Apontando uma perspectiva ampla sobre o “refinamento racista brasileiro”, OQuadro segue contra efetuando musicalmente com “Preto Sem Açúcar”
“Aqui é Preto sem Açucar meu bem, não tente me refinar!”
Ao longo de uma trajetória de mais de 20 anos, a banda baiana OQuadro hoje se firmou como a banda de rap mais criativa e singular musicalmente da história do rap nacional. O grupo que já alçou voos para fora do país com a força de um hip-hop único em suas qualidades rítmicas e poéticas, firme e muito bem plantado, colhe agora em seu novo disco um melado espesso. Fruto de uma manufatura e de um apuro político, histórico e estético plantado e colhido ao longo de mais de duas décadas.
Hoje, OQuadro é: Jahgga, Ricô Bass, Nêgo Freeza, Rodrigo Dalua, Rans, Orixá Africano, Mangaio e Jef Rodriguez, MC’s, DJ’s, Beatmakers e instrumentistas que acabam de dar um grande passo em suas carreiras. O grupo formado na cidade de Ilhéus no interior da Bahia, reúne sobretudo pesquisadores e artistas que seguem constantemente em sua trajetória pensando o país e a si mesmos, sempre com os olhos voltados para o mundo. A reunião destas sensibilidades, destas experiências, alcança em Preto sem Açúcar (2021) a sua obra prima até então, e desde já um dos grandes discos do ano no Brasil.
Essa mescla de olhares presentes na banda, ganha na amplidão de perspectivas que reunidas seguem desde os anos 90 se desenvolvendo, atuando, gravando e prospectando a vida e a arte. São pensadores que vão das “peles” às cordas, dos aparelhos eletrônicos aos livros, do canto à rima, sempre ancorando os conhecimentos conquistados em uma vivência de rua. Enriquecidos nos túneis de cobre, alcançaram como banda, uma qualidade que não pode ser encontrada em qualquer botequim. A aguardente que OQuadro nos oferece em seu mais novo trabalho é decantada, produzida para paladares que estão buscando algo diferente da pinga feita em larga escala.
“Com a honra de guerreiros bantos
de terreiros universais,
enfrentando soldados sem honra
e seus crimes capitais.
Aqui quem mata mais é quem prega a paz,
mas somente após a guerra retornará o Jedi.”
Em seu terceiro disco, Preto Sem Açúcar (2021), a banda apresenta um processo de destilação histórica e perspectiva político-racial que parte da economia açucareira do Brasil colônia e atravessa toda a estrutura racista implementada em nosso país ao longo de mais de 5 séculos. Nesse processo, o grupo chega ao século XXI tendo alcançado e já projetando espiritualidade e saúde física para a população negra. Não apenas se desviando das mil e uma formas de extermínio proposto pela branquitude, como servindo de exemplos e ofertando estratégias para o enfrentamento.
Não é comum vermos bandas negras longevas e muito menos comum, vermos um coletivo formado hegemonicamente por homens pretos envelhecerem tão bem, física, mental e consequentemente artisticamente. É parte da estratégia da branquitude colocar homens negros em pé de guerra, dividir e conquistar. OQuadro nesse sentido se transformou numa máquina de guerra contrária aos apelos do Estado, criando/alimentando esse “Preto sem Açúcar” com nutrientes de um outro projeto político civilizacional.
Das fazendas de cana de açúcar até os paredões de nossas periferias, OQuadro apresenta um música para dançar e lutar com maestria através do campo minado do colonialismo e do neocolonialismo. Ao longo das faixas, das poesias/falas e das vinhetas que compõem o disco, a banda propõe um conceito muito bem urdido e tão amplo quanto a variedade musical presente no trabalho.
Em tempos de representatividade profunda como uma poça de àguas turvas, esse Preto sem Açúcar carrega na pele a sua profundidade nas variações de tonalidade de preto. Não há sinais de embriaguez e nem de doçura envenenada no rap da banda, como gosta a indústria cultural e o público irrefletido. Não se encontrará também palavras de ordem ligadas a quaisquer opções de representatividade de internet ou de partidos políticos e ideologias ocidentais. Aqui tudo é ritmo e poesia de riqueza dançante e pensante, fora da caixa.
Dito isso, a audição deste novo disco certamente encontrará os ouvidos mais inquietos, nos convidando a pensar e nos impulsionando a dançar-amar ao seu som. Restando-nos degustar com parcimônia e usufruindo com atenção e alegria a trajetória deste Preto Sem Açúcar (2021), que neste disco não se rende a nenhuma prisão ocidentalizante, se configurando como um personagem conceitual afrocentrado em diálogo permanente com a sua (nossa) diáspora. Sobrevoando afetos, percepções, ideias com a força contestadora e malemolente, groovada e agressiva, esse Preto sem Açúcar é o grande atentado poético musical no segundo ano da peste. Ao mesmo tempo contra o atual fascismo neopentecostal mas também enfrentando as suas causas na própria história nacional.
“Vitória certa desperta, não tem derrota ou empate,me esquivo de todo crivo, revido a quem me bate”
Do disco de estreia d’OQuadro até aqui, não é difícil perceber o quanto estamos diante de uma trilogia que foi se fazendo com esmero e dificuldade, com talento e raça. Uma conquista que se não foi pensada como tal, vai ficando desta forma registrada na discografia da banda, na música brasileira e na cultura hip-hop nacional. Da primeira e icônica capa de um heróico e ancestral Preto Velho (atualizando a ideia do santo etíope Black Moses) do disco de estréia OQuadro (2012), juntou-se o Nêgo Roque (2017) em uma caminhada de conquista técnica e artística a qual agora se reúne esse Preto sem Açúcar (2021). Uma coerência e um processo artístico que se não foi planejado certamente foi sendo intuído e nos presenteou com três “personagens” dentro desta verídica mitologia do OQuadro. Prova disso é que, o mesmo responsável pela capa de estréia: Izolag, retorna agora junto a Orixá Africano na responsa de toda a concepção visual da obra.
No espaço deste texto, há uma impossibilidade de traçar esse rico caminho musical e conceitual que a banda trilhou e que em certa medida contribuiu para moldar a própria música baiana atual. Seria necessário pelo menos um artigo científico, para dar conta das tramas imagéticas, rítmicas, poéticas e discursivo conceituais, às quais a banda urdiu estando nas margens da visibilidade e da atenção da grande mídia e da indústria musical brasileira ao longo de seus mais de 20 anos de carreira.
Porém, nos cabe aqui apontar algumas direções e reflexões que a audição atenta e prolongada deste disco nos impele. Ideias talvez óbvias mas que precisam ser registradas aqui a título de apontamento.
“Pra quem compra respeito com credicard
Quando vir pesadão você vai se ligar
Mete o seu namastê na vesícula”
Mantendo a tradição, OQuadro apresenta um disco de mais de 40 minutos, ou seja, um disco mesmo em tempos de EP. Ao longo destas 15 faixas, a banda consegue fazer com que todas as músicas sejam únicas, outra característica tradicional do grupo, com qualquer uma das músicas podendo ser transformada em singles. É uma obra que dispensa as muletas contemporâneas do “game”, e mesmo dialogando com artistas que não fazem parte da cultura hip-hop não sai do rap. Aliás, Ellen Oléria manda um flow nervoso além do exímio canto, na visceral “Kalashnikov”.
A experiência e atualidade faz com que a maestria de três MC’s com mais de 20 anos de caminhada se juntem a nomes mais novos como Davzera (um ícone nacional do rap underground) na faixa “Motor da Fome”, a sempre agressiva e potente Cronista do Morro e o conterrâneo Billyfat em “Campo Minado” e o polivalente MCDO (Afrocidade) em “Não Vai Passar Batido”, sem prejuízo para ninguém apenas ganho, para a arte e o público. E nesse sentido, temos novamente o enorme prazer em ver o trio maravilha novamente reunido em um disco, Nêgo Freeza, Rans e Jef Rodriguez, este último tendo lançado recentemente seu primeiro trabalho solo (leia aqui).
Nomes como Jorge Du Peixe, Xênia França, Vanessa Melo, Tuyo, Russo Passapusso, colaboram neste trabalho com suas características e qualidade próprias, somando no que podemos chamar de polifonia lírica: rimas, cantos e vozes. Com as produções, arranjos e programações sendo assinadas por Mangaio, Ricô Bass, RDD, Orixá Africano, Pedro Itan, Gabriel Marinho o disco apresenta sabores rítmicos dos mais diversos e diferentes que você ouvirá esse ano.
Dentro do grosso do que foi lançado esse ano no rap nacional, e certamente foi um ano de excelentes lançamentos, em direções muito diversas como tem sido nos últimos anos, certamente OQuadro se destaca. Não sabemos porém se a xenofobia que impede grande parte da mídia especializada ouvir o que é produzido na Bahia, dará conta desse disco, seguindo o jogo fácil de falar sobre quem está no hype do eixo. Porém, não é difícil constatar que esse é um dos melhores discos do ano, seja no rap ou na música brasileira de modo geral. Extamente por não se prender a estéticas padrões, Preto sem Açúcar (2021) consegue agradar a ouvidos treinados ou não.
O disco abre os trabalhos com” Um Brinde a Minha Gente”, a obra avança suave falando-nos de amor preto, denunciando o genocídio da juventude negra, fazendo uma elogios e observações da vivência de quebrada, para se encontrar musicalmente com “LULULULULU” junto ao ganês DJ Sankofa e encontrar o seu encerramento em uma fala de Beatriz Ferreira. Essa viagem proposta precisa ser observada em sua riqueza conceitual afrocentrada, em ritmo e poesia.
Em seu terceiro disco, OQuadro consegue passear por sonoridades do rap, trap, trap soul, funk, influências claras da reggae music, dancehall, elementos da música eletrônica – que é preta, criando uma identidade sonora única. Entre o orgânico e o digital a banda consegue uma maestria única que não repete fórmulas, que não se prende a gêneros trabalhando sempre em favor da música.
É necessário se atentar ao excelente trabalho da guitarra de Rodrigo Dalua durante todo o disco, em especial na faixa “Asas”, sutilmente contundente. Ou ainda na cozinha formada pela dupla Orixá Africano (Bateria) e Ricô (baixo) em “Não Vai Passar Batido”, com um entrosamento fino como de resto toda a banda demonstra, mesmo com os diversos parceiros presentes. São muitos elementos que se fazem notar em cada uma das músicas, as quebradas de andamento e os arranjos de “Caça”, por exemplo. A utilização dos synths, os músicos convidados, nos remetem a necessidade de ouvir o disco com a cara colada na ficha técnica.
A riqueza desse Preto Sem Açúcar começou ontem a ecoar pela eternidade, se você quer uma obra inesgotável, aqui está uma, se você quer mais um disco do OQuadro que não pode passar batido e que não possui par no que é feito hoje no Brasil, aqui está um a mais. Saudemos Preto sem Açúcar, e tudo pelo que ele se diferencia, alimento e ideias realmente necessárias para um povo por vir!
-OQuadro “acende o pavio e apavora”, com “Preto sem Açúcar (2021)”
Por Danilo Cruz