O surpreendente e envolvente Jazz-Punk do Bufo Borealis

O Bufo Borealis é um projeto de Jazz-Funk com alma Punk. “Pupílas Horizontais” aproxima estéticas e cria um resultado pungente.

Quando era pivete, lembro de ter ficado bastante impressionado com o aspecto visual do Punk. A imagem daqueles lókis com um moecano que não passava nem debaixo de um túnel, cheio de ódio contra o stablishment, abominando o status quo, sempre em busca da fuga de uma rebordose chamada anos 70.

O movimento Hippie virou hype e inclusive ganhou esse nome quando saiu na Revista Newsweek – naquela clássica matéria – sobre o verão do amor. Os “Yuppies”, como o Frank Zappa os chamava, eram a galera paz e amor que ficou parada no tempo e o Punk Rock surgiu pra despertar todo mundo desse marasmo do “make love not war”, com a mesma sensibilidade de um choque 220.

Quando fiquei mais velho e comecei a de fato pesquisar sobre Jazz, um cara que sempre me fez a cabeça foi o Sonny Rollins. Ele foi o primeiro jazzman que conheci e, por meses, seu cremoso timbre saxofonístico me fez acampar em sua discografia. Aliás, as gravações do negrão formam uma das obras mais lindas, variadas e longevas da história, não só do Jazz, mas da música de maneira geral. Procuresabê.

Então imaginem a minha surpresa, quando encontrei uma foto do mestre usando um moecano BEM antes do movimento Punk sequer pensar em existir! Foi em meados dos anos 50! Imagine você, um homem negro, nos Estados Unidos dos anos 50 usando um moecano. O corte de cabelo foi o jeito que Sonny encontrou para prestar tributo ao seu povo, para refletir a resistência de sua arte, junto de sua arma, o sax tenor.

Não tem jeito. A galera do Jazz definitivamente representa o primeiro núcleo Punk. Eles foram o que o Racionais MC’s chamou de “os primeiros V1D4 L0K4 da história”.

Foto: Thiago Paes

Agora você deve estar se perguntando pra onde que o resenhista vai né? Bom, parece conversa de cego e surdo, mas o raciocínio acima faz sentido, ainda mais quando você pensa no som do Bufo Borealis, uma das cozinhas mais interessantes que surgiram no cenário underground nos últimos anos.

Duo formado por Juninho Sangiorgio (Ratos de Porão) e Rodrigo Saldanha, o projeto busca a sonoridade do Jazz-Funk com a mesma abordagem Punk que moldou a musicalidade da dupla.

Como resultado, o primeiro trabalho autoral da banda – o surpreendente “Pupílas Horizontais” (lançado em 2020) – com edição em vinil via Zenyatta Records – mostra 2 músicos com anos de roda Punk nas costas, colocando o ímpeto transgressor do estilo e aura do it yourself (faça você mesmo) do movimento, pra bolar um som swingado, Jazzístico, mas de alma 100 por cento Punk.

bufo borealis pupilas horizontais
Arte: Felipe Pagani

O Bufo Borealis nasceu em 2019. De lá pra cá, Juninho e Rodrigo trocaram, ouviram e pesquisaram muito sobre Jazz. Paixão em comum entre os dois meliantes, nem as limitações técnicas pararam a dupla na caminhada rumo ao deboche Jazz-Funk. E o que começou como um projeto caseiro e que era pra ser apenas uma demo, virou disco e o resultado chama atenção pelo arrojo, criatividade, ousadia das experimentações e pelas participações que abrilhantam cada uma das 6 faixas que formam o trabalho.

Antes de falar das faixas e sobre as participações, vale destacar o processo de gravação desse trabalho. Tudo começou na casa do próprio Juninho. O disco foi gravado no Reaper e como a ideia – em termos de concepção sonora – estava bem clara para ambos, a dupla gravou o esqueleto das músicas apenas com baixo e bateria, deixando espaços em branco para que os convidados contribuíssem, e conforme essas trocas aconteciam, o esqueleto inicial também era alterado.

Esse aspecto orgânico agrega uma característica única pra cada faixa. Como se cada tema fosse um organismo vivo, no entanto o resultado final é dono de uma identidade inexorável. É Punk, é Jazz e consegue ser Funk.

A abertura do disco já mostra o vasto vocabulário estético dessa reunião. Na faixa “Fênix Hesitante” – com poema e voz de Rodrigo Carneiro (Mickey Junkies) – que também tocou guitarra, samples, baixo e sintetizadores – além de chapadas vocalizações de Fernanda Lira, as ondas chegam na forma de um retumbante Spiritual. É nesse contexto utópico dos versos de Rodrigo que a música se desenvolve e abre sua ala de iniciação como um chá de trombeta embebido em saxofones e detritos de wah-wah.

Foto: Thiago Paes

 “Lagos” é uma homenagem ao mago negro, Tony Allen. O Rodrigo foi técnico de bateria do Tony durante sua última passagem no Brasil – em show realizado no SESC Pompéia – contando com o arquiteto do Afrobeat na lista de headliners do Nublu Jazz Festival 2019. A marcação da cozinha dá a liga perfeita para um groove hipnótico e insistente, com toques marcantes do clarone de Rogério Martins e da percussão do Bruno Buarque (Criolo).

O poder de imersão é notável. Na épica “Guerra” e seus imponentes 8 minutos, os riffs gordurosos de Juninho, a cama de pianos elétricos e a bateria que está selando a base formam um tear sonoro riquíssimo e que se mistura ao sax de Anderson Quevedo numa suíte prog com vida própria e que muda o clima do ambiente num piscar de olhos. A percussão do Bruno Buarque é estalo o para que os ritmos tribais mostrem sua riqueza digna de uma orquestra.

E é com a força desse vocabulário multifacetado que o disco surpreende pelo vigor dos temas, a sensibilidade e por conseguir fazer tantas referências coexistirem de maneira harmônica sob o mesmo teto. As teclas do Paulo Kishimoto trazem um ar meio fantasmagórico para a track (“Silvestre”) e a diversidade de timbres puxa o ouvinte pelo pé igual um coice de LSD.

Quando você acha que não dá pra ficar melhor, surge “Indecente” e “Escuridão”, 2 grooves encavalados com texturas luxuosas de nada mais nada menos que Edgard Scandurra. Jazz Funk de doidão com muita lábia instrumental e clima de jam band.

A roupagem das faixas é cremosa e a dupla mostra uma sensibilidade muita grande pra fazer essa dinâmica funcionar. Essas duas últimas faixas em especial são verdadeiras guitarradas na nuca. Os solos ardidos ao melhor estilo Miles Davis trazem um resultado final tão pungente e agressivo que – apesar de estar presente num disco de Jazz – mostra toda a essência Punk da alta cúpula que chefia o projeto.

Os músicos atacam os instrumentos, tocam com tesão e vontade e essa abordagem visceral, emoldurada pelas vastas possibilidades do Jazz que trás esse frescor e essa sonoridade nua e crua.

Não parece com nada. É Bufo Borealis e ponto.

A que conclusão eu chego? O Punk é Jazz, o Jazz é Punk e o Punk é agro.

Bufo Borealis, senhoras e senhores.

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