São 30 anos de Rage Against the Machine: o primeiro disco da banda revolucionária na forma, no conteúdo e na luta política.
(Ao Vitor “Punk” Kennedy e ao André “Ladico” Ribeiro in memoriam)
Por Dalton Sanches
Comemoram-se nesse 03 de novembro os 30 anos do clássico petardo Rage Against the Machine, disco de estreia da banda homônima. Antes, e a título de indispensável menção, comemorou-se, ontem, dia 02, os 23 anos de The Battle of Los Angeles, último disco de músicas autorais do conjunto californiano, visto que o Renegades, lançado em 05 de dezembro de 2000, é um álbum de covers.
Foi por essa época que eu, irmãos, amigas e amigos estávamos experienciando intensamente o Rock em suas mais variadas ramificações, inclusive os seus inovadores flertes com o Rap, gênero com o qual muitos e muitas de nós, moradores das periferias, já tínhamos algum contato, ainda que indiretamente pelos aparelhos de som da vizinhança, de onde emanavam, no máximo volume, os clássicos de Sobrevivendo no Inferno, do Racionais MC’s.
Voltando ao disco do hit “Killing In the Name”, um brado à luta contra o movimento racista-supremacista Ku Klux Klan, as inovações técnicas e estilísticas postas em curso, nele, pelo quarteto formado por Zack de la Rocha, Tom Morello, Tim Commerford e Brad Wilk, conferem à sua identidade o caráter inquestionavelmente revolucionário, antes na forma e na técnica, principalmente se se aponta para o modo de tocar guitarra de Tom Morello, às vezes lembrando verdadeiros samples de Rap.
Para tal analogia, basta ouvir, por exemplo, os ruídos uniformes e estridentes que revestem a base principal da faixa “Bullet In the Head”, marcada pelo estrondoso groove da cozinha composta por Commerford e Wilk, e, ainda, o agudíssimo ruído que tensiona a base de “Fistful of Steel”; além do recurso à combinação de alternâncias velozes da chave seletora com a técnica de legatos, verificado na introdução e em parte do solo de “Know Your Enemy”.
Tais elementos deixaram, sem sombra de dúvida, marcas indeléveis numa maciça leva de bandas que surgiriam logo na segunda metade da década de 1990 em diante, seguindo os passos da explosiva mistura de Metal, Punk, Rock setentista e afins, com a sua inconfundível levada do Rap.
Novamente a partir de uma perspectiva mais pessoal, tamanha foi a euforia com toda essa densa atmosfera, que chegamos a formar, por volta do ano 2000, uma banda de moleques dedicada quase que exclusivamente a tocar covers desse disco e nos apresentarmos, em grande parte das vezes, no Rock da Mata, um pequeno e circunscrito festival que, por nós e para nós, e com escassíssimos recursos, organizávamos uma ou duas vezes ao ano.
A primeira vez em que ouvi Rage, ainda lá pelos idos de 1998, foi graças a uma fitinha k7 emprestada de um amigo à época, na qual, no lado A, continha algumas músicas do não menos furioso Body Count de Ice-T e, no lado B, algumas músicas do disco de estreia da banda. A primeira impressão, para quem ainda estava começando a se envolver com música e aprendendo a tocar um instrumento, foi a de que, mesmo sem entender muito, havia ali algo de autêntico e genuinamente radical, a começar pelo vocalista que, como o próprio Ice-T, era um verdadeiro rapper, e não alguém oriundo do Rock tentando forçar a barra com alguns flows mal articulados.
Depois, pela banda que estava ali fazendo aquela base poderosa e ainda, pensei ingenuamente, contando com um DJ. Sim, achava que todos aqueles efeitos e ruídos produzidos pela guitarra de Morello vinham de um turntable e um mixer. Somente tempos depois é que fui compreender que aquilo tudo vinha “organicamente” de uma guitarra e alguns pedais,sem o recurso a overdubs, teclados e, obviamente, um DJ.
Em faixas como “Know Your Enemy” e “Bullet In The Head”, conforme sugerido anteriormente, o guitarrista refuncionaliza o instrumento, se comparado ao uso padrão e, no limite, comportado dado a ele majoritariamente pelo rock feito na época. E, de fato, em muitas das faixas que compõem Rage Against the Machine, Morello usa a sua guitarra como um verdadeiro turntable, a fim de extrair sons semelhantes aos samplers das bandas de rap que ouvia, como Afrika Bambaataa e Public Enemy.
Influências essas assumidamente manifestas em entrevistas e no rol das grandes estrelas do rap que figuram, anos depois, no clipe-homenagem da faixa de autoria de Afrika Bambaataa, “Renegades of Funk”, do já citado Renegade. E, claro, além do panteão do Rap, do Funk e do Soul, como Sly & the Family Stone, George Clinton, Parliament- Funkadelic e James Brown, notabilizam-se, também, no clipe, nomes de peso da luta pelos direitos civis dos negros e negras norte-americanas: Luther King, Malcolm X, Rosa Parks, Angela Davis, Muhammad Ali, Paul Robeson, Mumia Abu Jamal e outros revolucionários, como Thomas Paine e Guevara.
Vale destacar, ainda, a aparição de Leonard Peltier nesse vertiginoso clipe, que, na faixa “Freedom”, que encerra o disco que dá o título a este ensaio, é homenageado com um enfurecido grito de liberdade, pois Peltier, líder do Movimento Indígena Americano (AIM), encontra-se preso desde 1977, acusado e condenado pelo assassinato, em 1975, de dois agentes do FBI na Reserva Indígena Pine Ridge, Dakota do Sul.
Ao decorrer de todo o clipe dedicado a “Freedom”, são exibidas imagens do caso, em que se detalham fotos do líder indígena e de outros membros da AIM. Há, também, a reconstituição dos fatos acontecidos na reserva, e baseada no documentário, de 1992, de Michael Apted, Incident at Oglala. Inspirou, também, o vídeo, bem como a letra, o estudo de Peter Matthiessen, de 1983, sobre o caso Peltier: In the Spirit of Crazy Horse. A produção termina com uma foto de Peltier na prisão e a frase “a justiça não foi feita”.
Foi, então, esse denso conjunto de sons inovadores, imagens, ideias e letras, junto com Racionais, Chico Science e Nação Zumbi, bandas Punk e Hardcore, além de algumas leituras esparsas, um dos primeiros incentivadores de uma consciência de esquerda entre a molecada que se reunia pra ouvir um som, tocar, consumir bebidas baratas, organizar eventos improvisados, xingar o sistema e odiar a playboyzada.
Por fim, e por tudo isso e muito mais, o Rage estremeceu as bases do mainstream, tanto pela fúria contra a máquina e sua intervenção nas agendas políticas da era Bush quanto por contar com alguns dos mais representativos e originais musicistas dos anos noventa. A banda revolucionou na forma, no conteúdo e na luta política. Foi quando o complexo maquinário que fundia Rap, Rock e radicalidade de esquerda chegou arrombando a porta da Billboard.
Dalton Sanches é músico e Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro
Preto.