Don L e sua obra são examinados em artigo do pesquisador Marcos Roberto Santos Pereira que propõem uma chave de leitura interessante!
Permeia pela obra do rapper Don L um senso cosmopolita bastante singular. Em vez de um cidadão do mundo, para o qual as fronteiras geográficas, políticas e culturais são artificialidades humanas, e que justamente por isso o sentido de conforto se torna extremamente amplo, Don L sente um desconforto universal. Não importa onde esteja, qualquer lugar é estranho a ele e vice-versa. Consequentemente e de forma paradoxal, ele se sente confortável em qualquer canto, à medida em que o desconforto é seu estado de espírito imutável. Mas comecemos por partes, afinal, quem diabos é Don L?
Nascido Gabriel Linhares da Rocha, Don L é um rapper de 42 anos de idade nascido em Brasília. De família nordestina a trabalho na capital, com 2 anos de idade, Gabriel se muda pra Fortaleza e por volta dos 20 começa a fazer parte da ONG Movimento Cultura de Rua do Ceará. Na instituição, Gabriel desenvolve majoritariamente trabalhos de produção, apesar de já ter letras escritas. Isso porque, nas palavras do próprio Don L, sentia uma certa ressalva pelo fato de seus versos terem um aspecto mais suburbano que político, diferente do rap nordestino tradicional. É dessa época que surge o álbum “De Costa a Costa” que unia dois grupos de rap cearenses, o Plano B e o Brigada Sonora de Rua (B.S.R.), um da costa leste e outro da costa oeste de Fortaleza.
Na época, Gabriel se chamava Don Loco e era integrante do Plano B junto com Junior D e foi um dos produtores do disco, enquanto no B.S.R, eram integrantes Preto B, Preta Manu, Leo Cabral e Nego Gallo, este que foi o co-produtor. Não muito tempo depois e incentivado pelo presidente da ONG Movimento Cultura de Rua do Ceará, um sujeito chamado Preto Zezé, DonL se torna MC e se junta a Nego Gallo para fundar o Costa a Costa.
Com o Costa a Costa, Don L, Nego Gallo e os outros integrantes do grupo fizeram um álbum intitulado “Aonde Fortaleza Neva”. Após conseguir disponibilizar o material pra um dos Racionais MC’s, o KL Jay, e o mesmo ter respondido a respeito da qualidade do álbum e do que tinha dado certo ou errado em sua produção, o projeto foi descartado, mas não por completo. Algumas músicas são aproveitadas, outras jogadas no lixo e várias criadas do zero. Com isso, o Costa a Costa chega à mixtape que levou o grupo ao palco do Prêmio Hutúz: “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa”. A tape os levou a ganhar o prêmio na categoria Melhor grupo norte-nordeste em 2007.
Desde então, o grupo se desfez e Don L iniciou sua carreira solo. Atualmente, a sua discografia conta com a mixtape ‘Caro Vapor: Vida e Veneno de Don L”, dois álbuns: “Roteiro para Aïnouz Vol. 3” e “Roteiro para Aïnouz Vol. 2” (doravante chamados RPA3 e RPA2), alguns singles e diversos feats com grandes nomes do rap e do trap; e sim, por incrível que pareça, RPA 3 é o primeiro álbum dele, mas isso é assunto para outro momento. É justamente
durante essa produção que esse senso avesso de cosmopolitismo começa a se apresentar, mas o que seria isso?
Recentemente, Don L participou do Podpah, provavelmente o maior podcast do Brasil atualmente e nos minutos finais de sua entrevista, ele solta a seguinte frase: “[…] eu não me adaptei a São Paulo porque eu não me adaptei a Fortaleza, eu não me adaptei ao Brasil, eu não me adaptei ao mundo que eu vivo […]”. De forma contraditória, justamente por causa dessa não adaptação, ele é extremamente bem adaptado a qualquer canto, e o mesmo reconhece: “[…] por causa disso, eu sou adaptado ao mesmo tempo, porque o não lugar, a não adaptação é o meu estado de espírito[…]”. É a este estado de espírito que a gente chama aqui de cosmopolitismo às avessas. E não faltam exemplos dele na carreira solo de Don L.
RPA 3 inicia com a faixa ‘Eu não te amo’. Um feat com Diomedes Chinaski e que versa basicamente sobre a falta de autenticidade do rap. No interlúdio da música, cantado em dueto, é dito o seguinte: “[…] no veneno da paixão…quando cê só aceita o sonho…quando eu era mais um estrangeiro aqui do que ainda sou…e já sabia que não pertencia ali também, saca? […]”. Na terceira faixa do álbum, intitulada ‘Aquela Fé’, Don L canta: “[…] eu tô cheio desse vazio, poluído por corpos. Eu num sou daqui. Minha alma é livre e eu não me comporto. Eu quero aquela fé de volta.”.
Em RPA 2, por outro lado, essa temática não é abordada, pelo menos não da mesma forma. Aqui, contudo, cabem algumas explicações. Durante o texto falamos de RPA3, RPA 2, mas uma dúvida que obviamente se levanta a partir desses títulos é: como assim o terceiro volume vem antes do segundo?!; e por que não há o primeiro volume? De fato, num primeiro contato, isso estranha, mas os álbuns citados fazem parte do que Don L chama de trilogia revessa. Uma sequência de álbuns que emulam filmes autobiográficos. Então, o que vemos ser feito com essas obras é o retrato da vida do rapper. E o caminho que ele está fazendo é algo próximo ao do seu êxodo para a cidade de São Paulo saindo de Fortaleza e do Costa a Costa para lançar sua carreira solo. Começando do fim para voltar ao início, como uma maneira de ressignificar o passado a partir do presente, segundo palavras do próprio Don L no Podpah.
No RPA 3 então, o rapper já estaria na “capital cultural” do país, o momento atual em que está fazendo suas músicas e reverberando na cena. Por outro lado, no RPA 2, o que está em jogo é a descrição da migração do Don L para São Paulo. De uma forma bastante abrangente, para que consiga se comunicar com outras realidades, o álbum se reveste de uma roupagem e estética revolucionárias, mas sempre tendo como plano de fundo e base o movimento e as motivações que o raper teve para sair do Nordeste em direção a SP e impressões de seu contato com a cidade. Daí os versos em ‘Contigo pro que for’, do RPA 2 dizerem o seguinte: “O que é ser marginal aqui? Eu já era marginal de onde eu vim, que é à margem dessa capital entre marginais.”. E, junto a toda distância que o separa de sua terra natal, se faz presente também a incompreensão e o impacto que uma cidade deste porte pode causar, por isso, em ‘a todo vapor’, a primeira faixa propriamente dita do álbum, Don L diz: “Subestimado. Um nordestino em São Paulo. Chama pouca atenção, tamo em todo pico (corre do cash cash). Sei que elas fantasiam o bandido, três minas na benz me mandando vídeo. Eu em outro carro, desculpa o preço é mais caro. Fumê no vidro. Me sentindo tão grande, embora invisível.”
Então, por mais que esse desconforto e aversão desta vez sejam localizados e não universal, eles estão sendo representados. E mesmo que os motivos sejam diferentes de acordo com o local e até o sentimento se manifeste de diversas formas por conta disso, o que há por baixo dos panos é um inconformismo universal.
Rastrear o motivo pelo qual Don L se sente dessa forma é extremamente difícil, mas algumas músicas parecem nos dar uma pista, vestígios de que esse estado de espírito ultrapassa os limites do cosmopolitismo às avessas e engloba não apenas o mundo em que vive, em um sentido geográfico cultural, mas aspectos subjetivos fundamentais e definidores do seu ser, seja lá o que isso signifique. Em ‘Aquela fé’ do RPA 3, Don L demonstra algumas contradições que ele comporta: “Eu sou comunista e curto carros. Eu quero vencer e faço amizade com fracassados.” e também: “Inspirado no irmão que me vendia droga. Eu vendia droga pra uns cara que vendia drogas. E queria a rima no fone dos cria, como se cria o vírus na empresa que vende a vacina”.
E mais, para além dos álbuns, existe também um single em específico e dois feats que demonstram a mesma coisa. Primeiramente, o single ‘Não escute meus raps’, é um exercício de desconstrução completa da imagem que ele pinta de si mesmo em outras músicas: “Ei, não faça o que eu digo, nem faça o que eu faço. Se você vir comigo, vai achar tudo um saco. Eu não gosto de nada, esse guru é falso, esse rolê ruim e fraco, é tudo puro status. Eu sinto como se eu não fosse dessa cidade. Eu sinto como se eu não tivesse uma nacionalidade. Olha que merda que é a porra do meu bairro. Essas ruas em guerra, essa música ruim nos barraco. Olha que merda que é a porra do bairro nobre. A grana parece que deixa os cara mais pobre. Olhar no espelho e ver um coroa medíocre deve ser mais deprê que jingle de show de tv no domingo.”
O primeiro feat, por sua vez, é pra uma música do Rashid, mc paulista, que ganhou fama na mesma geração de Emicida, com outra participação do Amiri, mc paulista também, mas muito subestimado. Nos seus versos Don L afirma basicamente estar cansado de tudo, inclusive da música na qual está participando: “Cansado de coaches. Cansado de posts. Cansado de estar sempre cansado e cansado de dor. Cansado desses traps, baby. Cansado desses boombaps falando desses traps, tipo esse. Cansado desse rapper Don L.” No final, contudo, ele subverte a conotação que vinha atribuindo ao seu cansaço e percebemos que não se trata de algo paralisante, muito pelo contrário: “Tão cansado de tudo, que eu sou todo disposição pra morrer botando abaixo essa porra.”. E o segundo feat, na música ‘Blogueira’ do Froid, Don L diz: “Cê mergulhou no meu feat OG, ID, meio nerd, meio B.I.G, meio cash cash, meio comunista, meio foda-se o mundo, meio green peace.”
Assim, parece haver uma contradição inerente ao ser Don L, um estado de não palatabilidade de tudo. Nada pra ele é bom o suficiente, mesmo as coisas que ele gosta saturam e isso gera contradições quase inconciliáveis, muito frustrantes e desapontadoras. Don L não gosta de nada, e mesmo as causas que defende tem suas contrapartes. Se no início ele não se sentia confortável no rap por fazer letras muito gangstas e não políticas, como o mesmo diz, hoje em ele é um dos maiores símbolos do rap político. E se por um lado ele é realmente um defensor de suas pautas políticas, por outro se sente traidor das mesmas. “Meio foda-se o mundo, meio green peace” “eu sou comunista e curto carros”.
Tá, então Don L se entende a partir de um cosmopolitismo avesso, que faz parte de um conjunto de outros aspectos que o definem, mas porque falar disso é relevante? Bom, porque não é apenas a ele que essas características podem ser atribuídas. Sua música também parece ocupar esse espaço nublado de cosmopolitismo às avessas, mas para entender como isso acontece, nós precisamos retornar ao RPA3, RPA2, ao tempo do Costa a Costa, à mixtape Caro Vapor, à geração do rap à qual Don L pertence e outras miudezas mais.
Voltando ao início, Roteiro para Aïnouz Volume 3, música “Fazia sentido’: “Eu tô nesse jogo por um bom tempo…e eu nem gravei um disco…eu lembro do Caetano me entregar um prêmio, de melhor do nordeste. O que diz sobre isso? É que não tinha uma categoria pro Sul, então era tipo esmola pra segunda divisão, tru, mas eu nunca comi partido”. Aqui, a referência é ao prêmio Hutúz recebido em 2006 pelo Costa a Costa na categoria de melhor grupo norte nordeste. Então, mesmo que a premiação ateste o reconhecimento do Costa a Costa, e consequentemente do Don L, ela posiciona a música do grupo em um local à parte da produção nacional, esta que por sua vez entra nas categorias de melhor do ano, melhor grupo do ano e etc. Com isso, é possível dizer que a música do Don L pode até ser nordestina, mas não brasileira. E que o que ele faz pode até ser rap nordestino, mas não é rap.
Aqui reconhecemos que essa situação do prêmio Hutúz se refere a uma época em que a cena de rap realmente não era tão produtiva quanto hoje. Apesar disso, é em 2017 que Don L tá rimando a respeito disso. Os efeitos dessa subvalorização contraditória do rap nordestino ainda são sentidos por ele. Mesmo em 2017 sua música parece não se sentir confortável em nenhum espaço. E exemplos de que isso permaneceu durante toda a carreira do Don L não faltam.
Em ‘Caro Vapor’ temos uma das frases pelas quais Don L é sempre lembrado: “E se eu não for seu rapper favorito, eu provavelmente sou o favorito do seu favorito.”. Aqui, o que tá sendo representado é a falta de visibilidade que Don L vinha tendo desde o Costa a Costa, advinda do público do rap. Os artistas da cena, por outro lado, conheciam, respeitavam e admiravam bastante o trabalho feito no grupo, alguns até sendo influenciados. Diante disso, mesmo que os artistas cedessem espaço e holofote para as rimas do favorito do seu favorito, elas nunca chegariam da maneira adequada, isto é, de modo que o próprio público reconhecesse a grandiosidade de Don L. E mesmo o fato de ser reconhecido por artistas da cena não significa muito quando são eles mesmos que se favorecem da sua invisibilidade. Sua música, ao mesmo tempo que influencia, é ignorada e até desrespeitada. E a respeito disto, a faixa ‘fazia sentido’ também nos traz versos: “Producer, fã do nordestino maldito, lança uma cópia. Lástima. Inspira meu instinto pior. Chacina. Deixa eu fazer o meu exercício.”. E, se não tiver ficado claro o suficiente, Don L é o nordestino maldito.
Aqui cabe lembrar o ano em que nasceu e a idade que tem o nosso rapper. Como dito anteriormente, Don L tem 42 anos de idade, nascido em 1981. Agora vamos fazer algumas comparações. Emicida, tem 37, nascido em 1985. A diferença entre eles é pouca e é possível afirmar que eles são da mesma geração. Ao contrário de Emicida, contudo, que teve uma fama estrondosa há ao menos 10 anos atrás, só agora, após o lançamento de RPA2 em 2021, é possível dizer que Don L alcançou um grande patamar de fama. Exemplo disso é o que temos nesse mesmíssimo álbum, em ‘todo vapor’: “Deslanchar a carreira com meia idade, nah, duas idades, na verdade”. E por mais que a discografia do Emicida seja bem mais extensa, temos que nos perguntar o quanto isso também não faz parte do problema. Ele mesmo já afirmou que se tivesse condições financeiras suficientes, lançaria um álbum por semestre, mas o fato é que entre RPA3 e o 2, se passaram 4 anos, e o mesmo ocorreu entre ‘Caro Vapor’ e RPA3.
Para encerrar a lista de exemplos, é importante falar de um extremamente peculiar. Uma coisa que pouca gente lembra ou sabe sobre Don L é que ele participa de uma música junto com Black Alien, o grande Mister Niterói, rapper, Paulo Miklos, ex-vocalista do Titãs e Pepe Cisneros, músico de jazz, que participou da produção da música. Essa mistura completamente inusitada se torna surreal quando sabemos que a união se deu para a trilha sonora de um filme nacional chamado ‘O escaravelho do diabo’, adaptação de um livro brasileiro e com atores globais. E isso, antes de RPA3.
Então, não só a pessoa do Don L é portadora desse cosmopolitismo avesso, mas também sua música. Como dito anteriormente, ela pode até ser nordestina, mas não brasileira; pode até ser rap nordestino, mas não é rap. Por mais que seja o favorito de grandes mc’s, ele não chega ao mesmo público, num sentido quantitativo, e é até prejudicado por alguns desses fãs. Pode até ser da mesma geração que o Emicida, mas tá fazendo sucesso na mesma época que uma geração 20 anos mais nova e que canta coisas completamente diferentes. E, por fim, conseguiu até fazer parte da trilha sonora de um filme nacional, quando nem havia lançado seu primeiro álbum, e ainda assim ser quase invisível naquela época. A música do Don L também não se sente confortável ao lugar em que está, e vice-versa. A cena do rap parece não se sentir confortável com a música dele também, o nordestino maldito.
As coisas já começam a ficar mais óbvias por aqui e xenofobia é um dos motivos que o próprio Don L no podpah reconhece como determinante para tudo isso. Mas esse é um problema ainda maior. Não envolve apenas a música do Don L, mas também o rap nordestino em geral (afinal poucos são aqueles que entenderam Sulicídio), a figura do nordestino/da nordestina (cito Don L mais uma vez: “eu vim pra mudar o jogo, não pra ser um boneco exótico e forjar um sotaque meio robótico”) e o Nordeste em si, lembrado por diversas coisas como suas praias e comidas típicas, mas não por dominar, junto com o Norte, o ranking da violência no país. Mas esse texto já tá longo demais e muitas coisas foram ditas. Aqui, basta reafirmar que é por isso que o cosmopolitismo às avessas do Don L é tão importante, ele é, digamos assim, uma chave de leitura não só da pessoa Don L, enquanto alguém completamente inconformado com o mundo em que vive, mas também de sua música, enquanto deslocada da cena. Assim, não só o artista, mas também a sua música, compartilham desse desconforto universal. E, se por um lado, o cosmopolita é um cidadão do mundo, o cosmopolita às avessas é estrangeiro mesmo em sua terra natal. Obrigado.
-O Cosmopolitismo às avessas do Don L
Por Marcos Roberto Santos Pereira