Os paraibanos do Papangu lançam o segundo disco, Lampião Rei, explodindo em direções musicais diversas com lírica resistentemente nordestina!
Sludge metal carnavalesco, a potência do Rock Tronxo Nordestino!
O universo que o Papangu criou nestes seus dois primeiros discos é de uma riqueza musical, poética e semiótica infinita. A banda paraibana fundada em 2012, lançou seu primeiro disco em 2021, “Holoceno” ganhou notoriedade no Brasil e fora. Lançado no começo deste mês de setembro, o segundo disco da banda “Lampião Rei”, não repete as formas musicais presentes no debut e expande o universo estético do grupo.
Não é possível fingir “naturalidade” entre os discos da Papangu, há entre os dois trabalhos a construção de um verdadeiro cânion do Xingó estético, escavado por um “Velho Chico” de busca inventiva e domínio técnico, que só pode ser transposto por um fina porém segura ponte: o “Cangaço”. O próprio batismo da banda se funda na tradição carnavalesca do agreste pernambucano da cidade de Bezerros, onde os papangus são personagens da folia que brincam mascarados e ornamentados por fantasias.
A tradição dos “Papangus” remete ao período da escravidão, em resposta a não participação nos banquetes dos senhores, as pessoas se mascaravam e passavam de casa em casa pedindo angu de milho para comer: papando angus! Até recentemente, os Papangus eram o terror das crianças em Bezerros. Originariamente, os Papangus usavam farrapos e máscaras feitas de “coité”, e a história dá conta de fantasias sempre assustadoras. Tendo passado por diversas fases na confecção destas fantasias, só recentemente ganhando mais cores nas vestimentas e nas máscaras.
Neste sentido, o trabalho do Papangu até aqui nos coloca imediatamente em perspectiva e realça a força inventiva do rock feito no nordeste. Se inserido com bastante originalidade e consistência em uma tradição inventiva, que sempre se apropriou do Rock’n Roll em seus próprios termos. Colocando pra jogo sua terra, seu chão, povoando sertões e litorais com uma música rock altiva, sem querer ser mera cópia de uma forma de ser inautêntica.
Desde os anos 60 pelo menos, o nordeste produziu uma rica tradição musical ligada ao rock’n roll com nomes como: Raul Seixas, Ave Sangria, Novos Baianos, Lula Cortês, “Zé Ramalho da Paraíba”, Lacertae, toda a turma do Mangue beat, até nomes mais recentes como Burro Morto, Anjo Gabriel, Monster Coyote. Trago estes nomes como alguns dos que criaram uma sonoridade de forte presença da cultura nordestina em suas poéticas musicais.
Deste ponto de vista, A Papangu além de beber destas fontes segue também o movimento iniciado pelo Sepultura de beber nas tradições nacionais para a construção de um som metal próprio. A forte tradição do Metal nordestino sempre teve um sem número de bandas protagonistas de um cenário sempre inovador e com reconhecimento internacional.
Entre inúmeros exemplos que poderiam ser mencionados em torno da música extrema feita no nordeste, vale citar aqui o trabalho da banda pernambucana Cangaço. Em seu primeiro disco cheio, Rastro lançado em 2013, que já apresentava uma sonoridade onde o Death metal e o baião conversavam com bastante originalidade. É nesta tradição que os dois primeiros discos da banda paraibana Papangu se inclui e expande.
As eras criativas da Papangu, Holoceno!
Os cruzamentos entre universos de referência se complexifica e flui com uma consistência impressionante, na incipiente discografia da Papangu. Algo que chama atenção e pode de certo modo, nos ajudar a entender de onde vem tamanha qualidade é o tempo entre a fundação, a banda foi formada em 2012 e o seu primeiro disco. Em entrevista ao site Scream & Yell no período de lançamento de Holoceno, os caras dizem:
“Logo nas primeiras tentativas de composição própria, o som da banda foi se distanciando do stoner rock e se aproximando de um som mais progressivo e experimental, e logo veio a ideia de acrescentar elementos de música regional nordestina no caldeirão de influências.”
Ainda na mesma entrevista, os caras explicam que os 9 anos que separam a formação da banda do seu debut em disco, foram de aprendizados. Divididos entre a apropriação de técnicas para a composição de música e letras de estruturas mais complexas e coesas, e a seguir da busca de domínio sobre técnicas de gravação. Este tempo certamente foi de fundamental importância para que os caras conseguissem a formatividade que plasmaram em Holoceno (2021) e em Lampião Rei (2024).
Ao produzir uma música pesada e complexa, com forte apelo visual e substrato poético literário, o Papangu se constitui como uma banda que concebe gêneros musicais e sonoridades como elementos de uma poética própria. Sludge Metal, Rock Progressivo, Zeuhl, pitadas de jazz foram sonoridades utilizadas em Holoceno. Com inspirações cinematográficas explícitas no sample retirado da adaptação do livro do alagoano Graciliano Ramos, Vidas Secas para o cinema.
Ao mesmo tempo em que trouxe fortes influências literárias do Fausto de Goethe e do João Cabral de Melo Neto de Morte e Vida Severina, com atenção ao cenário pós-apocalíptico de Duna do escritor norte-americano Frank Herbert. A Papangu utiliza-se de signos muito fortes do imaginário nordestino, como as “carrancas”, que protegem os navegantes do rio São Francisco.
Utilizando-se de influências diversas, do nordeste, do Brasil e do Mundo para a sua construção poético musical, do ponto de vista da recepção isso se resolve sem necessidade alguma de preparação prévia. Se não se cria nada no vácuo, experimentar uma obra de arte não demanda curso superior e ou uma base de referência onde a arte deva se assentar. E este é um dos pontos altos das criações da banda, partir deste campo comum ao nordestino, o Cangaço, para temperar e amalgamar sua música e suas referências de fora.
Aqui está um dos pontos da excelência estética na obra do Papangu, a capacidade de simplificar e se apropriar com rigor e singularidade de um universo de referências díspares, atualizando seus temas, produzindo uma visão crítica de mundo, através de obras radicalmente novas. Algo resistentemente nordestino, a luta contra o fatalismo imposto, que o Papangu toma como base substancial em seus dois discos.
O cangaceiro que luta contra uma terrível premonição em Holoceno, empreendendo uma jornada épica, está desde sempre – partindo do título – em uma era onde tudo parece imóvel e as mudanças climáticas inevitáveis na era do Antropoceno. Como personagem conceitual é um representante do que a própria banda luta pra fazer, música extrema em um cenário onde tudo parece não poder vingar. A seca do sertão como signo.
Os aspectos sociais e de luta política trazidos pela banda em sua música, se inserem neste contexto com a mesma “naturalidade” das crenças na mitologia católica e do folclore nordestino (“Lobisomem). Porém, como uma espécie de rito expresso na paixão de poder criar e expor ideias e sons com os amigos. Em Holoceno, isso se apresenta com o vigor presente sonoramente no peso dos riffs e dos vocais guturais, na construção progressiva e intrincada da agressividade do som.
É de fato, uma expressão de desejo que se agencia na história utilizando por exemplo o termo Tapuias, que era a expressão utilizada pelos colonizadores portugueses para se referir aos indígenas que lutavam contra eles. Que convoca para a luta: “É melhor morrer resistindo, é melhor lutar. Se morrer de fome, eu rego a terra com meu sangue”.
A jornada do cangaceiro que adquire autoconsciência de seu lugar no mundo e de sua posição na estrutura social, arrasta o ouvinte e nos leva somente a reafirmar o quanto a ideia de que o rock seria um bastião de conservadorismo é apenas mais uma estupidez contemporânea na era das redes sociais.
Lampião Rei, tiro de bacamarte no senso comum
Após uma estreia tão comemorada e bem sucedida com Holoceno, o desafio do segundo disco foi não apenas superado com uma expertise assombrosa pela Papangu, como Lampião Rei desterritorializa sua música. De nossa parte, não acreditamos em evolução em música e em arte de modo geral, o que existe no campo da estética é criação e consequentemente a necessidade de domínio técnico do material, estudo, e sobretudo inquietação e ousadia criativa.
Obviamente, as formas de produção e o acesso a condições técnicas ajuda a determinar juntamente com os fatores acima mencionados onde uma obra vai chegar. Por vezes, a escassez e a dificuldade incidem sobre o material final trazendo-lhe sabores, texturas e cores diferentes. Tudo depende do risco que se quer correr, o quanto se vai apostar para alcançar aquilo que se quer e a Papangu quer muito.
Atualmente, a Papangu é composta por seis músicos Rai Accioly (guitarra e voz) Vitor “Vespa” Alves (bateria e percussão), Hector Ruslan (guitarras), Pedro Francisco (baixo, guitarra e o que mais aparecer para tocar), Marco Mayer (baixo e voz), Rodolfo Salgueiro (teclado e voz). Mudanças da banda que gravou e tocou em Holoceno, mudança do batera entrando o Vitor, e a inclusão dos irmãos Rodolfo e Pedro. Ao contrário do primeiro disco gravado em sua maior parte em casa, Lampião Rei foi registrado ao vivo em seis sessões com todos no estúdio El Rocha em SP.
O disco traz ainda as contribuições dos músicos Marian Sarine (Deafkids), João Kombi (Test), Andrea P. (Ad Nauseam), Philippe Bussonnet (Magma, One Shot) e Paulo Ró (Jaguaribe Carne). Foram nessas condições e com essa turma que o que chamei de Cânion do Xingó estético foi configurado, apresentando uma sonoridade radicalmente diferente do primeiro trabalho, mantendo apenas o que chamei de fina e consistente ponte, entre a estreia e este segundo disco: o Cangaço.
No caminho para a coroação do Lampião Rei, a Papangu termina por criar um “Cangaço Novo” em seus próprios termos, atualizando sonora e poeticamente este signo de rebelião a ordem vigente e da forma como vejo, dando um tiro de bacamarte na cara do senso comum, da opinião pública sobre o que seja ou possa vir a ser o rock. O disco possui de um tudo, há delicadeza, crueza, a natureza e o sobrenatural, a história, o amor, a morte, a luta, só não há submissão a nenhum ditame externo ao desejo de criação da Papangu.
Aos olhos tomados de catarata da indústria musical, a exuberância poética e musical é um bálsamo nesta luta de foice entre as fórmulas exauridas e a vontade de criar e pensar que Lampião Rei nos apresenta. O disco é o primeiro momento, que nos conta através de uma intrincada reunião de sonoridades que acompanham em viés de realismo mágico a formação e ascensão de Virgulino Ferreira da Silva, Lampião.
Comparativamente, o recente sucesso da série dramática Cangaço Novo, ao transpor a força da história do cangaço para os dias atuais em suas renovadas formas de opressão ao povo nordestino e a consequente resistência. Encontra em Lampião Rei, mas sobretudo, na obra da Papangu um complemento musical e poético que faz o movimento inverso mas que também encontra uma resistência consequente.
A série criada pelo casal Mariana Bardan e Eduardo Melo em parceria com Fernando Garrido e Erez Milgrom, que conta com a direção de Aly Muritiba e Fábio Mendonça, atualiza o Cangaço através das quadrilhas de assalto a banco no interior do Nordeste. Utiliza a história do banditismo para descortinar as causas dos problemas sociais e da perene desigualdade no sertão nordestino.
Utilizando referências cinematográficas da imensa tradição que representou o Cangaço no cinema, como Corisco e Dadá de Rosemberg Cariry, no Baile Perfumado de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, nos clássicos O Cangaceiro de Lima Barreto, Glauber Rocha e até no Sertânia do próprio Aly Muritiba. Recriam e popularizam criticamente uma rica cinematografia, abrindo as portas para a demolição dos estereótipos xenófobos.
Ao beber na literatura nordestina de nomes como João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos, escolhendo cantar em português, utilizando sonoridades que vão do baião ao metal, do jazz e do rock progressivo ao groove funkeado, a Papangu evidencia e reforça a rica história das músicas nordestinas de modo geral e do rock nordestino em particular. A aparente volta à tradição nos dois casos é automaticamente possibilidade de futuro, para quem é capaz de compreender a História como um processo em construção e hoje mais do que nunca, em disputa.
A participação de Paulo Ró em “Lampião Rei” é bastante emblemática neste sentido, pois estamos diante da cara metade do clássico grupo Jaguaribe Carne, banda experimental que uniu o popular e o jazz, que este ano completa 50 anos de carreira. Em sua produção, a Papangu consegue unir o regional ao global sem concessões, elevando e levando a riqueza nordestina ao patamar que ela merece.
Ao se deparar com o espanto diante de um disco do tamanho de Lampião Rei, para nós é impossível fazer o joguinho da Indústria Cultural de meramente incensar um trabalho que é fruto e floresce jogando luz no cenário e na história. Um disco que desde a capa, parte de um terreno tão ricamente ilustrado para preenchê-lo com aquilo que deveria ser a nossa partilha do sensível, do que nos é mais comum.
-Papangu é “cangaço novo”, superando o desafio do segundo álbum com Lampião Rei (2024)
Por Danilo Cruz