O groove cerebral de Thiago Espírito Santo, completa 25 anos, e antes do show de comemoração batemos um papo sobre desenvolvimento musical!
A música passa uma sensação de urgência muito latente. É a trajetória do músico, desde o estudo, passando pela vivência nos palcos e os perrengues da vida, tudo ali, exposto nos falantes. É a voz do instrumentista.
É importante compreender que o processo para se construir tudo isso não é rápido. O estudo requer tempo e continuidade. É primordial se entregar e compreender a necessidade de reviver certas rotinas, justamente para que se consiga cumprir os objetivos traçados. É essa experiência que vai guiar o músico, é esse ímpeto criativo e o esforço que vão cada vez mais influenciar a maneira e a clareza com que as coisas são vistas e feitas.
Por isso que fazer um show é sempre uma nova oportunidade de exercitar o som e seguir evoluindo com a mentalidade de quem entende a importância do processo de evolução e de construção, não só da musicalidade em si, mas do ser humano.
Quando era pivete me lembro de assistir vídeos de diversos artistas e pensar: “nossa, como esse cara toca, é absurdo a facilidade”. Com o passar do tempo, os anos de pesquisa e de experiência ouvindo os discos, fica claro que existe um algo a mais. É o estudo, prática com banda, pesquisa, vivência… Tudo isso molda o caráter do ser humano e o som do artista.
Parece um déjà vu, mas é só o resultado de muito trabalho e é muito interessante sentar para reavaliar isso depois de alguns anos no corre. Pense no Thiago Espírito Santo, por exemplo, exímio baixista e produtor, o multi instrumentista completou 25 anos de carreira e não poderia ter comemorado de forma melhor.
Com um show no Bourbon Street – dentro do projeto Jazz.Br – o músico levou sua banda de notáveis para explorar canções de seu repertório, promovendo um sinuoso, porém belíssimo passeio por sua discografia. Num set cirúrgico de pouco mais de 90 minutos, o espetáculo ainda contou com a luxuosa participação de Airto Moreira e Flora Purim, dois dos maiores ícones da música brasileira e o resultado foi uma noite no mínimo memorável.
Com um quarteto formado por ele, Cuca Teixeira (bateria), JP Batista (saxofone) e Bruno Cardoso (piano), o baixista trouxe um pouco da atmosfera do show realizado ao lado de Flora e Airto no SESC Vila Mariana, só que dessa vez teve o seu próprio repertório como carro chefe.
O resultado foi primoroso. Thiago e Cuca formam uma das sessões rítmicas mais cavernosas que assisti ao vivo. A facilidade do Cuca, a capacidade técnica e todo o contexto de tocar para a banda criaram uma dinâmica muito interessante no grupo e deram outro vigor para as composições do baixista. Seja roncando no fretless ou solando, a banda de Thiago estava absoluta “tight”, como dizem os americanos.
JP (saxofone) chegou depois de fazer alguns shows com o Hermeto na França e Estocolmo, mas apesar da correria sua performance foi irretocável. A unidade do grupo em si é absurda, o som é muito sólido e é notável como ele cresce, faixa após faixa, até o encerramento em êxtase total.
No piano, Bruno Cardozo fez um trabalho muito bonito, demonstrando uma facilidade que dialogava com todos os elementos presente sob o palco. É sem dúvida uma das principais bandas de instrumental no país hoje e assistir isso ao vivo sob a liderança do Thiago foi um relato sincero do que acontece quando músicos comprometidos, estudiosos e com um bom ambiente conseguem fazer depois de plugar os amplificadores.
Foi uma performance louvável, engrandecida pelas participações de Airto e Flora – em temas como “Silvia” (José Neto) e “Tombo” (Airto Moreira) – com destaque aos belos arranjos de Thiago & banda. Foram 15 anos sem assistir a senhorita Flora Purim tocando em solo brasileiro. É um imenso fato histórico e que, tanto no SESC quanto no Bourbon Street, contou com uma banda inspiradíssima e extremamente preparada.
Nós tivemos a oportunidade de conversar com o Thiago Espírito Santo antes do espetáculo e entre todos os tópicos abordados, foi interessante perceber como o show é um relato fidedigno de toda sua visão musical. O show foi lindíssimo, as participações quase históricas, mas o que fica é a imagem e o som de um artista que após recém completar 40 anos de idade e 25 anos de carreira, segue ávido por seguir evoluindo e quem já assistiu o cidadão tocar sabe o quanto isso é louvável.
É uma aula em diversos aspectos musicais, quase uma “masterclass”, mas o que poucos ressaltam é como isso também revela um pouco sobre o lado humano não só do Thiago, mas de todos que estavam tocando com ele. O Cuca, JP Barbosa e o Bruno Cardozo são músicos excelentes e é muito bonito assisti-los justamente por isso, pois além de todos tocarem em diversos projetos, você sabe que no fim do dia eles estão ali pelo som. É a música pela música, do jeito que tem que ser.
Confira o nosso bate papo com o Thiago:
Guilherme Espir (Oganpazan) – Thiago, seu som possui 2 pilares muito fortes no quesito harmônico e rítmico e eu queria entender como isso ajudou você a tocar sem amarra estética, orbitando diferentes universos de uma forma interdisciplinar?
Eu acredito que a arte é como a vida, não existe um dia um dia igual o outro. Não tem por que ficar repetindo, sabe? A música instrumental não é uma repetição. Lógico, o assunto pode ser o mesmo, mas as reflexões e interpretações que nós fazemos em relação à aquele determinado assunto, vai sofrer algumas variações, vai passar por algumas evoluções, digamos assim.
O nosso vocabulário melhora conforme nós estudamos a literatura, com universos que agregam informação, nós vamos aprendendo dessa forma e com a música não é diferente. O vocabulário rítmico, melódico, harmônico… As dinâmicas, as pausas… Eu aprendi muito vivendo, então eu tento passar esse aprendizado pra música.
O fato de não ser um baixista que faz sempre o mesmo groove e a mesma linha, me faz sempre estar em busca de reinventar o meu som. Existe um processo padrão ali, mas você sempre pode se aperfeiçoar e também vai muito do jeito que você se posiciona.
Em termos de abordagem?
Sim, a música tem muita relação com o modo que você toca também, a energia é muito importante ou você pode tocar por tocar. A música tem esse poder de convencimento. O som, indo para o lado metafísico, aquilo é uma frequência. Pega o Wayne Shorter ou o Hermeto na escaleta fazendo um dó…
Aí você vê que não é qualquer dó hahaha
Exatamente, ele consegue imprimir energia ali. Hoje mesmo eu estava ouvindo um disco da Elis Regina que eu nunca tinha ouvido. É um disco de 1966 (“Elis”) que eu nunca tinha ouvido, Eu gosto muito de abrir o Spotify e procurar coisas novas, sabe? O disco com uns arranjos legais pra caramba e a mulher cantando muito e eu nunca tinha ouvido. É importante estar em contato com coisas diferentes e ouvir o som sempre com a cabeça aberta.
Não existe música ruim ou boa. Existe o bem tocado e o mal tocado. O mal tocado eu aprendo bastante, aprendo o que não fazer.
Sim, acaba sendo uma aula.
Exato, nós sempre podemos tirar algo de positivo, então acho que esse meu lado inquieto ajuda a me manter vivo e em movimento. Eu não vou me amarrar num padrão. É claro que existem padrões que eu repito em algumas músicas, até por que eu gosto disso, mas nunca vou fazer isso na música inteira.
É um jeito de não ficar previsível
Sim, eu trabalhei com música Pop uma época e foi uma experiência fantástica, mas o que pegava mais era isso, fazer o mesmo groove, do mesmo jeito, na mesma hora. Isso pra mim era desestimulante. É difícil o cara se manter motivado trabalhando assim.
Se manter criativamente satisfeito deve ser complicado.
O que rola é que muitas vezes a satisfação aparece de outra forma. Do ponto de vista financeiro por exemplo, o statius… À curto prazo isso é legal, mas conforme o mesmo passa você precisa de uma concentração maior pra manter o nível de energia. Tocar vira mecânico, mas manter o nível de energia fica difícil.
Deve ser até difícil evoluir pensando nesse aspecto.
Sem dúvida, é importante manter a paixão.
Guilherme Espir (Oganpazan) – Thiago, hoje tem muitos artistas – pensando tanto na cena instrumental quanto mainstream – que estão em busca da internacionalização, até antes de se consolidarem no Brasil. Como que você vê esse movimento?
Isso aí tem 2 lados que são muito delicados. Uma coisa é o music business, o negócio. Viver de música, ser reconhecido, é tudo uma questão do artista como profissional, o lado artistico é outra coisa.
Como é que você se comunica com pessoas do mundo inteiro? Não existe uma fórmula. O legal da internet é que ela rompeu a barreira. Ela conecta e se você sabe colocar isso na rede, bem produzido e quiser impulsionar, você consegue. O Facebook e o Instagram são ferramentas muto poderosas nesse aspecto de segmentação.
Hoje uma pessoa influente é quem possui informação. As pessoas pegam o celular 200 vezes por dia e está tudo na palma da mão. O som está na palma da mão, isso aproximou e as pessoas ainda estão descobrindo até onde você pode chegar.
O artista precisa saber até onde ele quer chegar. Iniciativa muitos tem, mas terminativa é algo que nem sempre está presente. O desafio aparece todo dia e isso é importante por que nesse ponto é como se fosse um processo seletivo, sabe? Quem vai ficar? Quem vai sair?
Existe todo um processo de construção.
Exatamente, são diversas etapas. Tem gente que faz isso rápido, pessoas com dinheiro e expertise, por exemplo. Se você investir uma grana no próximo disco do Yamandú Costa, Hamilton de Holanda, Amaro Freitas ou até mesmo um disco meu, você vai ter um começo, meio e fim com objetivo traçado e se você sentar pra conversar com cada um de nós, a gente sabe o que está buscando.
Mas por que isso? Nós não estamos no nosso primeiro disco, já vivemos, sabe? Como que o Chick Corea tem aquela agenda, aquele vigor e aqueles projetos? Ele tem uma equipe por trás. Tem o lado internet, mas também possui o outro lado, que é o ponto de vista do conhecimento.
A própria profissionalização mesmo.
Exatamente, em termos de estrutura é muito importante. Mais importante que isso é pra quem você está direcionando isso. Meu disco novo foi pensando dessa forma, as faixas tem nome em inglês por que eu estou visando o mercado mundial.
E você já lançou um disco nos Estados Unidos antes, já possui essa visão.
Claro, agora você imagina se a música chama “o aipim e a macaxeira”. Imagina um cara lá na Polônia falando isso. Os puristas vão falar que eu sou paga pau de americano, mas é tudo uma questão de se comunicar com mais pessoas.
Você pensa em termos de penetração de mercado né, é a questão de ter perspectiva.
Sim, o grande lance é aproximar o público. Você precisa levar em consideração que hoje a música é bem mais pulverizada. As vezes você gasta uma grana com músico, técnico e mixagem e isso se transforma num investimento que demora pra voltar. Quanto você ganha do Spotify por mês? É uma conta que não fecha, é um investimento, então você precisa saber se apresentar.
A relação com o mercado mudou e é essencial que o músico entenda isso. Identidade sonora… Você precisa começar a sacar isso. É necessário planejamento e saber o resultado que você busca. O artista é um maluco visionário.
Guilherme Espir (Oganpazan) – Thiago, assisti o show que você fez com o Hamilton de Holanda (bandolim) no HH4, tocando o “Harmonize“, ao lado do Edu Ribeiro (bateria) e Daniel Santiago (violão). Pensando no Jazz e no Choro, como você vê essa fusão?
A música é universal, já dizia o Hermeto, nós rompemos barreiras. A primeira coisa é que são brasileiros tocando e brasileiros que gostam de tocar esse repertório. Tem uma questão de experiência e facilidade que é muito importante também. Tinham algumas passagens que eu queria morar naquele compasso e tocar com aqueles caras, ali, sabe? A vivência é um pilar muito importante.
Sim, altíssimo nível.
E isso chega no público.
A abordagem ficou muito orgânica no disco e no show, isso que eu achei massa.
Mas pra chegar nisso precisa viver o processo.
É o que você falou sobre saber onde quer chegar.
Exato, isso é essencial.
Guilherme Espir (Oganpazan) – Thiago, hoje na música instrumental tem aparecido diversos músicos e em todas as posições. Baixo, bateria, guitarra… Enfim, como você enxerga isso, pensando em termos de construção de cena? Hoje você tem menos lugares pra tocar e eu acho que ainda existem desafios, principalmente em termos de se aproximar do público. Qual você acha que é o maior desafio pra essa galera?
A ansiedade. Hoje o cara coloca um vídeo no Youtube… O Snarky Puppy, por exemplo. Ele assiste um material legal pra caramba, bem produzido, mas ele não para pra pensar que eles começaram carregando equipamento, entende?
Meu primeiro baixo custava 130 reais e era o que eu tinha. Foram anos tocando com ele, mas era o que eu tinha. Eu fui melhorando de forma gradual, mas não foi da noite para o dia. Eu gravava umas fitas pra ficar me escutando, sabe?
Às vezes eu ia tocar em trio, tinha uns 14 anos anos de idade. Dava 16 reais de couvert e nós íamos comer um lanche.
Hoje já não dá pra fazer mais isso hahaha.
Sim, eu sabia que precisava tocar, precisava viver. Eu não conseguia manter o groove no metrônomo, sabe? Aí fui tocar Forró, Pop, Jazz… Fui tocar pra conseguir recurso. Eu fiz 40 anos antes de ontem e estava pensando na quantidade de coisas que já aconteceram.
Hoje em dia é diferente, eu olho para a partitura e vejo o som do acorde sem precisar tocar ele.
São 25 anos de experiência né.
Sim, a experiência acontece e a internet mostra as coisas de uma maneira muito imediata e é importante você entender que isso vai levar tempo.
Você quer tocar samba? Eu não vou dar Monk pra você ouvir. Precisa estudar e assistir. Vai ouvir Cartola, Beth Carvalho… Existe a vida real e a vida digital. É inviável você conseguir um resultado real vivendo dessa forma.
Guilherme Espir (Oganpazan) – Você como multi-instrumentista, produtor… Pelo fato de já ter passado por tanta coisa, como você acha que isso ajuda você em termos de visualizar o todo?
Esse senso estético aparece com o tempo. É importante observar e se colocar no lugar de quem toca. Quando você se coloca no lugar do músico, aí sim você consegue entender o que a música precisa.
Sim, é exatamente esse referencial.
Conseguir tirar o ego da frente é muito importante também. É uma parte primordial no processo, você ter tato e saber como conversar, entende? A música é feita disso. Eu estou mixando o disco novo e estava conversando aqui sobre esse processo de entender o que nós precisamos nas faixas.
É um processo longo, vai e volta, depois você vai tomar café. Não é ouvir uma vez só e finalizar, sabe? É importante estabelecer o diálogo.
É você valorizar o seu próprio trabalho.
Guilherme Espir (Oganpazan) – Thiago, pra fechar, muito obrigado pela atenção. Isso é um lance que eu sempre pergunto para os baixista. Como você define o groove?
O groove é a levada da música, a estrada. A harmonia é a paisagem, o cenário. O groove é o carro… Então como que é? Vai ser um groove mais relaxadão, com os bancos pra trás?
Existem várias possibilidades, desde aquele groove que você escuta o dia todo e outros que já não encaixam tanto pra você.
Esse negócio que eles chamam de swing, pelo menos pra mim é mal estar. É questão de gosto.
É o que você falou né, à partir do momento que você sabe o que você quer, é questão de liberdade optar por não visitar isso.
Exatamente, o baixo manda na harmonia. Ele que vai mostrar pra onde você vai olhar. Ao mesmo tempo, o baixo pode ser escondido. Na década de 60, por exemplo, era tudo questão de acompanhamento e conforme os músicos evoluíram e estudaram, as coisas mudaram, você entra em diversas esferas estéticas e o baixista precisa entender isso: o que a música pede e não o que ele quer fazer.
É isso que é um bom groove, construir algo que enalteça a música. Sempre.
-O groove cerebral de Thiago Espírito Santo completa 25 anos… Entrevista
Textos e Fotos por Guilherme Espir