Se tem uma banda cuja trajetória já ganhou ares mitológicos essa banda é o Beatles. Do modesto palco do The Cavern Club ao terraço da Apple Records, a biografia do Fab Four é recheada de momentos que se tornaram verdadeiros ícones da cultura pop. Não é por acaso que tantas obras já tenham sido realizadas utilizando o legado do quarteto como ponto de partida. Essa variedade parece ser diretamente proporcional à importância do grupo na história da música no século XX.
Justamente por conta desse véu de fabulação que envolve a história dos Beatles, alguns aspectos importantes da sua trajetória terminam não tendo o destaque que deveriam ter. Um deles é o trabalho realizado por Brian Epstein como empresário da banda, que vem sendo bastante subestimado por jornalistas, biógrafos e fãs ao longo dos anos. Foi para fazer justiça à atuação essencial desse personagem na própria criação dos Beatles que o roteirista Vivek J. Tiwary concebeu a graphic novel O Quinto Beatle: A História de Brian Epstein.
Costuma-se atribuir o título de o quinto beatle à Stuart Sutcliffe, ex baixista do então quinteto que abandonou o barco para se dedicar à pintura pouco antes da banda fazer o sucesso que fez. Essa história foi contada no filme Backbeat – Os 5 Rapazas de Liverpool de 1994. Existem também aqueles que exageram e preferem conceber a honra à Eric Clapton, que fez o antológico solo de While My Guitar Gently Weeps do White Album. Porém, de acordo com o próprio Paul Mccartney: “Se existiu o quinto beatle, ele foi o Brian”.
Fruto de uma pesquisa aprofundada, a graphic novel (que está sendo adaptada para o cinema) apresenta a vertiginosa ascensão dos Beatles do ponto de vista de Epstein, deixando John, Paul, George e Ringo como coadjuvantes de luxo. No entanto, a obra não está muito preocupada em ser realista, buscando precisão dos fatos relatados. À sua maneira ela reforça o teor mitológico de eventos chaves da carreira da banda, modificando-os aqui e ali – o que é condizente com a opinião que o próprio protagonista explicita algumas vezes ao longo da obra: “A mitologia é melhor, e lembrada com mais afeto, do que a História. É mais divertida! Então criamos lendas em vez de recontar histórias” afirma Brian à certa altura.
Nesse sentido os desenhos de Andrew C. Robinson prestam um grande serviço ao recriar cenas famosas dos Beatles dando aquela áurea meio idealizada, mas que faz todo sentido para o desenvolvimento do enredo. O início da hq deixa isso muito claro ao mostrar a vida de Epstein antes de conhecer os Beatles utilizando uma paleta com cores frias e monótonas para expressar o estado de espírito do personagem. Porém, ao entrar no Carven no intuito de conferir aquela banda que tava todo mundo comentando ele fica estarrecido e tem uma epifania. Entram em cena cores mais quentes e vivas, os Beatles aparecem radiantes sob os tijolos abobadados do Cavern.
Daquele momento em diante a vida de Brian Epstein iria se transformar completamente. Fazer dos Beatles um sucesso nunca antes testemunhado na indústria fonográfica se tornou a obsessão do jovem que até então gerenciava a loja de vinil da família. Cores vibrantes enchem as páginas que mostram os primeiros contatos entre a banda e o novo empresário, assim como as cenas de Brian avisando à família sobre sua nova empreitada. Dessas conversas surge uma espécie de mantra repetido pelo protagonista e que sempre provoca risos quando pronunciado: “Os Beatles serão maiores que Elvis”. Contudo, a desconfiança dos mais próximos não o abate, pois ele havia encontrado um sentido para a sua existência.
É interessante como o texto de Vivek J. Tiwary consegue aproximar o leitor do herói. O modo como o roteirista representa o empresário faz com que seja praticamente impossível para um fã dos Beatles não criar empatia com Brian. A convicção com que ele defende a existência de algo extraordinário naqueles quatro rapazes, frente à críticas de que o frenesi que tomou conta da juventude inglesa e americana em relação à banda não passava de uma moda passageira, faz com que sejamos facilmente conquistados pelo seu charme e determinação. Felizmente a construção do personagem é muito mais elaborada do que isso.
Desde o início da obra tomamos contato com a vida íntima de Brian Epstein (se pronuncia Ep-stín). Seus afetos, seus sonhos, seus medos e fraquezas. Ser judeu e homossexual numa Inglaterra onde a prática da homossexualidade era considerada crime e com traços latentes de anti-semitismo, marcou profundamente o seu caráter. E a hq aborda esses temas delicados com toda maestria, produzindo momentos de pura poesia gráfica. O personagem vai ganhando profundidade a cada página e vamos compartilhando suas emoções através de uma simbiose exemplar entre os desenhos e o texto.
Um bom exemplo disso é a maneira com que os quatro beatles e a interação entre eles são representados. Robinson acerta em cheio ao optar por desenha-los numa mistura de um traço mais realista com elementos cartunescos. Podemos identificar sem problemas quem é cada um deles ao mesmo tempo em que o visual do quarteto está completamente adequado à linguagem do quadrinho. A maneira com que se movem, suas piadas e trejeitos, a sincronia perfeita entre eles são mostradas também com um quê idealizado, mas que funciona muito bem dentro da proposta apresentada pela graphic novel. Os momentos de maior realismo pictórico são os que retratam os dilemas pessoais de Brian, neles Robinson entrega desenhos mais sóbrios e cheios de sensibilidade.
O encontro do protagonista com Coronel Parker (o famoso empresário de Elvis Presley) é um outro exemplo de como texto e arte trabalham juntos em favor da história e da construção do personagem. Nessa sequência é como se Brian tivesse sido colocado de frente a uma imagem completamente distorcida de si mesmo. O Coronel é mostrado como uma entidade maligna, um glutão vulgar e perverso. No contraste entre as duas figuras a personalidade de Brian Epstein é melhor evidenciada. Filosofias de trabalho (e de vida) tão diferentes terminam entrando em conflito ressaltando a solidão do quinto beatle, que mesmo com todo o sucesso não consegue achar o seu lugar.
Assim, a vida pessoal de Brian Epstein se mistura com as lendárias histórias vividas pelos garotos de Liverpool num criativo mosaico que exibe uma riqueza de detalhes impressionante. O Quinto Beatle funciona também como uma pequena enciclopédia sobre a carreira da banda, com a diferença de que as informações não estão expostas de maneira explícita, mas aparecem diluídas no decorrer da trama. Você tem que estar atento e conhecer uma coisa ou outra sobre os Beatles e o contexto político-cultural do início da década de sessenta na Inglaterra e nos Estados Unidos para percebe-las, e mesmo assim será difícil conseguir assimilar tudo. São muitas as referências tanto textuais, quanto dispostas em figurinos e cenários.
Tratando-se de quadrinho (uma mídia desprovida do recuso auditivo) é curioso notar a maneira como a música é insinuada na obra. A forma que eles encontraram de inserir Number 9 no meio de um diálogo é brilhante não somente por ser corajoso e discreto, mas também por fazer uma ponte com um momento futuro da biografia dos Beatles que Brian Epstein não vivenciou. E isso acontece diversas vezes. Uma das mais interessantes mostra Paul, George e Ringo com receio de viajar para os EUA por conta do assassinato de Kennedy. Ironicamente quem os convence do contrário é Lennon dizendo: “Não é perigoso. Não somos o presidente. Não somos a pessoa com as bombas e as armas. Somos só uma banda. O mundo não liga para o que a gente diz”.
Quem é fanático por esse período da música inglesa vai delirar com momentos épicos, como a sequência da festa de lançamento do Sgt Peppers, cheia de convidados famosos. Poder ver Mick Jagger, Keith Richards, Peter Townshend e outros no traço de Robinson é um presente inestimável que a hq nos dá. Provavelmente essas foram as páginas que eu mais levei tempo olhando, examinado cada detalhe. Outro grande momento acontece quando é mostrada a tumultuada turnê dos Beatles na Indonésia. Para contar essa história Kyle Baker assume os “pincéis”, fazendo um belo trabalho ao narrar os eventos na linguagem dos antigos desenhos animados da banda.
Para a nossa sorte a editora Aleph trouxe essa premiada hq ao publico brasileiro numa edição luxuosa, do jeito que o material merece. Em tamanho maior do que o formato americano comum; com proporções um pouco menores que os álbuns europeus. O papel e a impressão – ambos de primeiríssima qualidade – garantem que a arte de Robinson e Baker possa expor todo o seu potencial. Sem falar na quantidade enorme de extras que explicam um pouco do processo criativo dos artistas envolvidos, e das notas para a edição brasileira que ajudam muito a entender certas referências. O Quinto Beatle vale cada centavo investido, especialmente se você for um beatlemaníaco, nesse caso ela é uma obra imprescindível.