O álbum de estréia de OQuadro sintetiza, através de seus versos e sonoridade, os diversos fatores que moldam a sociedade e seus indivíduos.
Por Giorgio Ferreira
Ao longo da década de 90 os Racionais MC’s marcaram época com samplers que exploravam o universo do funk e da soul music. Nas letras dos Racionais era marcante o seu realismo cru, a realidade expostas em crônicas do subúrbio, que oscilavam entre o épico e o trágico. Ao longo de seu trabalho também é marcante o diálogo com uma sociedade de controle. Nessa sociedade, a estatística desempenha um papel crucial posto que permite visualizar, em planilhas, como os grupos reagem a determinadas ações e sanções; permite milimetrar o uso do tempo, ver quanto tempo as pessoas passam em determinados espaços, o que consomem, determinar sua expectativa de vida, etc. Tais elementos permitem, evidentemente, gerir – para o bem ou para o mal – uma população. Todos sabemos que o modelo aplicado às populações pobres das favelas tem por meta fazer uma população refém de seus vícios, da falta de informação, da falta de oportunidade, etc., em suma, domesticá-la para o mundo do trabalho. Para denunciar isso, os Racionais se serviram de um realismo cru, com letras que se aproximavam de crônicas, e, em alguns casos, recorreram ao mesmo discurso estatístico e documental[1] para mostrar o outro lado da moeda: a existência de uma população que era administrada para permanecer em regime de escravidão moderna.
Evidentemente, algumas coisas mudaram dos anos 80-90 para cá, dentre elas a globalização cada vez mais forte, a internet invadindo o cotidiano e fazendo surgir um mundo onde, pelo simples toque de um smartphone, o local e o global se conectam. Nos mecanismos de controle social, um novo elemento entra em cena: o algoritmo. Somado à estatística, o algoritmo é uma importante ferramenta para a fabricação de bolhas de realidade virtual. Em tais bolhas o desejo será inserido como se fosse uma larva produtora de energia. Nesse contexto, é evidente o conflito de valores, o turbilhão psicológico vivido pelos habitantes desse “admirável mundo novo”. A escravidão moderna já não recorre a chibatas, mas ao insuflamento do desejo, para fazer com que ele mova suas máquinas. As redes sociais, os sites de compra, os sites de pornográficos, de fofocas, etc.: todos eles são movidos pelo desejo. É neste contexto de uma sociedade marcada pelo controle, pelo bombardeamento midiático, pelo direcionamento do desejo através de bolhas virtuais, pela conexão entre o local e o global, que o grupo OQuadro se inscreve. É neste contexto que é lançado o álbum OQuadro em 2012; e é com esse contexto que ele dialoga, tece críticas e propõe saídas.
A primeira faixa do álbum é Balançuquadro. A canção começa com a marcação do baixo e efeitos de distorção na guitarra. A marcação do baixo é bem enfática ao longo de toda a canção, além disso há a transa muito bem elaborada entre o eletrônico e o agogô. É destaque na canção – e uma marca do grupo – a maneira como as vozes de seus MCs se intercalam e se locupletam. Percebe-se, na letra, a oposição entre dois universos. De um lado, o autoconhecimento e a cura; do outro, a obediência doentia aos ditames sociais: “O louco que ficou certo, o certo que enlouquece.” No refrão, a questão: “Quais visões, enfim, compõem os lados do quadro? / Quais princípios, enfim? / Se encaixam os quadros, se enquadram os fracos.” No que tange à forma, a letra traz o ar e o espírito das ruas: rimas rápidas, gírias, citações, etc. Além disso, o flow ligeiro indica a velocidade de um pensamento que não se deixa enquadrar facilmente nas etiquetas e padrões: “[…] raciocínio lento / Já estou até prevendo seus pensamentos / Objetivos, adjetivos, taxativos pronomes de tratamento / Bom dia Doutor, bom dia caro jumento.” Ademais, ao final da canção ao recorrer explicitamente aos “estrangeirismos abrasileirados” usados nas ruas do Brasil, o grupo deixa claro que não se trata simplesmente de justapor o local ao global, mas de conectá-los, de fazê-los cantar juntos: “[…] sua vida ou seu Nike / O boy que ‘moscou’ de walkman e bike, / o pivete lhe flagrou e lhe meteu o knife.” Balançuquadro dá o tom do que virá a seguir: o bom flow dos MCs, o swing das músicas, e letras que não caem nos clichês do que já foi dito.
Evolui (Bem-Aventurados) é uma canção que inicia tratando das mazelas psicológicas que comumente assombram o indivíduo do séc. XXI: “Hei, meu ‘fio’, me diz o que te aflige: / o sorteio da loteca, os mistérios da esfinge? / […] Sistema social escroto, / Somado a um frágil sistema nervoso. / Conflito de valores deixa qualquer um louco”. Mas, mais do que uma crítica, o canção também é um convite: “Há um controle remoto em sua vida. / Acorde e desligue: dentro de você há um líder”. A música é uma crítica veemente a uma sociedade de controle que administra nossas vidas em seus detalhes mais íntimos, e, ao mesmo tempo, um convite para sairmos dela pelo autoconhecimento. Uma sociedade de controle que é global, aqui ou na África, e cuja saída é individual. Não há liberdade que não passe pelo crivo da libertação individual: “Eis a fórmula mágica, matemática, natural a se aplicar / Eis a evolução como consequência da auto-revolução / Fé em Deus, dê a mão e siga em frente”. A sonoridade é marcada pela guitarra base e pelos efeitos eletrônicos. Nos momentos em que aparece, a percussão contribui para fechar espaços vazios, traz mais swing e balanço à canção, e é um diferencial importante.
Trazendo a mensagem de celebração à vida, mesmo diante de sua falta de razão, Fogos de Artifício para o Precipício a Vista, traz o som do violão e a voz de Ricô para o primeiro plano. A canção é marcada também por belos riffs no contrabaixo e, ainda que se afaste do universo do Rap, não cai na armadilha das canções comerciais e insossas – muito pelo contrário. A canção deixa evidente a versatilidade de um grupo que consegue dialogar bem com as mais diversas referências musicais, sem, contudo, abandonar suas propostas e convicções.
A letra de Tá amarrado, por sua vez, é uma epopéia irreverente que coloca em lados opostos “a resistência do pai de santo contra o discurso do pastor”. A letra descreve um preto velho pouco convencional: rapper e envolvido com a cultura hip-hop. Trata-se de um preto velho cuja resistência se dá tanto pela rejeição a invencionices modernas que terminam por higienizar a cultura africana (“Vatapá transgênico”, “bagulho industrializado”), quanto pela reafirmação de valores tradicionais e pela absorção do novo. A letra traz uma clara mistura entre elementos da religiosidade africana e da cultura urbana, compondo um amálgama vivo e perfeitamente encarnado no personagem criado. Essa mistura também aparece de maneira muito evidente na sonoridade da canção, que mistura o Rap com o batuque do candomblé. Nessa mistura, a percussão de Jahgga se apresenta com força e mostra, de forma evidente, a sua importância para a produção de um som dançante e cheio de swing, um som que vai “na fé e no flow”.
Enfim, há coisas que falam por si, e que dispensam elogios. Para aqueles que gostam de boa música e querem se inteirar do que acontece no universo do Rap, sobretudo no que tange ao diálogo do Rap com outras formas artísticas e musicais: ouçam o trabalho d’ OQuadro e tirem suas próprias conclusões!
[1] Sobre o assunto note-se que o título do álbum Raio-x do Brasil remete diretamente a um procedimento que enxerga a realidade através de dados metodicamente coletados, remete à visibilidade que é obtida através de um diagnóstico. O discurso documental também é notório no início de Fim de Semana no Parque; no início de Capítulo 4, versículo 3; no início de Diário de um Detento; e na canção A Praça. Na verdade, o trabalho dos Racionais, como um todo, remete a um discurso estatístico e documental, desde o nome do grupo (que remete a razão) até o formato de crônica presente em quase todas as letras. Os exemplos citados acima são apenas os momentos em que tal discurso é mais evidente. Arriscaríamos dizer que os Racionais, evidenciam, concretamente, aquilo que Foucault, no plano teórico, chamou de biopolítica e análise do discurso. Se, hoje, essas questões levantadas por Foucault começam a ser compreendidas dentro da academia, os Racionais parecem tê-las percebido desde o início dos anos 90 – e, provavelmente, sem ter lido Foucault…
[2] Há de se destacar o contato do grupo com o Terreiro Matamba Tombenci Neto, de mãe Ilza Mukalê. O terreiro é situado no Alto da Conquista, em Ilhéus, e é também um importante centro sócio-cultural da cidade. Dentre os projetos gerenciados pelo terreiro encontram-se o bloco afro e grupo de dança Dilazenze, que lançou os álbuns Mãe Ilza Mukalê I e II, e que revelou a dançarina G’leu Cambria. As referências ao terreiro ocorrem, por exemplo, em Valor de X2 (“já não posso colar com os caras lá do Alto da Conquista”) e em Fogos de Artifício para um Precipício a Vista, onde Mãe Ilza é citada.