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Onni, Angola, Guizo & Sant em um ponto de força para o presente!

Onni, Angola, Guizo & Sant em um ponto de força para o presente! Precisamos nos fortalecer diante do genocídio da população negra.

Dia 18 de maio de 2020, morreu João Pedro. Mais uma criança assassinada pela polícia. Um dia depois meu primo me mandou uma mensagem de voz, chorando, me contando sobre o acontecido. Eu fiquei mudo, sem ter o que falar. Mandei outra mensagem pra ele, mas a falta de algo positivo ou esperançoso pra dizer e toda a situação que envolveu a morte desse menino daqui da Baixada, me fizeram entrar em desespero. Meu primo tem uma filha que vai completar dois anos na semana que vem e mais uma vez tomou consciência de um fato com o qual nós nos deparamos várias vezes durante a vida, em uma sociedade como a nossa, vidas negras não importam. Não preciso dizer que nós, assim como o menino assassinado, somos negros. Eu tive uma crise de ansiedade aqui em casa e ele teve outra lá na casa dele, ao mesmo tempo. 

Dia 31 de maio o Mundo Ao Norte soltou o clipe de Ponto de Força, faixa que contou com Sant, Onni, Angola, Guizo e Asiri na produção. Eu ouvi assim que saiu e uma hora depois meu primo me mandou o link pelo WhatsApp. Não trocamos ideia sobre faixa, no máximo um “Sant e Onni na mesma faixa é foda”, mas não era necessário. Eu e ele sabíamos que naquela faixa estava tudo o que nós deveríamos ter dito um para o outro duas semanas atrás. 

Dia 2 de junho, morreu Miguel Otávio. O menino caiu do nono andar de um prédio em Pernambuco, após ser abandonado pela patroa da mãe, que havia saído pra levar o cachorro dos patrões para passear. Mais uma vez eu fiquei sabendo do acontecido por outra pessoa, porque não vejo noticiários. Uma amiga, dois dias depois, desabafou em uma rede social, nós conversamos e ela me falou sobre o medo de ser mãe em um mundo racista como o nosso. Todos esses fatos somados me fizeram escrever esse texto. Faz tempo que eu não consigo escrever, a situação não está fácil e nada disso é novidade pra nós, mas achei necessário falar sobre a faixa do Mundo ao Norte porque acho que produções como essa cumprem um papel central dentro da cultura negra, em especial no Hip Hop. Elas informam, alertam, mas acima de tudo trazem esperança, algo que nós como negros, em meio a tantos motivos pra desistir, a todo momento necessitamos.

A primeira vista dois elementos muitos fortes na sonoridade da música me chamaram a atenção. O timbre de voz do Angola, bastante incomum e melódico, e a base marcada pelas linhas de baixo e, principalmente, pelo trompete durante toda a faixa. Esses dois elementos criaram uma ambientação de muita emotividade, bastante adequada à temática da música. 

O primeiro a rimar foi o ONNI, um dos meus MC’s preferidos. Os elementos cenográficos dispostos na sala, como a lareira, o copo de café quase vazio e a TV fora de sintonia com imagens do próprio ONNI sendo transmitidas, compõem uma aura meio depressiva, melancólica. Já o discurso é reto, o MC expõe um cenário no qual nós não temos tempo pra sentir ou chorar, por estarmos em uma situação na qual as dores são manipuladas entre os que expressam falsa solidariedade e aqueles que zombam dela e a diminuem. Um cenário em que o racismo e o genocídio avançam enquanto uma focinheira é colocada nos MC’s não apenas pela repressão, mas também pelo Mercado, as tendências, o público. Um lugar no qual o cenário musical mainstream e uma emulação cult de contracultura, ambas são metidas goela abaixo do público, enquanto os MC’s que continuam carregando a mensagem que o hip hop exige, o ímpeto de inovação e a originalidade continuam invisíveis, desistindo do RAP pra terem como pagar os boletos. Tempo em que a quantidade de lançamentos nunca foi tão grande, mas ouvir um disco se torna cada dia mais um ato banal, corriqueiro, no qual o público ouve uma vez, critica e esquece. Em um ambiente assim só resta a firmeza, a luta. Onni fecha os versos com uma referência aos Racionais, com o verso “Infinitas vezes a fúria negra ressuscita outra vez” que ao mesmo tempo soa como um chamamento à revolta e funciona como um questionamento sobre quantas vezes mais estaremos em situações tão opressoras nas quais a luta se torna a única opção.

Nos cenários do Angola e do Guizo a água foi utilizada como um elemento interessante para compor a semiótica. No caso do Angola a princípio parece que está chovendo, no entanto no desenrolar do clipe a câmera abre, surgindo um chuveiro e folhagens ao redor do MC que criam uma percepção de conflito interno, sufocamento e ao mesmo tempo solidão. Já o Guizo inicia a cena dentro de um rio, ou cachoeira, possivelmente fazendo alusão ao batismo, que simboliza o renascimento. No entanto, esse mesmo simbolismo é utilizado na letra em “E ainda há quem diga que é vitimismo/ Quando pomos em pauta o racismo/ Perderam o propósito do batismo que cês tinham feito” como uma forma de pontuar a hipocrisia cristã dos cidadãos de “bem”. Guizo evoca a amizade, o ato de conversar, trocar experiências e ouvir o outro, como uma forma de se segurar, se manter são frente às porradas que a vida dá. Além disso, faz alusão à música como forma de manter a fé em meio às adversidades e como ferramenta para quebrar as correntes que nos mantêm presos. A chuva também é utilizada nesse momento como representação da dor e do choro, enquanto o MC lista as atrocidades feitas pelos brancos ao longo da história. O Gabriel Camacho, diretor do clipe, brinca com essa oposição entre sofrimento e esperança utilizando um take em que a chuva cai sobre o MC, mas o sol se reflete na água, aplicando a noção de contraste.

Sant encerra a faixa com maestria. Os elementos de cena se mantêm desempenhando um papel importante. Ele fica o tempo todo sentado em uma poltrona, ao lado de um espelho e um abajur, cercado por plantas cobertas por uma lona de plástico, mais uma vez criando uma imagem de oposição e conflito, que só se resolve no final do clipe, quando a imagem do MC se torna transparente e o plástico deixa de cobrir as plantas, indicando que o conflito só se encerra com a morte. O MC começa falando diretamente com o ONNI sobre a importância do choro e da emoção como formas de se humanizar.

Há uma conversa entre os versos do ONNI “Enxuga as lágrimas, vai/ Não temos tempo pra essas goteiras” e do Sant “ONNI, deixe que essas linhas molhem”. Ele de fato conversa com todos os MC’s logo no início dos versos trazendo uma mensagem de esperança e solidarização. Em “cortes cicatrizam, registram suas dores/ Também as tenho, isso não as faz menores/ Fazem delas nossas” Sant retoma o que foi dito pelo Guizo sobre a necessidade da conversa, de se solidarizar e dividir as dores como forma de atravessar os momentos difíceis. Na sequência, em “Se duvide, olhe/ Seu olhar me fala/ E ao falar, acolhe” faz referência ao refrão do Angola, “O olho também fala, quando fala dá pra ver”. Sant traz durante seus versos uma mensagem de esperança, porém consciente da necessidade de se manter na luta, “Dai-nos esperança/ Consciência limpa/ E dinheiro pra fiança”. Ou seja, em um país de Amarildo, Rafael Braga, Bárbara Quirino, entre tantos outros, esperança e honestidade não são suficientes pra pessoas como nós. É necessário se manter firme e alerta.

Sant repete a palavra esperança algumas vezes nos versos, quase como um mantra, e reforça em “Um caminho simples de fé pras crianças, paz!/ Pras crianças, pais/ Pra salvação, trabalho pra mudança” a necessidade de se organizar em prol de um futuro diferente, brincando com a sonoridade das palavras “paz” e “pais” para enfatizar nossa responsabilidade como homens e mulheres negras de criar um ambiente melhor que o nosso para as próximas gerações. 

Essa música me tocou bastante quando eu ouvi pela primeira vez, e continua tocando. Acho que pra quem é negro não é necessário explicar o porquê. Mas uma faixa como essa mostra como o RAP continua sendo algo muito além de mais um ritmo musical. É um elemento cultural que nos dá voz e expõe aquilo que nós como indivíduos, depois de tantas repetições do mesmo drama, já não conseguimos mais dizer.

-Onni, Angola, Guizo & Sant em um ponto de força para o presente!

Por André Clemente de Farias 

 

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