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O sônico no cinema

music_machinePinceladas sobre a alquimia das luzes e sons na música fílmica

Eu sou vidrado em trilhas sonoras de cinema. Acho muito louco pensar a importância da música e demais componentes sônicos na concepção de um filme. É fascinante perceber a forma como nossos sentimentos e estados de espírito se intensificam na presença dessa simbiose entre imagens e sons durante a sessão cinematográfica. É por isso que a sonoplastia do cinema não deve ser vista como mero adereço, e a música como simples catalizador de emoções – estes elementos fazem parte da própria estrutura da obra.

E, se o cinema é contar histórias, os sons fazem parte do “como” essas histórias são contadas. Neste contexto, a trilha sonora se presta a várias funções, tais como recurso estilístico ou de descrição. E vai muito além. Sua presença amplia a dimensão do espetáculo cinematográfico proporcionando ao espectador uma experiência arrebatadora e não ordinária. A arte símbolo da era industrial ganha força dramática e maior expressividade com a inclusão dos sons em sua manifestação. Não à toa (mas apenas a partir do desenvolvimento técnico que permitiu a existência do cinema falado) que um crítico, como Ricciotto Canudo, poderia, então, definir e consagrar o cinema como a sétima a arte. Nascia a “arte total”, a arquitetônica arte capaz de condensar em si todas as outras.

É por isso que vislumbro o cinema como algo magnífico. Na infância, quando meus familiares anunciavam nossa ida ao cinema, eu imediatamente entrava em um estado de excitação fora do comum. A experiência proporcionada pela projeção de todos aqueles mundos estranhos e distantes em minha retina era muito próxima da vivência dos sonhos. E essa ideia me assustava na mesma proporção que produzia forte atração. A sala de cinema e seu ambiente escuro, a grande tela e todas aquelas luzes intensas e sons provocavam as mais diferentes e interessantes reações em minha mente e corpo. As crianças são mais sensíveis aos efeitos de uma sessão cinematográfica. Quem nunca se pensou um super herói na tenra idade, inspirado em algum filme blockbuster, e se iludiu profundamente e saborosamente com aquilo por algum tempo? Quem na infância não acreditou, em algum instante, que aquele mundo de imagens e sons fossem a própria realidade concreta?

Citando um exemplo: aos sete anos de idade eu fui assistir ao famigerado filme ET – O Extraterreste, de Steven Spilberg. A versão era legendada e eu ainda não possuía o traquejo de acompanhar o filme com a leitura das legendas e muito menos compreender o inglês falado pelos personagens. Embora, um tio que então me acompanhava soprasse em português algumas falas importantes para que eu compreendesse o contexto da história, o que me mantinha hipnotizado e atento a tudo que acontecia era a perfeita homeostase entre imagens e sons que eu presenciava ali. Tenho bem nítido na memória o estado de euforia gerado em mim nos momentos em que o tema musical do filme, escrito por John Williams, vinha a baila. Uma experiência tão marcante que ainda hoje, muitos anos depois, aflora à consciência como uma marca indelével e nítida. Algo da magnitude dos grandes sentimentos e descobertas que vivenciamos através da existência humana. Sem dúvida, ir ao cinema é um aprendizado importante em nosso desenvolvimento pessoal.

A música na alma do cinema

Prosseguindo com a linha de raciocínio, a ambição filosófica e estética inerente ao processo de desenvolvimento do cinema pariu obras colossais. Os recursos técnicos que possibilitaram a extraordinária capacidade atual do cinema de sensibilizar e produzir estados emocionais nas pessoas estenderam ainda mais o seu poder de impacto em nossos espíritos. A arte cinematográfica nos arrebata de nossas vidas opacas e nos coloca frente a um reluzente, colorido, sonoro e epopeico universo. Posto isso, quero destacar neste texto a relação entre música e cinema; e, mais especificamente, da música inserida no cinema. Ou seja, a trilha musical. Também quero observar a forma como essa música dos filmes pode ganhar vida para além da sua mera presença nos título fílmicos; ou mesmo, como algumas canções podem ampliar sua notoriedade a partir do momento em que são requisitadas para participarem de algum filme de sucesso. Existem canções eternas que estão hoje ecoando em nossas cabeças graças a sua aparição em determinados filmes impulsionadores de sua divulgação.

Todos sabem, e não é necessário ser um sociólogo pra isso, que a grande indústria do cinema contemporâneo é bilionária e poderosa, possuindo uma sofisticada e global estrutura de divulgação, distribuição e exibição de filmes. O sistema de produção cinematográfica norte-americano parece o mais bem sucedido neste sentido, sendo que majoritariamente aquilo que é apresentado entre os seus conteúdos tem enorme potencial para se tornar algum tipo de moda global. São cortes de cabelo, estilos de roupas, tipos de carros, formas gestuais, gírias, padrões de beleza e músicas transformados em coqueluche da noite para o dia. Basta um filme cair no gosto popular para que muitos produtos e ideologias possam a ser ofertados à um gigantesco público ávido em consumir tudo aquilo que lhes é oferecido. Com a intensificação da globalização, o processo descrito acima tomou dimensões astronômicas. É fácil perceber isso quando constatamos que a maior bilheteria da história pertence ao filme Avatar, de James Cameron, uma co-produção norte-americana e Inglesa, que rendeu bilhões de dólares em todo o mundo.

Voltando para as relações entre música e cinema, uma história pitoresca é a da canção Mamãe Eu Quero, de Vicente Paiva e Jararaca, que foi composta para o carnaval de 1937. Era nesse período do ano que os compositores brasileiros da época testavam suas obras com o público, sendo que na festa de carnaval as canções que obtinham a consagração necessariamente fariam sucesso nas rádios. Entretanto, os antológicos versinhos da marchinha da dupla de veteranos não pegou. Somente em 1940 – quando a direção musical do filme Serenata Tropical, de Irving Cummings, definiu a canção como parte do repertório musical que seria cantado pela diva Carmen Miranda – a marchinha hilariante conquistou o mundo e tornou-se o clássico que é. O sucesso foi tamanho que posteriormente a música reapareceu em filmes dos irmãos Marx e em um episódio da animação Tom & Jerry. A canção foi gravada por inúmeros interpretes, inclusive por Silvio Caldas e pelo genial Pixinguinha. É considerada uma das mais conhecidas marchinhas brasileiras de todos os tempos. Quem nunca cantou: “Mamãe eu quero,mamãe eu quero/ Mamãe eu quero mamar! / Dá a chupeta! Dá a chupeta! Ai! Dá a chupeta / Dá a chupeta pro bebê não chorar!”?

Outro exemplo esclarecedor do poder catapultador exercido pelo cinema é o caso da canção No Caminho do Bem, de Tim Maia, e do resgate das demais gravações pertencentes ao “fracassado” disco Tim Maia Racional (1975). É muito conhecida a passagem em que Tim se dedica integralmente a divulgação da cultura Racional através da criação e produção de músicas de cunho espiritualista e religioso, e a execução destes temas em shows. Também é notório o malogro comercial do álbum e a decepção posterior do cantor com todo o contexto que envolvia aquele projeto. O próprio Tim Maia silenciou as músicas e negou sua validade. Décadas depois, e anos após a morte do artista, é que, a partir da aparição da canção No Caminho do Bem como tema principal do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund, o disco foi reeditado e exaustivamente tocado em casas noturnas do mundo todo. Tim Maia não estava vivo para ver o sucesso daquilo que ele se arrependera de ter feito. Vale ressaltar que o filme Cidade de Deus é recheado com magníficas canções que vão de Cartola a James Brown. De Raul Seixas a Bachman-Turner Overdrive. É uma loucura ouvir todas aquelas empolgantes músicas em um filme de ação.

Aquela trilha musical que marcou

No intuito de verificar em um pequeno grupo de pessoas – meu rol de amigos – o quão as trilhas musicais são marcantes (e quais são essas trilhas tidas como importantes), postei nas redes sociais a seguinte pergunta: “Qual trilha musical de filme mais impactou sua vida?” Para minha surpresa, rapidamente muitos se manifestaram com centenas de sugestões. Essa espontânea adesão à proposta me sugeriu que o assunto causava certa empolgação. As pessoas citavam suas trilhas musicais preferidas com muita paixão. Frases como: “esse filme e sua trilha mudaram minha vida” ou “essa trilha musical só me lembra coisas boas” foram registradas em meu mural virtual. Também, muitas foram as preferências em comum, como no caso do filme Pulp Fiction, campeão entre os mais citados. A partir disso, senti a necessidade de falar um pouco sobre o assunto. De pincelar a questão com minhas impressões sobre o tema. Relembrar alguns filmes e músicas porretas.

É impossível rolar um bate-papo sobre música e cinema sem citar o opulento Pulp Fiction – filme de Quentin Tarantino, lançado em 1994. Além de todas as suas estripulias conceituais, estéticas e de linguagem, sua trilha sonora é um prato cheio da melhor refeição. Esse filme, assim como Cidade de Deus, não possui uma trilha musical original. O que significa que todas as músicas já existiam antes da produção do roteiro e que não foram compostas especialmente para contar tal história. No entanto, a escolha do repertório musical que consta no dinâmico filme de Tarantino foi responsável pela conquista do importante prêmio europeu Brit Award para melhor trilha sonora. Além disso, devido a ampla aceitação do filme, as antigas canções contidas na película transformaram-se em novos sucessos populares. Já na abertura do longa, a canção Misirlou, intrepretada por Dick Dale & the Del-Tones, dá o tom do que se seguirá adiante. Rock and roll, surf music, soul e pop estão no cardápio. É pura adrenalina do início ao fim.

Infelizmente não é possível falar aqui de todas as trilhas musicais que pude levantar através do meu grupo de amostra. Elenquei filmes com intensos temas orquestrais conhecidos mundialmente (praxe na cultura cinematográfica americana), trilhas com repertório variado (como já foi citado), musicais propriamente dito, entre outros. Sem dúvida, alguns musicais – filmes com narrativa sustentada pela sucessão de músicas coreografadas e cantada pelos atores – devem ser citados em nosso contexto. Particularmente, acho este estilo de filme um pouco monótono, salvo raros casos em que me surpreendi. Tommy, a ópera rock de Ken Russel, com música assinada pelo super grupo The Who é cacetada do início ao fim. O acabamento refinado dos cenários e figurinos, as movimentações experimentais de câmera e originais efeitos visuais, a história empolgante e a música avassaladora nos lança em uma viagem psicodélica sensacional. O destaque vai para Pinball Wizzard, de Pete Townshend, música interpretada por Elton John. Outro filme necessário é Across the Universe, de Julie Taymor, uma releitura do universo contracultural dos anos 60 azeitado com a música dos Beatles. A participação de Bono Vox na canção I’m The Walrus ficou foda mesmo. O clássico The Wall, de Alan Parker e música do Pink Floyd e Robert Erzin, dispensa qualquer comentário. Vale lembrar a famosa cena com a canção The Wall que questiona, através de uma forte metáfora visual, poética e musical, o sistema educacional europeu do pós-guerra.

A lista é longa dos bons filmes com excelentes músicas originais. Entre eles, um que primeiro vem a mente é o enigmático Dead Man (1995), de Jim Jarmusch. O filme é de uma poesia sublime e sua carga simbólica é considerável. A música minimalista de Neil Young, toda executada em lúgrebes acordes menores, revela a aridez espiritual de seus personagens. A solidão e a incerteza que assolam aquele cenário de velho oeste são desenhadas por uma agreste música que soa distante e etérea. Tudo parece sempre retornar ao seu lugar sombrio e esse entendimento é determinado pelo toque do tema central que reaparece nos momentos de clímax do filme. Há apenas uma guitarra com efeitos de distorção e reverb que acompanha a triste saga dos personagens. É no desdobrar dramático e incomum da história que vamos nos deparando com questões da maior profundidade. Enquanto isso, as guitarras de Neil nos guiam para áreas mais adentro da inconsciência.

Na mesma vertente da música original, o filme Tenacious D, Uma Dupla Infernal (2006), de Jack Black, tem praticamente toda sua trilha composta para a ocasião. Mas, diferente de Dead Man, o longa do jocoso ator e diretor Jack Black é uma comédia divertida e pastelônica. Com música pesada muito bem composta e executada, o filme conta a trajetória de dois amigos que querem montar uma banda e fazer sucesso. A trilha sonora foi lançada uma semana antes da estreia do filme e obteve grande aceitação, ficando no topo das paradas do ITunes, entre os dez álbuns mais importantes do Reino Unido, além do oitavo lugar na Billbord 200. Detalhe interessante é a participação de Dave Grohl como baterista nas gravações musicais e como o Capeta na encenação da história. Também não posso deixar de citar que o Tenacious D é uma banda que nasce antes do filme, com um disco gravado na bagagem, e desponta internacionalmente a partir da repercussão no cinema.

The Blues Brothers ou Os Irmãos Cara-de-Pau (1980), de John Landis é um dos meus favoritos. A sequência musical é empolgante e a participação de medalhões como James Brown e Aretha Franklin endossam o projeto. A dupla John Belushi e Dan Aykroyd estão divinamente endiabrados neste filme. Lembrando que, assim como o Tenacious D, o The Blues Brothers também era uma banda com um disco a tira colo e que gravou seu segundo LP na barca da produção do filme, tornando-se um fenômeno comercial e configurando a lista de Top Hits do ano. Mesmo com a prematura morte de Belushi, os shows da banda continuaram por algum tempo com Aykroyd enquanto frontman devido a insistência do público. Ainda hoje, cenas como a dos irmãos cara-de-pau na loja de músicas com o poderoso Ray Charles cantando Shake a Tail Feather continuam frescas, e com as recentes edições remasterizadas as sessões caseiras não são de se desprezar.

Finalmente, é imprescindível destacar a trilha musical do filme Easy Rider ou Sem Destino (1969), de Dennis Hopper. O famoso refrão “born to be wild”, do conjunto Steppenwolf, ecoou por todo mundo, não só através das rádios, mas, também amplificado pelos auto-falantes das salas de cinema. Aliás, outras canções interpretadas pelo grupo estão inclusas no mítico longa psicodélico, o que foi muito bom para a popularidade da banda e sua venda de discos, além de intensificar sua presença nos meios radiofônicos. Mas, o importante mesmo é dar uma sacada com atenção na escalação de craques selecionados para deleitar lisergicamente os ouvidos do espectador que acompanha o enredo. Tudo no filme sugere uma certa etnografia da contracultura dos anos 60. Um olhar atento sobre os modos e estilos de vida daquela geração pacifista e inconformada com o mundo construído por seus pais e avós. A música que ouviam e as coisas que pensavam são transmitidas por Jimmy Hendrix, The Byrds, The Eletric Prunes, Roger Mcguinn, etc. É um filme que emociona pela honestidade artística e pela reflexão que sugere. Já ouvi gente dizer que não gostou do final do longa. Por isso, acho que aqueles que estão doutrinados na ideologia do happy end hollywoodiano não tem muito que absorver neste tipo de filmografia. Este é tipo de cinema que te põe na parede e te diz: “o mundo é grande e miserável, filho. Vá e aproveite o que se tem para aproveitar!”

Há muito que se falar sobre o assunto. Vários outros filmes possuem trilhas fantásticas, como Transpoiting, A Encruzilhada, Jesus Cristo Super Star, Hair, Assassinos Por Natureza, Porcos e Diamantes, Não Estou Lá, etc. Por mais que eu cite filmes aqui, sempre deixarei outros muitos de fora. De qualquer maneira, pude pincelar as minhas trilhas favoritas e relembrar algumas canções e temas ligados a esse universo. Fiz um pequenino recorte ao escolher os filmes que possuem a canção como base de sua concepção estética. Mas, poderíamos falar mais e melhor sobre o próprio processo da sonoplastia, nos aprofundando no conceito de trilha sonora. Registro aqui estas ideias que podem servir de base para um próximo texto. Para fechar meu pensamento, podemos dizer que a relação entre a arte musical e o cinema é genética, se lembrarmos que mesmo na época do cinema mudo, havia sempre uma partitura musical que deveria ser tocada ao vivo por um músico local onde a exibição ocorresse. O que ocorreu foi o estreitamento desse laço e o refinamento dessa relação. A música foi inserida definitivamente no cinema, e hoje vivemos mais um capítulo da era do cinema sônico.

Por André de Castro Pereira  

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