Historiadora, poetisa e MC,Paula Ana lançou seu primeiro EP Pedrag’ouro (2021) e um bonito audiovisual resgatando suas origens!
Um dos aprendizados que escrever sobre música de modo geral e sobre o rap baiano de modo particular, foi a certeza de que as produções mais instigantes, mas ricas tem passado ao largo do que se convencionou chamar de mainstream. Essa é uma verdade não apenas para o rap baiano, mas com certeza que ao nível nacional, isso se confirma. Não por qualquer tipo de preferência ao “exotismo”, ao diferente ou mesmo por uma predileção ao underground, mas por trabalhos como o EP Pedrag’ouro (2021) da artista preta Paula Ana.
É bem verdade, que no rap nacional as mulheres e em especial as mulheres pretas mesmo aquelas que estão no mainstream tem se destacado, e também nisso esse novo trabalho da MC, historiadora e poetisa Paula Ana, confirma a tese. A arte tem por papel nos comunicar ideias, percepções e afetos, através da fabricação por meio do som e da palavra, das harmonias e melodias e nesse caso, com um intrincado “jogo” de palavras rimadas. Em qual outro lugar, você poderia ter acesso a uma artista que nos fala de Teofilândia, cidade do interior da Bahia, situada na região do sisal? Ora, através de sua arte, podemos não apenas perceber as particularidades das vivências e dos conhecimentos da Paula Ana, como como boa artista que é, entendermos que essas particularidades transcendem seus territórios e alcançam a universalidade.
Em seu disco de estreia, Paula Ana nos oferece uma cartografia poético musical forjada dentro das dificuldades de ser uma mulher preta, interiorana, em movimento dentro da academia e em processos de ação comunitárias. Tudo isso, banhado pelas águas do hip-hop, aqui plasmado em um EP de rap e já em um primeiro audiovisual, todos dois muito bem elaborados e inventivos. Contando com 5 faixas, todas com produção do Larápio, Pedrag’ouro (2021) faz parte de uma renovação e de uma reafirmação da potência do que vem sendo produzido dentro do que já se chama Universo 75, nos últimos anos. Uma estratégia muito bonita, criativa e potente de produção fonográfica e de ações comunitárias diversas, que certamente nos darão mais e mais frutos como esses.
Gravado na produtora Bueiro 75 e com a identidade visual ficando a cabo da Paula Ana e do Sopro Coletivo, o trabalho apresenta reflexões artísticas que de certo modo também transcende os espaços e as problemáticas abordados e alcança o próprio rap como forma artística. Essa transcendência se dá inicialmente na relação de construção poético musical proposto por Paula Ana. O rap enquanto elemento da cultura hip-hop é hoje a música mais consumida e mais influente no mundo, porém possui suas origens na experiência urbana e muitas vezes, nós vemos surgir artistas que vem do interior com uma carga meramente clichê de maneirismos vindos de vários outros lugares, menos de si mesmos. Procedimento muito distinto do que temos acesso no ep Pedrag’ouro.
O disco abre com uma faixa que de certo modo sintetiza as problemáticas formais acima mencionadas, aliando um conteúdo singular à forma universal no rap, resgatando suas próprias expressões culturais (o rap é musicalmente cultura do sample) e partindo daí para tratar dos problemas históricos e sociais, primeiro de sua cidade e juntamente de si mesma. Assumindo a história de origem dos povos originários daquela região e dos negros que lá se estabeleceram, Itapiru nos abre, musical e audiovisualmente toda a dimensão de origem e de destinação do que está presente em Pedrag’ouro.
É curioso, pois a pluridimensionalidade aqui vai do mineral ao humano, com uma fluidez e ao mesmo tempo uma dureza, que instantaneamente nos entrega o valor do trabalho. As linhas rimadas por Paula Ana se filiam ao que de melhor é possível dentro da cepa underground e o seu conteúdo quase nos faz sentir o cheiro de Teofilândia. Perfume de mulher preta batalhadora e buscadora de seus sonhos que ao acessar conhecimento simbolicamente valorizado em nossa sociedade (universidade) empretece-o e o transforma em arma para os seus, denuncia os abusos e as explorações que as suas sofrem.
Como um desenvolvimento a-paralelo à exploração do subsolo de sua cidade, em busca de ouro, e a relação de êxodo dos homens de Teofilândia em busca de trabalho em outras cidades, Paula Ana saiu e voltou com sua arte com uma joia lapidada de presente a sua terra natal. Em “Tanque” ela vai além, refletindo sobre os controles tecnológicos do virtual e a produção de desmobilização programada de pretos e pretas, assim como a submissão às plataformas e as dificuldades dos produtores fonográficos. A faixa tem participação do MC ALendasz, que chega pesado como aliás tem feito em seus últimos trabalhos. A produção de Laraapio nesse beat dialoga com samples de soul num boombap digno de nota.
São apenas 13 minutos e 47 segundos, mas é um daqueles trampos que quanto mais vamos escutando mais nos pega, e vai progressivamente nos apresentando camadas e mais camadas, técnicas, de conteúdo lírico, de história, de poesia, musicalmente rico e bem trabalhado. A faixa “Viagem de Volta” nos apresenta um “spoken word freestyle”, combativo e de poesia sobre idas e voltas, sobre sua ancestralidade, às férias em sua cidade, tudo embalado com muita beleza e carinho palpável pelo seu território. O EP se encerra com a música “Mente Sã”, quase que uma tautológia aja vista o conteúdo apresentado até aqui, porém importante também pois mostra a rimadora cantando, com um flow versátil sambando do lado da mudança, da luta, um corpo negro que festeja com plena consciência de seu lugar no mundo, de seu valor e da necessidade do coletivo em suas construções.
Em sua estreia Paula Ana nos apresenta diversas facetas em um curto espaço de tempo de longa duração, nos leva pela mão como criança que quer brincar, mas também apresenta-nos a possibilidade de uma “Fiona” capaz de com uma mãozada esmagar os lorde Farquaad, sem metáfora. Um trabalho que certamente nos oferta uma MC a mais com uma carga muito grande de repertório, a fortalecer a arte e a militância negra de nosso estado e porque não, do nosso país!
-Paula Ana é ouro que reluz diretamente da terra do sisal: Teofilândia (BA)
Por Danilo Cruz