Para acabar com as traças, Lessa Gustavo & Godjira Naftalina (2019), quando você entender que o experimental é o que oxigena a vida e a arte
A maioria das produções visibilizadas no mercado transitam ali pelo conhecido, se ancoram em formas já pré estabelecidas e vão trabalhando dentro de fórmulas já consumidas, muitas vezes fazendo passar aí suas variações, suas ideias diferenciais e nos apresentando “novas” personas e sua arte. Se deparar com trabalhos como o do rapper Lessa Gustavo é perder o chão, o referencial, é ser levado ao deserto da criação que aqui é uma vivência poético musical da cidade. E nesse processo é comum o ouvinte médio ficar querendo tirar rapidamente os seus raps do player, pois dentro dessa perspectiva “isso” não faz sentido. Ora, mais não é rap? Pera, deixa eu ver: Tem flow, tem letra rimada, tem beat. Mas, pera mais um pouco, é chato, não consigo entender, não diz nada com nada, vou tirar.
E agora? Simples, joga fora e vamos ouvir a nova do último rapper que está fazendo a mesma coisa desde 2017, e tá tudo certo. O fato é que sempre existiu e sempre existirá uma tensão entre a arte mais digamos consumível e aqueles que querem subverter as formas e os conteúdos de um determinado nicho musical. Aqueles loucos por queimar, os parafusos quadrados para os buracos redondos, os que querem inventar a qualquer custo, os que não estão preocupados em serem amados pelo público.
Essa tensão existe pelo menos desde o começo do século passado, quando Duchamp posicionou seu mictório estrategicamente numa exposição, como objeto artístico, a treta estava plantada. Essa tensão muitas vezes é salutar e faz com que aja um movimento de retroalimentação como Andy Warhol conseguiu mostrar com sua Pop Art. O mercado sempre tensiona para o mais baixo, para o mais simplório, para o consumo fastfood, aquele que fará da tirada abrupta de Naftalina (2019) do Lessa Gustavo & Godjira a saída fácil. Confesso que eu também muitas vezes quero a saída mais fácil, mas por acreditar que o consumo da arte também é feito por esforço eu sigo ouvindo. Entendo hoje melhor do que ontem, o quanto é no trato entre o diverso, no reconhecimento da diferença que o enriquecimento através da arte se dá.
Já tem um tempinho que busco a arte do rap underground nacional e busco entender aos poucos suas propostas, algo que não é simples ou fácil. Alguns conseguem uma musicalidade mais acessível, outros demandam um pouco mais de escuta. E essa é a palavra, para entendermos melhor o que é proposto pelos artistas responsáveis por Naftalina (2019). Sacudir de nós as traças que corroem nossa existência e o nosso pensamento, retirar, expulsar nosso amancebar com a rotina, fazer com que suas palavras e sons mexam com nossas estruturas mentais, violentar o nosso pensamento inseto com um remedinho em forma de beat e linhas.
Muitos de nós buscamos resistir ao abate cotidiano que sofremos, assim como Gregor Samsa que se materializou num inseto monstruoso, pois cansou das imposições sociais, e das pequenas mortes. Essa Naftalina usada pela dupla de artistas, está trabalhando mais exatamente no processo de retirar de nós os insetos que corroem nossas forças de resistência e ao mesmo tempo descontaminando o ambiente, para o novo. A captação dessa realidade caótica e embrutecedora, é aqui filtrada por climas sonoros e imagens poéticas que propoem uma outra sintaxe. Se você é novinho e não sabe o que é Naftalina, saiba que é um agente capaz de matar o que pode apodrecer algo e ao mesmo tempo sem contaminar o que está ao redor.
Nunca somos traídos por essa Nafatlina, pelo contrário ele é quem nos trai a qualquer momento, a toda hora, a cada faixa. Sinhinhos colocados estrategicamente para nos despertar, a qualquer hora. Ora, a voz é um estouro, o flow é tedioso, o beat é entorta, os samples são grandiosos, a mix e master, fogem do padrão de novo, não existe coerência sonora e poética nessa porra, se entendermos coerência como adequação a fórmulas. Mas quem precisa reafirmar tempos, metódos, linhas, colocação de palavras na mesma ordem? A única coerência seguida pela dupla é a da busca pelo novo, por uma arte menos ordinária.
Se assuma painho, você quer aquele afago na sua subjetividade né não? Hein mainha, você gosta dessa infantilização do desejo né? Quando o saxofone, que parece do Coleman Hawkins vai prolongar suas lembranças do último romance, é cortado imediatamente. Acabe com suas expectativas, e venha se sentar do lado da caixa para ser traído mais uma vez, esteja aberto a novos horizontes. Tá tudo nessa mistura, que não é um “mix gorumetizado”, estética, política, ética e sobre tudo muito hip hop, fundando outras teorias do conhecimento. Não tem nessa Naftalina nada que faça você ficar no mesmo lugar se você tiver coragem.
Eu lembro que o Lessa Gustavo me mandou o disco antes de Novembro, e de lá pra cá eu ouvia com cuidado e parcimônia entre uma coisa e outra, mas sempre na volta pra casa. Eram solavancos, era um exercício doído, sempre me deixava fora de mim, sempre e até agora enquanto escuto escrevendo mexe com minha capacidade de mensurar e qualificar o que aqui é proposto. Contra a tirania do nosso gosto e de nossas percepções naturalizadas pelo hábito, essa duplinha mete uma onda necessária e que funcionará como um tsunami para varrer todos os clichês que você conserva.
Tudo que é sólido desmancha no ar, dizia o Marshall Berman, mas o Lessa Gustavo e o Godjira fazem da leve sublimação/subversão aquilo que fará com que todos os guarda roupas, cômodas e as gavetas sejam detetizadas! Resta que você se dê o direito de ouvir…
-Para acabar com as traças, Lessa Gustavo & Godjira Naftalina (2019)
Por Danilo Cruz
Revisão por André Clemente de Farias