Oganpacast diretamente de Ponte Nova, Zona da Mata Mineira, numa conversa com a VGBD Crew sobre a cena hip hop local.
Ponte Nova é conhecida por ser berço de um dos maiores centro avantes do futebol, Reinaldo Lima e de um dos principais nomes da música brasileira, João Bosco. Ponte Nova também sustenta a fama de sempre formar excelentes músicos, o que é verdade. Há cerca de 15 anos novos músicos surgem interessados não apenas em reproduzir músicas de artistas consagrados pelo tempo ou pelas rádios e tv, mas desejosos de compor e tocar suas próprias músicas. Construir uma carreira autoral.
Embora seja uma guerra ainda em progresso, muitas batalhas foram vencidas. Essa nova geração conseguiu consolidar um circuito musical entre os diversos estabelecimentos locais, abrindo espaço para se trabalhar e viver de música na cidade. A questão que estes músicos e principalmente a próxima geração devem se colocar é se isso é o bastante. Deve-se pensar nas próximas “batalhas” a serem travadas e os novos despojos a serem conquistados.
A meu ver o próximo passo consiste em formar um público interessado em música como um fim, não como um meio para ambientar seus jantares, conversas de bar, festas de aniversário, casamentos e agradar seu gosto musical medíocre formado midiaticamente pelas emissoras de televisão com suas novelas e programas de auditório e as estações de rádio FM com seu prato feito musical financiado com jabá. Somente encarando esse desafio a música pontenovense poderá atingir o próximo nível onde os músicos poderão apresentar seus trabalhos autorais, terem sua independência artística e a devida valorização de sua música.
Esse circuito de apresentações nos bares locais foi estabelecido por músicos filiados ao gênero musical brasileiro que convencionou-se chamar de MPB. Não a toa os repertórios de barzinhos Brasil afora serem todos compostos por standards da MPB. Não é diferente em Ponte Nova. O senso comum brasileiro estabeleceu esse gênero musical como sinônimo de refinamento do gosto musical, de elevação intelectual, de qualidade musical tanto por parte do público quanto dos músicos ligados à MPB. Acolhida pela classe média, a MPB passou a representá-la no campo musical. Há tempos deixou de estar entre as camadas populares. Basta entrar em qualquer um dos bares frequentados pela classe média pontenovense para constatar esse fato.
Isso gerou preconceito em relação a gêneros musicais cujas formas e exigências técnicas diferem daquelas presentes na MPB. Esta mais complexa tecnicamente, torna-se parâmetro de qualidade. Quanto mais afastado desse “padrão de qualidade” estabelecido pela classe média, pior é musicalmente um gênero, segundo essa “linha de pensamento”.
Fora desse circuito mainstream musical pontenovense surge uma força cultural de forte natureza transformadora, oriunda de jovens moradores dos bairros periféricos da cidade. Formados na cultura hip hop ocupam os espaços públicos da cidade a fim de promover interação cultural na praça com quem desejar interagir através do evento “Batalha de Palmeiras”. Esse evento tem como foco principal o enfrentamento entre os rappers locais, que através do free style constroem suas rimas e as confrontam.
Contudo o evento é bem mais abrangente, abrindo espaço para poetas declamarem seus versos, dançarinos, não apenas b boys e b girls, apresentarem seus passos e coreografias, artistas plásticos apresentarem suas pinturas, desenhos, grafites ou esculturas. Essa postura democrática, que acolhe ao invés de excluir, possibilita agregar novas possibilidades não apenas musicais, mas de inúmeras vertentes artísticas.
Conheci a “Batalha de Palmeiras” a caminho de um desses bares de classe média de Ponte Nova, numa noite de sábado. O amigo que me acompanhava já havia falado a respeito, mas não tinha informação a respeito da periodicidade do evento. Foi então que por mero acaso nos deparamos com uma concentração de pessoas na Praça de Palmeiras, a principal praça da cidade e ponto de encontros dos jovens pontenovenses. O amigo que me acompanhava apontou para o grupo de pessoas e disse se tratar do duelo de MC´S. Imediatamente bateu a onda da empolgação e fomos lá conferir o evento. Os caras batalhavam sem microfones, apenas com a força do gogó, tendo como aparelhagem para base instrumental apenas uma caixinha de bluetooth de potência bem baixa. Isso exigia esforço e concentração por parte do público. Olhei ao redor e vi pais com seus filhos comendo pipoca e acompanhando as rimas que se confrontavam. Pessoas de diversas idades acompanhavam atentamente, enquanto as batalhas aconteciam.
Esperei o momento oportuno e chamei de canto um dos caras que organizavam cada uma das batalhas, seu nome, Yuri Belico, rapper coligado à VGBD Crew. Parabenizei-o pela iniciativa, pedi seu número de whatsapp e perguntei se havia interesse deles em conceder uma entrevista pra mim. Disse que iria ver com os outros caras e então me daria uma resposta. Meu amigo e eu seguimos para o bar a fim de prosseguir na noite de sábado.
Durante a semana entrei em contato com o Yuri e marcamos a entrevista. Encontrei com alguns dos membros da VGBD Crew para a entrevista. Além do Yuri compareceram Bob Loko e Gabriel Horoi. Nessa conversa, que rolou durante uma tempestade da pesada, pude conhecer mais sobre a cena hip hop pontenovense, até então completamente desconhecida por mim. Fiquei impressionado com a articulação de ideias dos caras, com a capacidade deles se organizarem e promoverem as condições para que sua arte chegasse ao conhecimento das demais pessoas da cidade.
Cientes do preconceito de classe a eles direcionado, criaram algumas regras para as batalhas a fim de evitar possíveis repressões. Durante as batalhas é proibido usar “palavrões”, “xingamentos”, qualquer expressão ofensiva, bem como consumir bebidas alcoólicas. O evento sempre ocorre em horários que cumprem as determinações da chamada Lei do Silêncio. Mesmo tomando essas precauções os caras tiveram que lidar com situações de repressão como vocês ouvirão na entrevista.
Detentores de um senso crítico afiados, os caras demonstram a consciência política, social e cultural que possuem. Compreendem seu papel na formação de uma nova geração que leve adiante as realizações alcançadas, sabem a respeito da existência do preconceito contra eles e qual sua origem. Essa consciência permite o desenvolvimento de ações e estratégias que combatam tal opressão.
A estratégia principal, antes de qualquer outra, está em combater seus próprios preconceitos, aprender a lidar com as diferenças, sem que com isso acolham a ideologia do opressor. Este é combatido promovendo o esclarecimento e o acesso à informação, à cultura e também ao lazer por parte dos seus. Suas regras são criadas não para reprimir, afastar, excluir, mas com o objetivo de gerar um ambiente acolhedor, que promova os encontros de todas as classes, de todas as gerações e permita a todos dispostos e desejos de interagir e conhecer coisas novas possam fazê-lo.
Diferentemente da geração de rappers pontenovenses anterior que se manteve na sua zona de conforto, promovendo sua arte apenas nos seus bairros e casas de shows direcionadas para o público de rap e subgêneros deste como o funk, a nova geração do hip hop pontenovense dá alguns passos além, levando a tocha da geração anterior para outra esfera. Eles já preparam as próximas gerações para seguir adiante quando a hora chegar.
Os jovens MC´s pontenovenses desceram para a praça e a ocuparam. Criaram um evento unificador e disseminador da arte periférica, reunindo poetas, djs, artistas plásticos, rappers de toda cidade, dando visibilidade à sua produção artística. Tudo isso sem apoio do governo municipal, representado pelo que por lá ainda se chama de secretaria de cultura, ou de qualquer outra entidade de Ponte Nova. Essa nova geração do hip hop pontenovense, de artistas pontenovenses, segue a velha máxima punk do “faça você mesmo” e mostra sua existência potencializadora e realizadora, a qual aos poucos vai deixando de ser ignorada pelas diferentes camadas sociais da cidade.
Em tempos de exaltação do militarismo, em que se comemora nas redes sociais a morte de jovens da periferia e o assassinato/ execução de uma mulher negra que lutava e denunciava o extermínio de moradores das comunidades cariocas, conhecer jovens artistas como Yuri Belico, Gabriel Horoi e Bob Loko traz confiança acerca da permanência da luta contra essas forças reacionárias que buscam nos enredar e se dermos mole, nos dominar permanentemente.
Salve Gabriel Horoi , Bob Loko , Yuri Bellico, a V.G.B.D Crew e todxs que fortalecem o hip hop pontenovense.
Salve a todxs essxs jovens que decidiram fazer algo e ocupam a praça pública para mostrar que a periferia é rica em arte e pensamento crítico.
A todos vocês meu máximo carinho, admiração e respeito!!!
Confira abaixo a entrevista completa!