Aori, MC carioca vem lançando alguns singles este ano, e o single O.G. nos levou a pensar sobre a questão do envelhecimento no hip-hop.
Houve um tempo em que nossos antepassados sentiram a necessidade de fazer retratos, preservar a memória daqueles que partiam. E uma das técnicas que eles desenvolveram, era a de recriar os rostos, cobrindo os crânios dos mortos com argila. Os olhos eram feitos com búzios, e com a peça terminada em cima da lareira, mantinha-se a memória dos ancestrais.
Vivemos e insistimos em denunciar, numa rapidez que talvez por sua própria essência necessita do esquecimento, o produz de dentro dos seus processos. Assim, surgem frases repetidas como jargões alegres tais como: “esqueça tudo”! ou ainda: “esquece”, “arrasta pra cima”, “arrasta pro lado” e seguimos sendo peças nesse tabuleiro que é o mundo das manipulações sutis nas redes sociais. Controle e esquecimento, são o contrário da arte e certamente inimigos da cultura, fazem parte sempre e todas as vezes de regimes opressores.
Se é verdade também, que a arte é um espelho da sociedade – visão da qual discordo – o que temos visto atualmente é a emergência estonteantes de produções que pipocam numa velocidade impossível de ser deglutida com o mínimo de qualidade. E essa rapidez na ausência de diálogo, de tempo, tem se amontoado para fora da cultura do hip-hop nacional. Esse processo tem construído um imenso público consumidor de rap, mas totalmente desconhecedor da cultura.
O capital é cruel, na mesma medida em que o mercado consumidor cresce, o esvaziamento da cultura aumenta, pois a única coisa que interessa é comercialização dos produtos. Por outro lado, há também e isso é inegável, imensas possibilidades até pouco tempo inéditas, de artistas viverem de sua arte, fazendo seus raps. Já possuímos inclusive os primeiros ricos da cultura hip-hop, pretos, apesar do acúmulo de capital e a chefia, os donos da indústria ainda ser majoritariamente branca.
É importante notar como bem ressaltou os meninos da Recayd Mob, tem uma pá com mais de 30 anos de rap e tudo “pobre”. E esta imensa verdade foi o que nos levou a pensar e a desenvolver essa reflexão. Diante das reações de primeira hora, das chuvas de postagens, vídeos, armas e tudo mais, nos parece que o ponto principal não foi abordado. Hoje, chegou em mim o lançamento do Aori que é uma das figuras do rap nacional pelas quais tenho muita admiração pela arte e pela história. O MC lançou uma faixa que me levou a pensar sobre essa questão que aqui abordamos. Uma reflexão que nos parece que se faz necessária para o bem estar da cultura hip-hop e consequentemente para a rima e poesia, sejam elas de quais subgêneros forem.
É importante ressaltar que para a construção deste texto não pedimos as declarações de imposto de renda e nem as declarações de bens da Stefanie, nem da Rúbia RPW, nem do Matéria Prima, do Rodrigo Ogi ou do DaGanja. Nossas hipóteses aqui dizem respeito a uma visão geral e a observações empíricas, logo não está apegada a casos particulares. O principal aqui, o que nos toca mais profundamente é que o grande crescimento mercadológico do rap, tem separado a tradição da juventude de modo agudo.
Uma questão de base, para pensarmos em termos culturais e musicais é notarmos que no samba, no jazz, na música popular feita no Brasil e mesmo no rap americano, os mais velhos e as mais velhas, são vistos como mestres. Em termos raciais poderíamos ir além, e mostrar como aprender com os mais velhos, recolher sua sabedoria é fundamental para o povo preto. Hoje no Brasil, em diversas entrevistas com os novinhos, muitos já super stars, malmente citam-se Racionais e ou MV Bill. É uma ignorância alarmante e obviamente isso se reflete na qualidade cultural dessa rapaziadinha que tem chegado, não necessariamente na qualidade ou no estilo de suas rimas.
Podem argumentar que esse rompimento geracional é normal, porém não encontraram exemplos em nenhum dos gêneros musicais acima citados, porque não se trata apenas de gerações distintas, mas de uma continuidade necessária. E nesse caso, nos arriscamos a dizer que o mercado tem estimulado esse descolamento no caso do Rap. Pela lógica, ao falarmos de artistas que já possuem mais de 20 anos de carreira, as dificuldades e mesmo a visibilidade – pensando aqui em quem está na cena nacional ininterruptamente – seria impulsionada ou pelo menos assentada com maior facilidade.
Mas, a lógica do capital e da mercantilização não funciona assim, ela é estimulada por crescimento extrativista, quanto mais a cultura precisar ser esvaziada para gerar lucro, melhor. Obviamente, ao contrário do que os coachs e estrategistas de marketing pregam, o posicionamento no mercado não depende da sua arte e da sua persona virtual apenas. Existe hoje, contrariamente ao que a arte do rap é nos dias atuais, um público cada vez mais segregador, menos aberto e certamente mais controlado pelos algoritmos do que antes.
Sou partidário de que o rap vive, artisticamente, seu melhor momento, musical e mercadologicamente falando. Mas isso se deve, com absoluta certeza, à mescla de gerações que hoje está presentificada na “cena”. Do recluso escultor Parteum ao NDee Naldinho, da nossa rainha Stefanie até Rúbia e Kmilla CDD, passando por Lázaro Erê (Opanijé), DJ Nato PK, DJ Leandro Vitrola, e diversos atores e atrizes da cultura que são mestres. São figuras que seguem levando a frente os fundamentos da cultura hip-hop, que são possuidores de um estilo próprio.
Artistas que apresentam formas e conteúdos muito relevantes em sua arte e enriquecedores para os “jovens” que queiram entender que sua visibilidade atual, suas conquistas atuais, não se encerram aí, muito menos são imortais. Existe uma tradição muito rica antes e o futuro é sempre incerto. Jovens artistas precisam entender, necessitam aprender, que na vida artística os holofotes se apagam, lâmpadas queimam e é necessário possuir uma base sólida.
Os nomes citados nesse texto, como muitos outros e outras são frutos dessas bases e pobres ou não, seguem firmes como pilares da nossa cultura. Eles se mantêm como artistas que produzem arte em alto nível há mais de 20 anos, dentro de uma contracultura que até pouco tempo era apenas underground. Muitos deles e delas foram além, se tornaram profissionais de tantas outras áreas e fazem arte em “momentos de folga”, talvez quem sabe um dia, algum dos nomes estourados do momento, possa estar vivendo única e exclusivamente da sua arte quando tiverem 40 anos. Veremos!
Esse texto foi inspirado no lançamento do single O.G. do Aori, um coroa carioca, que tem soltado singles pesados desde sempre, e repetido o processo em 2021. Ao longo do texto pincelamos seus singles lançados neste ano como metacomentários aos argumentos, e abaxio saca só o porque ele não se aposenta:
-Porque o Aori não se aposenta? Envelhecimento no hip hop!
Por Danilo Cruz