Pacha Ana lançou um dos melhores discos do ano, falando das alegrias e dos desencontros do amor preto com Suor & Melanina
Para além do hype, para além dos holofotes existem artistas que apesar da dificuldade, apesar do apagamento, seguem produzindo com excelência. Pacha Ana é uma dessas artistas e o seu segundo álbum é mais um “seminário” do curso que essa matogrossense vem dando ao rap nacional. Em sua estréia com o excelente Omo Oyá (2018) ela entregou a faceta múltipla de rimadora em alto nível, poetisa consistente e com nada menos que 14 músicas fez sua entrada no cenário.
Em Suor & Melanina (2021), segundo disco da cantora e MC, composto por 7 músicas e todo produzido por Vibox, temos disparado o melhor disco de R&B/Rap lançado esse ano no Brasil. Essa afirmação não é nenhum exagero, o trabalho nos entrega um “blend” de swingue, rimas e canto pouco vistos. Pacha Ana dessa vez coloca sua voz lá no cerne de nossa subjetividade, cantando e rimando o amor preto em suas delicias e em seus desencontros. Exemplo perfeito é a faixa: “Na Madrugada”, que se configura como um “módulo completo” dessas aulas que a artista tem dado constantemente e que nesse disco se tornaram magistrais.
A criação de cenários, de projeções, de lamentos, de reflexões, de registros poéticos das alegrias e dos prazeres construídos em Suor & Melanina estão muito longes dos clichês que muitas vezes são utilizados. Em “Ontem” a elegância que Vibox despende na produção é algo no mesmíssimo nível do que de melhor se produz na fonte do R&B, o clima que o produtor cria no começo da faixa nos deixa em suspense, até a entrada firme da batida. Quando a Pacha entra cantando/rimando a cama está feita, e o exercício poético que a artista nos apresenta é de uma beleza sublime, ao nos apresentar o desejo de modo a nos fazer entendê-lo como ele é de fato e de direito: um deserto sempre fértil em possibilidades.
“Bebi a água do teu corpo amor, pensei que fosse até miragem”
Nesse sentido, Suor & Melanina (2021) é um passo à frente em termos filosóficos e estéticos no que concerne ao R&B nacional. É um disco conceitual não uma coleção de faixas, o tema da água e seus correlatos atravessa todo o disco, assim como a produção do Vibox acrescenta influência de funk por exemplo, mostrando diferentes trilhas possiveis para amores possíveis e impossíveis. Afasta-se do amor romântico e ruma em direção de um entendimento mais sadio ao povo preto do que pode ser o seu inconsciente, da necessidade de entendermos melhor outras configurações do desejo para além do eurocentrismo. A liquidez amorosa aqui é a dos corpos pretos que tem suado para lidar com as doenças europeias de um modo mais afrocentrado.
Com isso em mente, procuramos a Pacha Ana para trocar uma ideia sobre sua caminhada e sobre a produção de seu segundo disco, você confere abaixo a entrevista:
Oganpazan – Como e quando você começou na música profissionalmente Pacha? Foi através da cultura hip-hop?
Pacha Ana – Eu tinha me mudado pra capital, *sou uma menina do interior rs*, e na universidade, envolvida com militância, eu tive coragem de expor minhas primeiras composições. Nunca tinha escrito rap, eu escrevia sempre acompanhada do violão, fazendo as notas que eu sei (que são poucas haha) e um dia um parceiro perguntou porque eu não escrevia também o que eu ouvia? E foi ai que eu tive a ideia de procurar um beat na net e escrever. Foram as primeiras experiências.
Um dia uma amiga me convidou pra subir ao palco com ela e cantar um som que tínhamos composto juntas, e depois desse dia, em 2015, eu já fui convidada pra cantar em alguns rolês.
Oganpazan – Como é fazer parte do movimento hip-hop em seu estado? Quais as principais dificuldades?
Pacha Ana – No meu Estado existe uma cena em consolidação. O “boom” que outros Estados tiveram do Hip Hop, nós estamos tendo agora. Existem muitas batalhas de rua aqui, o crescimento tem sido bem grande, e isso é muito massa, mas ainda enxergo situações de machismo, racismo, homofobia e preconceito nesses espaços. A galera precisa muito entender de uma vez por todas o que é o hip hop, um movimento que não tolera esse tipo de atitide/comportamento.
Entretanto, tudo são processos. Acho que estamos caminhando enquanto “cena” aqui. E eu gosto de fazer parte dessa mudança.
Em 2018 lancei o primeiro disco de Rap feminino do Estado. Isso é representativo. Depois de mim outras minas meteram as caras.
Então acredito que existam dificuldades, mas estamos participando dos processos evolutivos também.
Nada se constrói sozinho.
Oganpazan – Em 2018, você lançou um disco que certamente estava entre os melhores daquele ano: Omo Oyá. Como você viu a repercussão desse trabalho? Portas foram abertas, você sentiu uma aceitação do eixo diante do seu trabalho?
Pacha Ana – Omo Oyá foi um presente pra mim: era meu cartão de visita e acho que ele cumpriu muito bem seu papel, me levou em lugares que eu nem imaginava. Sou grata imensamente. Eu senti muita aceitação dele em SP, RJ, BH, PR, MG e outros estados também, coisa que eu não pensava ser possível no meu disco de estreia. Ele falou sobre mim, sobre minha religião, minha ancestralidade, e mostrou quem eu era né, isso foi importante, e apesar de ser um disco de “afronte”, ele foi muito bem recebido. Enche a mãe de orgulho né?
Oganpazan – Pacha, como você vê a necessidade do artista brasileiro em geral precisar fazer sucesso no eixo para depois ter sucesso em seu estado?
Pacha Ana – Isso diz um pouco sobre a última pergunta: é real que eu também percebi mais aceitabilidade do disco fora do Mato Grosso do que aqui. Não porque as pessoas aqui não gostaram, rs, mas porque eu senti a forma como as pessoas receberam ele fora daqui, e como foi recebido aqui. Eu fiz show em SP na Dominação, onde a galera sabia cantar todas as letras. Entende?
Acho isso absurdo, rs. Inadmissível. A gente precisa valorizar o que é nosso primeiro, depois olhar o de fora, e fazemos o contrário. Isso é culpa da indústria também né? Que condiciona que o nosso consumo seja dessa forma.
Romper a bolha é muito difícil. Mesmo!
E alguns artistas não tem disponibilidade de tempo e energia pra romper a bolha, acabam desistindo antes.
Oganpazan – Suor & Melanina (2021) chegou três anos após Omo Oyá (2018), você não acredita que é muito tempo entre um disco e outro não? Em um tempo como esse em que tudo tem que ser muito rápido? Porque esse intervalo?
Pacha Ana – Eu lancei Omo Oyá no meio do caos: minha iniciação no candomblé aconteceu nesse meio tempo, eu tava no meio da minha graduação, muita coisa acontecendo junto.
E a certeza que eu tinha, era que meu segundo disco precisava ser gerado com mais calma, mais respiro pra mim, pra que isso pudesse resultar num trabalho melhor.
Em 2019 ele chegou a ser planejado, esboçado, e não concluído.
Logo veio a pandemia, o que atrasou um pouco mais. E no final de 2020 fui aprovada num edital cultural que financiaria a produção do disco, então eu poderia colocá-lo na rua de uma forma mais elaborada. Não pensei 2x rs preferi lançar ele da forma que eu queria, porém, mais tarde.
Tudo hoje é muito volátil né, VOLÚVEL. Ou a gente para, respira e aceita..ou a gente pira. Eu parei, respirei, pensei, aceitei, e pirei também haha não vou mentir.
Oganpazan – Nesse disco novo Pacha, você traz uma outra pegada, apresentando um disco todo voltado ao R&B, como e quais os motivos dessa guinada?
Pacha Ana – Em Omo Oyá, eu aderi a uma postura militante, involuntariamente, por necessidade: era necessário ser daquela forma, naquele momento.
Já em Suor e Melanina, eu entendi que queria falar de amor, e isso também era militância. Falar dos nossos afetos, da nossa ancestralidade, da nossa COMUNIDADE, também é falar de luta, também é um ato de resistência.
E estudando e ouvindo bastante R&B, eu acabei unindo a fome com a vontade de comer né?
Falar de amor, num estilo que vem crescendo tanto no Brasil, e que tem essa influência da gringa, foi natural.
Oganpazan – É impressão minha ou em faixas como “Ontem” e “Fala Sério”, há um certo tom triste? Seria possível dizer que essas duas músicas falam também sobre desencontros ou sobre “amores” não concretizados ainda?
Pacha Ana – É impressão não haha apesar de serem músicas um pouco “pra cima” tem uma história ali né?
Eu escrevo muito a partir de gatilhos. E com esse disco não foi diferente. Então falam dos desencontros da vida rs são histórias que ainda não se concretizaram. Mas eu também não tenho pressa haha
Quem sabe os alvos ainda sejam atingidos hahahhahahahhaa
Pacha Ana – Suor e Melanina tá além do amor romântico que nos foi ensinado.
É um disco falando sobre retomada de consciência, repensar afetos, rever os amores e também sobre reencontro com nossa ancestralidade.
Esse modelo romântico de amor é muito eurocentrado, foge daquilo que nossos ancestrais praticavam enquanto comunidade. Então, definitivamente, não é desse amor que eu queria falar, não é esse amor que eu queria relatar.
Mas óbvio que algumas interpretações podem ser assim, e tudo bem. É essa pluralidade que faz com que a difusão do trabalho ocorra, cada um recebe como absorve e assim por diante.
Mas minha ideia é ressignificar esse amor, mostrando outras perspectivas de afeto aos meus, aos nossos.
Oganpazan – Em “Nega” por exemplo, a faixa apresenta um amor lésbico, como é a aceitação do seu trabalho dentro da comunidade LGBTQIA+?
Pacha Ana – Sim, Nega fala de um amor lésbico, e sinceramente, se aquela mina me pedisse o mundo eu daria hahhaha. Eu sou bissexual desde adolescente, rs, e muito bem resolvida. Então falar desse afeto nas músicas uma hora iria acontecer, ainda mais num disco que fala sobre o amor e suas possibilidades né.
A comunidade LGBTQIA+ me abraça, me recebe, e faz com que eu me sinta inserida, não só por ser uma mc que canta sobre esse amor lésbico, por exemplo, mas por ser uma mulher preta, bissexual, com suas particularidades, que canta o que vive.
Oganpazan – Assim como em Omo Oyá, Suor & Melanina traz um conceito muito bem elaborado e uma produção visual muito bonita, comenta um pouco como você construiu essa ideia e quem são os artistas responsáveis?
Pacha Ana – Omo Oyá e Suor&Melanina tem uma galera muito foda envolvida, de verdade. Gente que trampa comigo há tempos e que abraça a mim e ao meu trabalho.
Desde o primeiro disco, Ahgave tá comigo fazendo a parte visual do meu trampo. Ele me lê, me entende, me auxilia e me completa nesse ponto. Nós somos realmente muito amigos e muito ligados.
Dessa vez agregamos a Maria Reis que é a zika do style&figurino aqui na nossa cidade, além de ter um olhar incrível pra fotografia.
Sendo assim, Ahgave fez a direção de arte, Maria fez style, figurino, cabelo, e fotografou. Por fim, a identidade visual foi uma junção do trabalho que Ahgave já realiza muito bem, com o profissionalismo impecável da Maria Reis.
São duas pessoas pretas, que tão comigo no corre diário já, sempre participando dos clipes e das produções; e também são meus irmãos.
Oganpazan – Pacha, a produção do disco é algo que “salta aos ouvidos” pela extrema qualidade dos beats, fala um pouco como se deu o processo entre a senhora e o Vibox?
Pacha Ana – Eu e o Vi somos amigos de longa data. A gente se conhece desde 2017, e sempre tivemos uma conexão muito bacana. Omo Oyá possui 2 produções dele, “Poder Para o Povo Preto” e “Meu fechamento é comigo mesma” e curiosamente essas duas foram as faixas com mais aceitação da galera nos shows ao vivo, sabe? Era como se saltasse aos ouvidos mesmo.
A primeira faixa escrita desse novo trampo, foi “Orgulho” que foi a partir de um beat de catálogo dele. E depois dessa faixa surgiram as outras.
Junto com Eazy CDA, que é quem captou e mixou o disco todo (também fez isso em Omo Oyá), nós esboçamos as pré produções, e a partir delas o Vibox criou todos os outros beats.
Ele tem uma leitura muito sensível em tudo. Vibox é um gênio, de muito bom gosto e profissionalismo. Eu sabia que tinha que ser ele.
Não existe nada melhor do que um disco todo produzido por alguém que tá afim de produzir rs. Sinto que foi algo que ele gostou de fazer, botou sentimento. Por isso é tão gostoso de ouvir, as faixas se conversam, e quando você viu, passou o disco todo.
Todo processo foi a distância. Eu enviei os arquivos de olhos fechados. Confiei que super rolaria. E não tinha como ser diferente trabalhando com um homem preto; que eu confio, amo e admiro, e que é super profissional, músico desde criança, e impecável no que faz.
Oganpazan – Por fim, se não perguntamos algo que você gostaria de responder ou se você quiser deixar uma mensagem aos leitores do Oganpazan, fique a vontade, o espaço é seu.
Pacha Ana – A mensagem que eu deixo é que as pessoas se convidem a estourar a bolha musical que elas conhecem: ouçam artistas de outros lugares, outros Estados, outras cidades. Façam o exercício da descoberta, conheçam artistas novos, se permitam
Tem muita gente foda fora do eixo que precisa de visibilidade e acolhimento.
Suor e Melanina é sobre afeto, ancestralidade, reencontro e amor também. Te convido a conhecer!
-Pacha Ana e o amor preto em Suor & Melanina (2021) Entrevista
Por Danilo Cruz