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O voo rasante do Carcará

Em novembro de 2019, Bob O Carcará do Sertão lançou o EP A Arte Que Nos Veste, uma ode à vitalidade sertaneja!

O Hip Hop não tem fronteiras, estende-se por onde há alguém sentido a necessidade de se fazer ouvir. Segue ganhando novos sotaques, incorporando novos elementos culturais, expandido seu repertório sonoro, temático, tornando-se cada vez mais diverso, cada vez mais inclusivo, característica que só gera fortalecimento de um gênero musical aberto a todxs.

Durante muito tempo esteve restrito aos grandes centros urbanos. Aos poucos, com a disseminação da internet chegou aos rincões do país, fazendo fervilhar sangue e ideias de jovens interioranos. O rap chegou ao sertão, ao cerrado, às florestas; nessas novas paragens recebeu elementos das culturais locais, tornando-se também regionalista. Seu primo distante, lá das paragens sertanejas, o repente, a ele se uniu gerando novas métricas e rimas cheias de novas sonoridades. Um salve ao mestre RAPadura Xique Chico, ícone maior do rap regionalista!!

O rap sempre foi a arma de luta contra a opressão nos guetos, favelas e quebradas mundo a fora. Agora também arma os oprimidos pelos ruralistas, pelos coronéis, latifundiários e grileiros que banham de sangue as terras com sangue sertanejo e indígena. O rap também pode ser apenas um gênero musical, apenas um som pra curtir a night, mas jamais perderá seu sentido primordial: a arma que leva os despossuídos a lutar e construir sua própria história.

Bob, agraciado com a alcunha de Carcará do Sertão, usa essa ave de rapina tão comum nas caatingas e vales como metáfora para expressar a robustez, a determinação, a altivez do sertanejo, características que são as suas próprias. Tal qual o carcará, o sertanejo resiste a todas as intempéries, seja seca, a exploração do fazendeiro, a falta de oportunidades na cidades do interior, o sertanejo permanece vivo. Difícil não se lembrar da música dedicada a descrever as característica do carcará, composta por João Do Vale e imortalizada na interpretação magnífica de Maria Betânia. A letra ilustra bem a natureza dessa ave e das pessoas oriundas do sertão.

Em novembro de 2019 o Carcará do Sertão deu seu voo rasante lançando o EP Arte Que Nos Veste. Bob se mostra um exímio cronista da realidade do sertão, narrando em seus versos a labuta diária, a contante luta pela sobrevivência. A faixa que abre o EP e que também lhe dá o nome, fala das crenças, o vínculo com o sagrado e da sina nos canaviais onda a farinha e a rapadura aliviam as chagas da fome. Bob nos revela as mazelas do sertão, porém através do modo como são enfrentadas pelas pessoas que lá habitam. Há todo um mundo de diversidade cultural e luta revelado por seus versos ricos em detalhes.

Terra Rachada nos apresenta a geografia sertaneja, a vastidão seca de vegetação rasteira mas cheia de vida, que vai da flor do mandacaru ao forro na praça. Ao fundo ouvimos os dedilhados na viola produzindo o som característico das modas dos violeiros. Isso nos coloca ainda mais dentro do clima dos cenários descritos pelo rapper. 

Porém, alguns conjuntos de versos nos levam a deparar com situações familiares aos grande centros urbanos.  “Fui na rua vi jogados/ Entre abanados e viciados/ O êxodo do passado /Pela necessidade de uma casta”. Aqui somos colocados diante de uma cena de pessoas viciadas entregues à própria sorte, abandonadas, jogadas pelas calçadas, problema que cria raízes quando o êxodo levado nos paus de araras já não se apresenta como solução.

Outra estrofe descreve a condição de alguém que trocou o interior pela capital e acabou sendo rechaçado pela cidade grande, que ainda deixou traumas indeléveis:

Ouvi o chute na porta

Só o pipoco então pinota

Era pipoca, na caçarola

É que neurose bate, toda hora

Tu quer o futuro

Eu quero o agora

Mais concentrado que veneno de cobra

E o que eu procuro a luz que vigora

Tão natural quanto os versos de Pandora

Na faixa 03, Vida de Gado, Bob homenageia o rei do baião, Luiz Gonzaga. Usa a gravação do aboio de Gonzagão, usado em suas músicas para transmitir um sentimento profundo, misto de saudade e admiração, tal qual o blues. Exalta os costumes do homens do interior, encarnado na figura do vaqueiro, imagem evocada e usada para construir uma crítica política acerca das relações estabelecidas por convenções sociais.

Vem na sequencia Berro da Alma, uma faixa mais intimista, que express os anseios, angustias e a compreensão de si mesmo por parte do rapper. Nela se questiona, assim como o mundo que o cerca usando um flow mais rápido construído sobre versos mais longos. Seguimos com Só Observo, e já no título temos a letra do que será abordado nos versos.

A expressão “só observo” transmite a compreensão de quem se coloca à distância dos acontecimento, estudando-os, construindo seu sentido para então agir ou emitir uma opinião. A letra aborda a recepção feita por Bob da fala das pessoas sobre o modo como elas veem seu trabalho. Nesse ínterim adota a postura de receber essas opiniões, de apenas observar o comportamento e a fala dessas pessoas. Claro, elaborando a sua própria compreensão acerca daquilo que lhe é dito.

Fecha o EP a faixa Medicina Sagrada. Nessa faixa Bob canta versos dedicados a questionar o conhecimento formal e sua aplicação na compreensão do mundo. Busca a valorização do conhecimento popular, transmitido pela tradição, que possui grande valor entre as comunidades rurais e originárias, mas que continua sendo desvalorizada, deixada de lado e deixando de ser um vínculo entre as gerações. Aos poucos vai se perdendo todo arcabouço epistemológico construído através do vínculo entre as pessoas e a natureza, entre as pessoas da geração anterior e da atual.

Trabalhos como A Arte Que Nos Veste, bem como rappers da estirpe de Bob, o Carcará do Sertão, são necessários. Dão ao rap novas dimensões, produzindo novas versificações, novas métricas, novas sonoridades, além de se materializar como mais uma forma de expressão dos jovens que habitam os interiores de nosso país. 

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