Show de Calouros nos apresenta o lendário rock star Rico Estrada. Incapaz de lidar com a fama, Rico abandonou definitivamente a carreira musical. Contudo, uma fatídica situação o colocará diante do seu alter ego mais uma vez.
Ao voltar da encruzilhada, Robert Johnson selara o pacto que traria a tão desejada fama, mas levaria sua alma. A lenda em torno da figura do jovem bluesman oferece a metáfora apropriada para ilustrar a era das grandes gravadoras e a consolidação da indústria fonográfica a partir dos anos 50. Esta indústria nascente se alimentou das almas de músicos dispostos a pagar o preço exigido por um contrato que lhes trouxesse fama, instrumento mais eficaz que a lâmpada mágica de Aladim para realizar os mais profundos desejos.
Contudo, assim como o pacto feito nas encruzilhadas, o pacto feito nos escritórios das gravadoras era uma faca de dois gumes, as duas faces de uma mesma moeda: dádiva e maldição. Os casos são inesgotáveis de pop stars que sucumbiram devido à incapacidade de lidar com todo poder trazido pela fama. Elvis, Jim Morrison, Kurt Cobain, Britney Spears, Whitney Houston, Amy Winehouse e Michael Jackson, apenas para citar os casos mais icônicos, pagaram com suas vidas, sua sanidade mental e ou sua saúde física o preço de alcançarem os píncaros da indústria cultural.
O curta-metragem Show de Calouros, dos cineastas Diego Haasse e Rodrigo Araújo, apresenta-nos outro nome cuja balança da fama pendeu para o lado da maldição. Rico Estrada (Marcelo Brito) poderia facilmente ser apenas o arquétipo do homem de meia idade fracassado, como parece sugerir nas cenas iniciais do primeiro arco da história, quando somos apresentados ao seu cotidiano junto ao seu núcleo familiar.
Porém, os detalhes nas cenas vão nos dando pistas de que há mais por trás dessa rotina monótona e desinteressante de Rico. Detalhes que aos poucos revelam a presença marcante da música em sua vida. A primeira pista aparece quando Rico e a filha Valentina (Ingra Pimenta) estão jogando Guitar Hero, executando All Along The Watchtower do Bob Dylan. Essa é a primeira vez no filme em que Rico relaxa, deixa-se envolver pela música, divertindo-se ao lado da filha. Somos levados a inferir que a música, assim como a filha, geram em Rico algum sentimento de alegria, satisfação.
A cena seguinte mostra Rico e Valentina deitados de bobeira numa cama, ele fuma um cigarro enquanto ela brinca com uma filmadora. A câmera começa a se movimentar vagarosamente indo de Rico para Valentina. Vem o close em Valentina segurando a câmera que parece ser direcionada para Rico. A câmera se move e foca Rico, que fuma um beque e o passa pra Valentina. Vem um corte e a seguir o close em Valentina olhando para a tela da filmadora conferindo seu registro. Mais uma vez ela direciona a câmera para Rico, outro corte e dessa vez Rico está usando uma máscara de monstro e começa a simular um ataque a Valentina. A cena segue mostrando pai e filha brincando por algum tempo.
Ao longo de todo esse arco de cenas descrito acima um violão aparece em segundo plano, sempre visível ao espectador, representando a constância da música na vida de Rico Estrada. O violão aparece como elemento semiótico responsável por consolidar a presença da música não apenas na vida de Rico, mas também seus reflexos sobre a vida das pessoas que o cercam, principalmente de sua filha. Não por acaso o violão foi colocado entre Rico e Valentina, fazendo a ligação entre os dois personagens.
A partir desse ponto começamos a entender melhor a trama, os pontos fornecidos pelos diretores ao longo do filme começam a ser ligados. Passamos a ter condições de construir conjecturas acerca do que ocorrerá a partir de então. Damo-nos conta do peso emocional, quase traumático, que Rico enfrentará a partir dali. Nesse momento nos aproximamos mais do personagem, compartilhamos de sua angústia, pois nos identificamos com ela. Afinal, estamos diante de um problema comum a qualquer ser humano.
Vemos Rico se encontrar diante de uma nova encruzilhada, cuja dificuldade de escolha é maior devido os traumas que o leva a reviver. Decidir já não é tão fácil quanto da primeira vez. Embora essa nova encruzilhada coloque Rico frente a uma decisão difícil de tomar, escolher a opção que trará de volta os antigos demônios não será uma faca de dois gumes, pois trará redenção através do bem estar da filha.
A cena em que Rico coloca um vinil pra tocar, revela ao espectador seu hit de maior sucesso comercial, responsável por lhe dar a fama. Enquanto ouve sua música, Rico entra em transe, mergulhado em reflexões acerca da exigência de ter que encarar sua antiga persona de rock star. A expressão no rosto de Rico revela todo o peso emocional que a encruzilhada existencial à sua frente lhe impõe. Nesse momento quase assumimos o papel do corifeu na tragédia grega e lançamos nosso lamento: “Pobre destino esse que aflige Rico Estrada!”
Esta encruzilhada está muito bem representada na tensão gerada pela situação de ter que assumir mais uma vez o alter ego rock star e encontrar a redenção através do êxito em conseguir ser este antigo eu mais uma vez. Rodrigo Araújo e Diego Haasse nos ofertam uma ode ao rock através de um drama comum à condição humana, reflexo de nossa dificuldade em lidar com as limitações próprias de seres conscientes de sua finitude.
Show de Calouros: e A farsa da representação.
Por Nani Coimbra.
Com trilha sonora original de Carlos Rodrigues Dalmada, Alexandre Vídero, Glauber Guimarães e Jorge Solovera, Show de Calouros, curta-metragem gravado em Salvador, é uma exaltação à música. Todo o sentido carregado na letra de Carlos Dalmada compõe uma alegoria do anti-herói apresentado no roteiro de Rodrigo Araújo e Diego Haase.
Rico Estrada (Marcelo Brito) é um cantor que abandonou os palcos porque não conseguiu lidar com a fama. Agora, não consegue lidar nem com a depressão e nem com a doença da filha adolescente, Valentina (Ingra Pimenta). Vivendo em seu Hades particular, Rico consegue criar um universo ímpar na relação com sua filha, exercendo a pouca dose de paternidade ativa que lhe é ofertada quer pela vida, quer pela patologia, quer pela presença das mães.
No filme, a figura materna aparece como uma sustentação muito peculiar à realidade da mulher. Rico mora com sua mãe, dona Lúcia (Ivana Chastinet), que além dos afazeres domésticos, ainda se ocupa de prover o alimento do filho, do macarrão ao remédio. Valentina mora com Bianca (Paula Carneiro), jornalista e mãe. Além da lida difícil da profissão, esta mãe tem que enfrentar o problema de saúde da filha nas filas do SUS. Se na mais famosa epopeia que conhecemos no Ocidente a figura da mulher, Penélope, se apresenta pela forma da “espera ativa”, da resistência que acontece num tear, as mulheres de Show de Calouros reverberam essa espera, que é fortemente caracterizada pela trama do seu destino, sem deixar de “esperar pelo inesperado”.
Como um errante nessa “Odisseia”, Rico Estrada tem que ir de encontro à sua Ítaca, não sem antes enfrentar seus demônios. Em sua jornada, este anti-herói é acompanhado por Glauco (Rodrigo Sputter). Fã, jovem e vizinho de Rico, passa as tardes em sua companhia e de Valentina assistindo a um programa de covers na TV. Na ficção criada pelos roteiristas, todo o sentido do nome de Glauco para este personagem vai sendo mostrado. Afinal estamos falando de uma época em que “parecer ser algo, ainda que não o seja” é mais importante que sê-lo de fato. Ops! Mas isso já não estava n’A Repúbica de Platão?!
O que resultará do encontro entre um sofista moderno e um anti-herói decadente é um dos sentimentos que nos impele a assistir Show de Calouros com uma esperança silenciosa de que a humanidade dê certo ou que, ao menos, as relações interpessoais possam ser mais amorosas.
EQUIPE TÉCNICA:
Roteiro e Direção: Diego Haase e Rodrigo Araújo
Assistente de Direção: Uri Menezes
Produção Executiva: Gabriel César
Direção de Produção: Fernanda Castro
Assistente de Produção: Samile Moura
Direção Fotografia: Diego Haase
Assistente de Fotografia: Porto Tetê
Direção de Arte: Persie Oliveira
Assistente de direção de arte: Pedro Carballal
Som Direto: Marcello Benedictis
Platô e eletricista: Porto Tetê
Montagem: Diego Haase , Pablo Oliveira e Rodrigo Araújo
Desenho e finalização de som: Jorge Solovera
Produção e Preparação de Elenco: Ivana Chastinet
Still: Nani Coimbra e Marcos Vinícius Cacequi
Maquiagem: Luana Nascimento e Persie Oliveira
Figurino: Persie oliveira e Alessandra Santhiago
Finalização de Imagem: Malta Cinema e Som
ELENCO PRIMÁRIO:
Marcelo Sousa Brito – Rico Estrada
Rodrigo Chagas – Glauco
Ingra Pimenta – Valentina
Paula Carneiro – Bianca
Ivana Chastinet – Dona Lúcia
João Figuer – Apresentador
ELENCO SECUNDÁRIO
Mirella D` Andreamento – Produtora
Alex Simões – Produtor
Luan Rocha Gusmão – Rico Estrada
Antônio Dimas Glavão – Rico Estrada
Vitória Santos – Dançarina
Mariana Bastos – Dançarina
Yuri Tripodi – Jurado
Alexandre Guena – Jurado
T612 – Jurado
MÚSICAS:
AMOR, EU NÃO QUERO FICAR LOUCO, DE CARLOS MALTERE E ALEXANDRE VIDERO. ARRANJO DE JORGE SOLOVERA. INTERPRETADA POR MARCELLO BENEDICTIS
SHOW DE CALOUROS, DE TECLAS PRETAS
ROCKABILLY, DE JORGE SOLOVERA