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OQuadro – OQuadro – 2012

Ooq-original4 álbum de estréia de OQuadro sintetiza, através de seus versos e sonoridade, os diversos fatores que moldam a sociedade e seus indivíduos. 

Por Giorgio Ferreira

Ao longo da década de 90 os Racionais MC’s marcaram época com samplers que exploravam o universo do funk e da soul music. Nas letras dos Racionais era marcante o seu realismo cru, a realidade expostas em crônicas do subúrbio, que oscilavam entre o épico e o trágico. Ao longo de seu trabalho também é marcante o diálogo com uma sociedade de controle. Nessa sociedade, a estatística desempenha um papel crucial posto que permite visualizar, em planilhas, como os grupos reagem a determinadas ações e sanções; permite milimetrar o uso do tempo, ver quanto tempo as pessoas passam em determinados espaços, o que consomem, determinar sua expectativa de vida, etc. Tais elementos permitem, evidentemente, gerir – para o bem ou para o mal – uma população. Todos sabemos que o  modelo aplicado às populações pobres das favelas tem por meta fazer uma população refém de seus vícios, da falta de informação, da falta de oportunidade, etc., em suma, domesticá-la para o mundo do trabalho. Para denunciar isso, os Racionais se serviram de um realismo cru, com letras que se aproximavam de crônicas,  e, em alguns casos, recorreram ao mesmo discurso estatístico e documental[1] para mostrar o outro lado da moeda: a existência de uma população que era administrada para permanecer em regime de escravidão moderna.

Evidentemente, algumas coisas mudaram dos anos 80-90 para cá, dentre elas a globalização cada vez mais forte, a internet invadindo o cotidiano e fazendo surgir um mundo onde, pelo simples toque de um smartphone, o local e o global se conectam. Nos mecanismos de controle social, um novo elemento entra em cena: o algoritmo. Somado à estatística, o algoritmo é uma importante ferramenta para a fabricação de bolhas de realidade virtual. Em tais bolhas o desejo será inserido como se fosse uma larva produtora de energia. Nesse contexto, é evidente o conflito de valores, o turbilhão psicológico vivido pelos habitantes desse “admirável mundo novo”. A escravidão moderna já não recorre a chibatas, mas ao insuflamento do desejo, para fazer com que ele mova suas máquinas. As redes sociais, os sites de compra, os sites de pornográficos, de fofocas, etc.: todos eles são movidos pelo desejo. É neste contexto de uma sociedade marcada pelo controle, pelo bombardeamento midiático, pelo direcionamento do desejo através de bolhas virtuais, pela conexão entre o local e o global, que o grupo OQuadro se inscreve. É neste contexto que é lançado o álbum OQuadro em 2012; e é com esse contexto que ele dialoga, tece críticas e propõe saídas.

O grupo é composto por Ricô (baixo), Freeza (vocal), Jeff Rodriguez (vocal), Rans (vocal), Vic Santana (bateria), Jahgga (percussão), Rodrigo Dalua (guitarra) e Vinicius Mangaio (programações). As canções dialogam com o universo da notícia, da filosofia, das religiões, da literatura, do cinema, das HQs e das ruas, e refletem bem as vivências dos MCs do grupo:  Rans é jornalista e escritor, Jeff é licenciado em Filosofia, e Freeza traz o conhecimento absorvido diretamente das ruas e de seu autodidatismo. Musicalmente, o grupo dialoga com influências que vão do ijexá ao afrobeat, e com a musicalidade presente nos terreiros de candomblé.[2]

A primeira faixa do álbum é Balançuquadro. A canção começa com a marcação do baixo e efeitos de distorção na guitarra. A marcação do baixo é bem enfática ao longo de toda a canção, além disso há a transa muito bem elaborada entre o eletrônico e o agogô. É destaque na canção – e uma marca do grupo – a maneira como as vozes de seus MCs se intercalam e se locupletam. Percebe-se, na letra, a oposição entre dois universos. De um lado, o autoconhecimento e a cura; do outro, a obediência doentia aos ditames sociais: “O louco que ficou certo, o certo que enlouquece.” No refrão, a questão: “Quais visões, enfim, compõem os lados do quadro? / Quais princípios, enfim? / Se encaixam os quadros, se enquadram os fracos.” No que tange à forma, a letra traz o ar e o espírito das ruas: rimas rápidas, gírias, citações, etc. Além disso, o flow ligeiro indica a velocidade de um pensamento que não se deixa enquadrar facilmente nas etiquetas e padrões: “[…] raciocínio lento / Já estou até prevendo seus pensamentos / Objetivos, adjetivos, taxativos pronomes de tratamento / Bom dia Doutor, bom dia caro jumento.” Ademais, ao final da canção ao recorrer explicitamente aos “estrangeirismos abrasileirados” usados nas ruas do Brasil, o grupo deixa claro que não se trata simplesmente de justapor o local ao global, mas de conectá-los, de fazê-los cantar juntos:  “[…] sua vida ou seu Nike / O boy que ‘moscou’ de walkman e bike, / o pivete lhe flagrou e lhe meteu o knife.” Balançuquadro dá o tom do que virá a seguir: o bom flow dos MCs, o swing das músicas, e letras que não caem nos clichês do que já foi dito.

Evolui (Bem-Aventurados) é uma canção que inicia tratando das mazelas psicológicas que comumente assombram o indivíduo do séc. XXI: “Hei, meu ‘fio’, me diz o que te aflige: /  o sorteio da loteca, os mistérios da esfinge? / […] Sistema social escroto, / Somado a um frágil sistema nervoso. / Conflito de valores deixa qualquer um louco”. Mas, mais do que uma crítica, o canção também é um convite: “Há um controle remoto em sua vida. / Acorde e desligue: dentro de você há um líder”. A música é uma crítica veemente a uma sociedade de controle que administra nossas vidas em seus detalhes mais íntimos, e, ao mesmo tempo, um convite para sairmos dela pelo autoconhecimento. Uma sociedade de controle que é global, aqui ou na África, e cuja saída é individual. Não há liberdade que não passe pelo crivo da libertação individual: “Eis a fórmula mágica, matemática, natural a se aplicar / Eis a evolução como consequência da auto-revolução / Fé em Deus, dê a mão e siga em frente”. A sonoridade é marcada pela guitarra base e pelos efeitos eletrônicos. Nos momentos em que aparece, a percussão contribui para fechar espaços vazios, traz mais swing e balanço à canção, e é um diferencial importante.

Planeta Diário é outra música que representa bem algumas características do grupo. O próprio título já nos traz a ideia de algo que é global (planeta) e local (diário). No título vemos as referências (i) ao diário onde se escreve as confidências e os fatos ocorridos no dia-a-dia (“querido diário, eu não sou desse planeta”), (ii) ao mundo globalizado, (iii) ao universo das HQs (Planeta Diário é o jornal onde trabalha Clark Kent) e (iv) ao universo jornalístico. A música inicia com referências claras à ficção científica e às HQs: “Alerta vermelho, objeto não identificado, / infratores e invasores, ameaçam nosso espaço: / seres do planeta OQuadro!”. No entanto, se a música começa com remissão à ficção, na sequência passa a emitir referências jornalísticas bastantes reais: “senhoras e senhores, telespectadores, escravos do novo mundo, / […] hipocrisia se alastra, guerra aqui, guerra na África, na faixa de Gaza, /  vidas conservadas em lata, / controles de população com códigos de barra […]”. A segunda parte da música, já com a voz de Jeff Rodriguez, segue com linhas que exigem fôlego: “e eu aqui sentado, na minha, apaziguado, / baseado num astral que eu colhi no fundo do meu quintal, / livres das mãos do mal / – tráfico, dinheiro – negócios assassinos tentam reverter o meu terreiro. / A mística do caos está por toda parte, / e é por isso que tenho o poder de transferir meu mundo pra longe, pra marte, / minha cabeça, um mundo à parte […]”. Novamente, aí temos as referências à cultura local (quintal, terreiro) e suas conexões com o mundo globalizado (“tráfico, dinheiro, negócios assassinos”) e os diversos tipos de troca que envolvem o local e o global. A crítica política contida na letra da música também evidencia a existência de um fluxo de desejo imbricado na economia (“a fé remove montanhas e Word Trade Centers”) bem como uma planificação do desejo (“vidas conservadas em lata, / controles de população com códigos de barra”). A música é ambientada em um universo de distorções sonoras, e contém inserções de sons de walk-talk e de hélices de helicópteros, o que enfatiza o efeito de ficção científica. Diferentemente do realismo cru, tão marcante no bom Rap brasileiro, a canção é uma espécie de crônica do realismo fantástico, onde o lirismo, a fantasia e a crítica política se confundem.

Trazendo  a mensagem de celebração à vida, mesmo diante de sua falta de razão,  Fogos de Artifício para o Precipício a Vista, traz o som do violão e a voz de Ricô para o primeiro plano. A canção é marcada também por belos riffs no contrabaixo e, ainda que se afaste do universo do Rap, não cai na armadilha das canções comerciais e insossas – muito pelo contrário. A canção deixa evidente a versatilidade de um grupo que consegue dialogar bem com as mais diversas referências musicais, sem, contudo, abandonar suas propostas e convicções.

A letra de Tá amarrado, por sua vez, é uma epopéia irreverente que coloca em lados opostos “a resistência do pai de santo contra o discurso do pastor”. A letra descreve um preto velho pouco convencional: rapper e envolvido com a cultura hip-hop. Trata-se de um preto velho cuja resistência se dá tanto pela rejeição a invencionices modernas que terminam por higienizar a cultura africana (“Vatapá transgênico”, “bagulho industrializado”), quanto pela reafirmação de valores tradicionais e pela absorção do novo. A letra traz uma clara mistura entre elementos da religiosidade africana e da cultura urbana, compondo um amálgama vivo e perfeitamente encarnado no personagem criado. Essa mistura também aparece de maneira muito evidente na sonoridade da canção, que mistura o Rap com o batuque do candomblé. Nessa mistura, a percussão de Jahgga se apresenta com força e mostra, de forma evidente, a sua importância para a produção de um som dançante e cheio de swing, um som que vai “na fé e no flow”.

Há de se comentar, também, a bela capa do álbum produzida por Rodrigo Izolag e Ananda Nahú. Nela, vemos a figura imponente de um velho negro, de cabelos brancos, com o punho erguido fazendo a saudação dos Panteras Negras, aureolado como se fosse um santo ou uma entidade mágica. Esse preto velho, contudo, não traz consigo um livro, mas um LP. Ao fundo, os louros que coroam as cabeças vitoriosas na Antiguidade. Trata-se, evidentemente, de um levante, de uma vitória cuja mensagem vem pela música, pela oralidade mais do que pelo livro. A capa é emblemática também porque, sem perder o caráter harmônico e vivo, traz um amálgama de elementos que fazem remissão às mais diversas culturas e contextos (o louro da vitória, o punho dos Panteras Negras, o preto velho, o LP, a auréola, etc.). Trata-se de uma capa em que Izolag e Nahú mostram seu poder de síntese, e retratam, com precisão e beleza, o trabalho musical do grupo sulbaiano.

Enfim, há coisas que falam por si, e que dispensam elogios. Para aqueles que gostam de boa música e querem se inteirar do que acontece no universo do Rap, sobretudo no que tange ao diálogo do Rap com outras formas artísticas e musicais: ouçam o trabalho d’ OQuadro e tirem suas próprias conclusões!

[1]          Sobre o assunto note-se que o título do álbum Raio-x do Brasil remete diretamente a um procedimento que enxerga a realidade através de dados metodicamente coletados, remete à visibilidade que é obtida através de um diagnóstico. O discurso documental também é notório no início de Fim de Semana no Parque; no início de Capítulo 4, versículo 3; no início de Diário de um Detento; e na canção A Praça. Na verdade, o trabalho dos Racionais, como um todo, remete a um discurso estatístico e documental, desde o nome do grupo (que remete a razão) até o formato de crônica presente em quase todas as letras. Os exemplos citados acima são apenas os momentos em que tal discurso é mais evidente. Arriscaríamos dizer que os Racionais, evidenciam, concretamente, aquilo que Foucault, no plano teórico, chamou de biopolítica e análise do discurso. Se, hoje, essas questões levantadas por Foucault começam a ser compreendidas dentro da academia, os Racionais parecem tê-las percebido desde o início dos anos 90 – e, provavelmente, sem ter lido Foucault…

[2]          Há de se destacar o contato do grupo com o Terreiro Matamba Tombenci Neto, de mãe Ilza Mukalê. O terreiro é situado no Alto da Conquista, em Ilhéus, e é também um importante centro sócio-cultural da cidade. Dentre os projetos gerenciados pelo terreiro encontram-se o bloco afro e grupo de dança Dilazenze, que lançou os álbuns Mãe Ilza Mukalê I e II, e que revelou a dançarina G’leu Cambria. As referências ao terreiro ocorrem, por exemplo, em Valor de X2 (“já não posso colar com os caras lá do Alto da Conquista”) e em Fogos de Artifício para um Precipício a Vista, onde Mãe Ilza é citada.

Nota: 

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