suporte do Youtube e sem o abraço do mercado da música no rap, o Favela Vive não se transforma em um espetáculo musical e pior ainda não se transforma em agenda de shows para o ADL. Sobre essa questão Gil Souza do Bocada Forte nos fala:
“Um ponto importante com este tipo de produção, não apenas nesse trabalho, mas em muitos outros que já reparo há muito tempo é que as músicas que não saem das plataformas, ou seja, não vão para palcos. Vc já reparou que além da questão de números da dupla, eles TB não tem uma agenda de shows abrangente em nível nacional, não estão em festivais?”
Ora, em tempos onde o rap cada vez mais se distancia da rua quando se fala das produções do mainstream, essa é uma questão no mínimo preocupante. Toda a força do discurso presente no Favela Vive tende nas redes sociais e nos streamings a virar reflexos que não se transformam em matéria, parafraseando o Makalister! Só tivemos a oportunidade de ver o ADL em Salvador quando ocorreu o lançamento do disco Renovação (2019) do grupo soteropolitano Rap Nova Era, com quem os caras gravaram um clipe.
“Quando você já viu uma zebra com o leão na boca?” DK ( ADL Além da Loucura)
Um dado curioso para além do efeito manada, do modelo de negócios vencedor e do sucesso de público é notar como esses números não se refletem também na própria obra do ADL – Além da Loucura. Com apenas 4 das primeiras edições do Favela Vive, os números reunidos ultrapassam 157 milhões de visualizações somente no youtube. Com exceção do clipe da música “1º de Abril”, lançado há 6 anos atrás, nenhum outro trabalho do ADL possui milhões de visualizações com apenas a dupla como única atração.
Ao contrário do que o leitor possa imaginar, isso não nos parece atestar um problema da dupla, haja vista que o último álbum do ADL, “Da Favela pro Mundo” lançado em 2020 possui números passando dos milhões e no geral o grupo tem um trabalho bastante sólido em termos de visualizações e dentro da estética a que se propõem. Porém, ainda assim há um abismo entre os audiovisuais, toda a atenção gerada, os números e a “notoriedade” conquistada e o trabalho dos caras, assim como com todo o cenário do rap mais voltado para a crítica social.
Quando projetos como Favela Vive explodem, o que podemos perceber é o que poderíamos chamar de “comoção de momento”. Páginas, público e algoritmos, descobrem assim como que por uma espécie de milagre, todos os problemas que a estética mais combativa do ADL e consequentemente do seu “Favela Vive” denunciam. É uma expiação coletiva, de algo que diuturnamente está presente em centenas de excelentes produções lançadas no rap nacional (do Brasil todo, não apenas do eixo rio-sp) e obviamente escanteadas, por esse mesmo público e por essas mesmas páginas, perfis do hype!
E curiosamente essa questão está muito bem ilustrada no verso do Edi Rock presente no Favela Vive 4:
“Favela vive, favela morre, ninguém se envolve
Não desenvolve, de quem é o revólver?
Das nove à nove, socorre!
Ideias tristes que num beat se dissolvem
E te comove”
Com a força e a perspicácia de quem está no rap a milianos e ajudou a consolidar a cultura em nosso país, Edi Rock chama atenção para o rap de protesto que faz sucesso em tempos de internet. Os “descolades” – nada contra o gênero neutro – pretos e brancos que gritam fogo nos racistas emprenhados pelos ouvidos, mas sem nenhuma vivência da cultura, portadores da mais completa ignorância com o que de se melhor produz no rap nacional e coletivamente reificados pelos algoritmos e pelos sites de fofoca e do hype do rap nacional, apenas tiram um lazer expiando sua alienação ao assistir Favela Vive, compartilhar e tecer comentários REVOLUCIONÁRIOS!
O mesmo vale para uma série de mídias que se especializaram no hype, nas fofocas, nos falsos problemas e em falar do rap americano. Com a progressiva morte dos sites especializados na cultura hip-hop e que possuíam o papel de produzir fortuna crítica, debate, mediação, informação de qualidade e sem depender do retorno de views para tal, hoje o que possuímos a rigor, são “páginas” aka perfis de reprodução paga de divulgaçãoe ou reprodução de “cortes” e memes. Um mercado onde a “notoriedade dos views” ou o jabá mais descaradamente público determina quais os trabalhos, e é aí que nos parece se cavar um certo abismo entre o trabalho constante do ADL – aqui como um exemplo – e os arrebatadores números do projeto em questão.
Como nos chama atenção o pesquisador, produtor musical, DJ, beatmaker, bibliotecário e letrista, Jair Cortecertu:
“ A mera reprodução de conteúdo também é gratuita pela incapacidade de produção de conteúdo original, seja crítico ou não. Muitos jogaram a toalha e aceitaram seguir as regras das redes sociais em detrimento da cultura hip hop, seus princípios e elementos. Deslumbrados com os números, estas páginas e blogs parecem mostrar que o combate à desigualdade social só é algo válido quando sai da estética do hype. A base não tem números suficientes para ter valor, apesar das rimas do Favela Vive falarem o contrário.”
Esse talvez seja um dos grandes problemas da cultura hip-hop no Brasil, enquanto os EUA por sua própria condição de matriz mundial de onde partiu essa cultura possui um indústria que é capaz de dar conta de diversos níveis de produção, o mesmo não ocorre por aqui. Aqui, até pouco tempo atrás o Rap não era considerado nem música, e os sites e playboys que hoje “cobrem” o rap até outro dia se devotam ao indie rock… Além do fato fundamental fato de que diferente de lá, a indústria musical não possui aspectos xenofóbicos como no nosso querido berço do rap, o eixo!
Esses elementos contribuem para que, como queremos apontar aqui, um grupo que possui uma estética combativa, que está presente no eixo financeiro do país, seja aclamado em um determinado momento, mas não tenha a mesma visibilidade ou não o tem até agora em outros momentos. E é preciso reafirmar, em termos de número, o ADL é muito sólido, se comparados a outros pares do seu trabalho em outros estados ou mesmo nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
E isso é apenas um efeito micro, pois como os leitores mais atentos até aqui notaram, estamos tomando o ADL como uma lupa, para todos os outros artistas que seguem uma linha mais combativa 365 dias por ano.
“Vocês quer me enterrar mas eu sou semente!” Mc Marechal
Apesar de não usar o boombap, a sonoridade, como base sonora para todas os episódios do Favela Vive, é notório que foi esse o gênero musical que consolidou no Brasil o que ficou conhecido como Rap de Mensagem, Rap de Protesto etc. Não vamos aqui debater a pertinência desses termos, pois sabemos de saída que enquanto música negra a liberdade é que de mais fundamental existe em sua história. Porém, em tempos onde o clickbait, o marketing pescador de iludidos, anuncia o retorno do boombap, nos parece relevante chamar atenção para um fato.
Como ressaltamos acima, a premente morte da mídia especializada da cultura hip-hop traz consigo o efeito do desaparecimento do seu 5º elemento. Aquele capaz de mediar, de pulverizar soluções e de regar uma comunidade em tempos de total conectividade. Não é absurdo pensar que muitos influencers que possuem canais do youtube estejam agindo hoje como pequenos Monarks do rap. São aqueles que não pesquisam e que alimentam ignorâncias, são os mesmos que à força de reproduzir modelos de negócio promovem listas e premiações de melhores do ano sem ter escutado nem 40% da produção.
Isso gera um público afeito a brincadeirinhas, piadas e memes, girando junto a fofocas e desinformação em suas subjetividades. É um terreno fertil em tempos de algoritmos e no momento em que a indústria cultural tomou de assalto o rap. É curioso, que seja nesse contexto que mais um movimento de migração esteja rolando em termos de sonoridade no rap. Muitos se voltam hoje para o drill e o grime, e alguns dentre estes renegam a ligação destes gêneros com o rap e a cultura hip-hop; o Trap começa a dar sinais de cansaço comercial, saturado por mais do mesmo e agora começando a ser “invadido” por MC’s originários do Funk, com misturas que diluem a percepção do público, ganhando eles com esse movimento.
Ao mesmo tempo, o boombap outrora chamado de estilo de tiozão ou de gente falida, se mantém, renovado agora pelo movimento que tem sido chamado de New Golden Era, influências dos EUA e de nomes como Griselda e Roc Marciano e produções de beats que caminham dentro de uma estética sonora drumless. E é nesse momento que ele está “voltando”. Há um reposicionamento em andamento no mercado e na indústria.
Será interessante ver como nos próximos meses outros atores disputarão esse mercado da denúncia social que em nosso país possui mercado farto. Favela Vive já possui uma história sólida, e como falamos no início do texto o melhor produto Hip-Hop no mercado cultural em termos de audiovisual. Porém, está a mercê de uma fã clube de mais de 157 milhões de manos, que certamente não apoiam o rap que clama por critica social! E nesse sentido causa – não por vontade própria – uma ilusão para quem vê o seus números, mais uma entre as muitas que vivemos no rap nacional!
-Porque o Favela Vive é o melhor e o pior projeto do Rap Nacional?
Por Danilo Cruz