Os Cães Ladram mas A Caravana Não Para, álbum icônico, um dos polaroides do boom que o rock Brasil presenciou na década de 90!
Que o Planet Hemp foi e é uma banda singular na história da música brasileira, isso todos os que acompanharam o estardalhaço que os ganja-man’s fizeram nos anos 90 e 2000, já sabem. A banda que surgiu na riquíssima cena do rock nacional dos anos 90, trazia novidades musicais e contestavam costumes. Tanto pela sua sonoridade quanto pelos seus posicionamentos ideológicos, sua obra subversiva não se assemelhava em nada às outras de sua geração, seja musicalmente, seja no conteúdo de suas letras. Aliás, a diversidade sonora é uma das marcas da geração 90, que surgiu com destaque para bandas de várias partes do país.
Artistas tais como Mundo Livre S/A, a Nação Zumbi, capitaneada pelo mestre Chico Science (um dos idealizadores do movimento mangue beat), grande gênio da nossa música nos anos 90. O Rappa de Marcelo Yuka, Falcão e cia chegaram longe também, porém, não com um discurso tão explícito sobre questão tão delicada e tabu em nossa sociedade. Pra ficarmos apenas nos exemplos das grandes no sentido daquelas que alcançaram um público nacional e hoje são reconhecidas como expoentes dessa geração.
O talento inovador da esquadrilha da fumaça se unia naquele momento a uma militância até então desconhecida da maioria dos brasileiros. Algo que naquele momento foi respaldado por um das maiores gravadoras do país, (selo Caos, subsidiada pela Sony Music), que trouxe pro cenário da música brasileira artistas como Gabriel o Pensador, Skank e a já mencionada turma da Nação Zumbi.
A soma de todos esses fatores fez com que o grito do Planet Hemp ecoasse tão longe e por tanto tempo, vale lembrar, que tudo isso numa época em que o uso da internet era um luxo para poucos, por tanto, era o canal menos convencional para a difusão dos trabalhos dos artistas. A banda é uma das diversas bandas que foram divulgadas inicialmente através das famosas fitinhas demo, algo hoje em dia impensável para a geração mp3.
A polêmica sempre acompanhou a trajetória dos ”homens fumaça”, desde a escolha do nome da banda (extraído de uma publicação da revista High Time, especializada na cultura em torno da maconha), aos títulos de seus álbuns. Isso sem citar suas principais músicas, nas quais os integrantes deixavam claro o seu posicionamento favorável quanto a legalização da maconha.
A medida em que a banda ia ganhando projeção nacional e espaço na mídia, também crescia a censura da ala conservadora de nossa sociedade: jornalistas, intelectuais, artistas e políticos de direita contrários à legalização.
Para relembrar esse momento histórico da banda e da música brasileira, voltemos ao final do ano de 1995, ano em que a banda lança o seu bem sucedido disco de estréia, o “Usuário”. Que impactou demais o cenário musical com a inédita proposta de trabalho e a clareza nos posicionamentos defendidos. Algo que caiu no gosto da ala mais underground, chegando a alcançar a incrível marca de mais de 50 mil cópias, uma boa marca, analisando o contexto em que o disco foi lançado e em se tratando de um primeiro disco!
A ótima repercussão de “Usuário”, rendeu uma boa turnê ao grupo e os shows praticamente não paravam, as polêmicas também não! Ao término da turnê do primeiro disco, sem demora o Planet Hemp entra em processo de criação de seu segundo e talvez mais polêmico disco, ou o que tenha, como eles mesmos gostam de dizer, “causado maior estardalhaço”!
E para assumir a produção do álbum que posteriormente se tornaria uma lenda e um dos discos de maior atitude do rap/rock nacional, resolveram apostar em outra lenda da música mundial, o conceituado Mario Caldato Jr. Produtor famoso no meio musical por trabalhar com artistas renomados como o lendário grupo norte americano Beastie Boys. O resultado não poderia ser outro senão o da criação de um grande disco, um clássico da música brasileira. E dessa forma nasceu o polêmico e profético “Os Cães Ladram Mas A Caravana Não Pará”!
Os disco começa com a clássica Zeroviteum, num beat pesado e com graves estridentes, uma das marcas do Planet desde seu primeiro disco, a trupe carioca abre a sessão com uma narrativa lado B do cartão postal da capital carioca. Temos uma música que nos remete a um Rio de Janeiro caótico, tomado pela violência da guerra urbana, parcialmente abandonado pelo poder público. Uma banda azeitada, um swingue onde a guitarra cheia de wah-wah do Rafael, e os scracths do Dj Zé Gonzalez espancam ao longo da track.
Ao término, a referência feita aos que tombaram dentro do cenário caótico da violência que não se restringe apenas a capital carioca dão o tom melancólico e reflexivo da faixa, transformando zeroviteum em um dos maiores sucessos do Planet Hemp!
Em seguida temos outra porrada, Queimando Tudo, onde Black Alien traz uma irreverente abordagem ao tema. Com humor e de maneira relaxada, o inverso de Zeroviteum se faz, e o contraponto é exatamente a exaltação da marijuana como propiciadora de paz. Queimando tudo é o que podemos chamar de faixa mais light do disco, também uma das mais executadas da banda e a qual ganhou o clipe divertidíssimo acima.
Então Hip Hop Rio aparece num beat de graves pesados, mesclados com elementos de samba, a faixa é a legítima fusão de dois ritmos fundamentais na construção das bases do Planet Hemp, o rap clássico dos anos 80/90 e a malandragem bebida no samba carioca. Alguns anos depois o nome da faixa iria inspirar o próprio D2 a lançar uma coletânea de mesmo nome e que viria a revelar grandes nomes da cena do rap carioca. Certamente esse bate cabeça foi uma das faixas importantes para a criação de uma aproximação muito frutífera entre duas vertentes musicais que até então não se bicavam. E ao mesmo tempo exaltava as características deliciosas da cidade “maravilhosa”, afinal nem só de criticas viverá o homem.
Bossa é o que podemos chamar de “faixa de transição “, uma curta vinheta que classificamos como uma pequena homenagem e ao mesmo tempo uma demonstração da qualidade técnica da banda. Uma bossinha que prepara a porrada seguinte. Sim, o Planet era uma banda capaz de segurar os ritmos mais diversos, demonstrando que não estavam apenas ligados a cultura do sampler. Um liquidificador rítmico e orgânico capaz de bater qualquer coisa que fosse trazida para sua salada sonora e apresentar o groove como resultado final.
“1, 2 3, olha o hardcore, quem não gostou, vá se fuder“, é o refrão edificante de 100% HardCore, que nos demonstra outra forte vertente da banda, e que podemos apontar como uma das pedras fundamentais dos gêneros musicais responsáveis pela sonoridade do Planet Hemp! Amplamente cultivada no período em que a banda era desconhecida do grande público e transitava os circuitos de música alternativa pelo país.
Uma das coisas mais interessantes sobre os discos do Planet Hemp, era justamente sua mistura de estilos, já então anunciada em “Usuário” com: Raprocknrollpsicodeliahardcoreeragga. Bossa nova, Hardcore e Biruta, segue com um soul funk de primeira, instrumental muito bem feito como o são as composição de Formigão. O que nos mostra a expansão artística da banda já em seu segundo disco. Uma audição mais desatenta faz você pensar não estar mais ouvindo um disco do Planet Hemp, ledo engano.
A pesada guitarra na intro de Mão na Cabeça dão o tom da retomada do discurso de denúncia social característico da banda. Os caras expõe de maneira explícita a questão do tráfico de drogas, da corrupção policial e todo o caos social gerado pela falta de soluções urgentes e eficazes no que diz respeito ao consumo, descriminalização e legalização das mesmas.
Em O Bicho Tá Pegando, em uma belíssima homenagem ao mestre Bezerra da Silva, os caras mostram como a discussão sobre a legalização das drogas, sobretudo da maconha é antiga no Brasil. Nessa música o Planet Hemp deixa claro que não foram os primeiros a abordar essa questão e demonstram isso na irreverência e na utilização (samplers líricos) de trechos de clássicos do mestre.
Como já supracitamos, a banda não limitava a exploração de outras sonoridades e também faziam questão de deixar claro de onde extraiam muitas delas. Em Adoled a referência-homenagem ao Led Zeppelin fica explícita (já no título), porém numa versão… digamos… mais hardcore de The Ocean. A utilização dessa faixa que integra o clássico Houses Of The Holy 1973, é curiosamente retirada de um dos discos onde Jimmi Page e sua turma mais experimentam sonoridades diferentes. Indo do Reggae ao Funk, o que nos remete a um paralelo muito interessante com as próprias experimentações da esquadrilha da fumaça.
Em seguida voltamos ao hardcore com Seus Amigos, onde B Negão e D2 exploram a critica aos playboys e sua completa ausência de valores éticos. O que encontra eco na faixa seguinte a enfumaçada Paga Pau, abordando o problema da violência nos estádios. Fruto das torcidas organizadas que esquecem o prazer de torcer para o time do coração, buscando as brigas e causando mortes nos estádios. A música que se constrói toda num ritmo bastante cadenciado e sombrio como os fatos e atitudes narrados, numa perfeita adequação entre forma e conteúdo.
A atualíssima Rappers Reais criticava já naquela época a imitação caricata do rap gringo e a limitação do gênero. Contrapondo referências nacionais à simples menção de grandes nomes internacionais do combate ao racismo, sem o verdadeiro conhecimento. A própria autenticidade musical e temática da banda já desafiava essas meras imitações. Ainda hoje percebemos aqui e ali, colocações como: “Isso sim é rap de verdade” ou “Bom era antigamente“.
Toda a história do Planet Hemp ajudou a expandir as fronteiras musicais e temáticas do gênero, de uma forma que não tinha sido vista antes. Eram contemporâneos na mesma medida em que projetavam o futuro, abrindo desde lá espaço para que outros artistas buscassem a liberdade da criação sem se prender a regras.
Hoje certamente os mano não regravariam Nega do Cabelo Duro, por motivos óbvios. Já Hemp Family traça um retrato de cada um dos integrantes dessa estranha família: Rappa, Funky Fuckers, Nação Zumbi, Speed Freaks e Black Alien. Unidos na consagração da erva sagrada e lutando pioneiramente a favor da legalização da mesma.
Quem Me Cobrou, segura o ritmo do disco que já se aproxima do final, e é hoje uma música esquecida dentro da obra da banda. Mas, é uma boa porrada hardcore, com a mesma qualidade das anteriores presentes na mesma bolacha. Se Liga, encerra o álbum com um faixa swingada, num beat que lembra um pouco o ritmo da capoeira. Zé Gonzales riscando os discos com a competência que já tinha sido constatada ao longo da obra e D2 em ritmo de freestyle. A faixa se encerra, mais após alguns minutos a banda reaparece novamente com um Funkão balançado.
Temos a deliciosa sensação de um disco que mesmo tocando em temas muito espinhosos de nosso contexto politico, histórico e social, termina pra cima. E pensando mais detidamente, esse clima alegre, na verdade, se presentifica em todo o disco através do humor, presente mesmo nos momentos mais furiosos. O fato é que a salada musical que o Planet Hemp nos ofertou, era em si mesma uma enorme e linda exaltação do poder formador da música. Um disco que só poderia ter nascido naquela época de efervescência criativa que atravessava o Brasil inteiro, gerando uma cena onde as fronteiras musicais estavam sendo rasuradas.
Oficialmente a banda havia encerrado suas atividades no ano de 2003, por conta de um desgaste interno entre seus integrantes, mas em 2010, para celebrar os 20 anos da emissora MTV no Brasil, o Planet foi convidado para uma despretensiosa apresentação.
A ideia agradou a todos, fãs, produtores, artistas e pessoas ligadas a banda. Após essa apresentação, o Planet Hemp voltou a fazer alguns concertos esporádicos Brasil afora, organizando inclusive uma mini turnê entre as principais capitais e deixando nas entrelinhas a possibilidade da gravação de um álbum de inéditas. E atualmente eles seguem fazendo shows!!
Nos resta aguardar, pois acreditamos que os caras ainda tenha muito fumo (ops, quis dizer lenha) pra queimar.
Recentemente toda a discografia da banda foi colocada nas diversas plataformas digitais. Então não seja bobo e vá descobrir e ou reviver essa ganja sonora.
– Os Cães Ladram mas a Caravana Não Para
Por Paulo Brazil
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