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O Blues visto por Robert Crumb

Nostalgia, passado e presente da música:  O Blues visto por Robert Crumb

Robert Crumb ama a música. Bom, talvez essa afirmação não seja totalmente verdadeira. Provavelmente seria mais justo dizer que Robert Crumb ama determinado tipo de música. A referencia musical do célebre quadrinista é a folk music, seja ela o folk enquanto gênero musical, tal qual feito por Woody Guthrie, Joan Baez e Bob Dylan (em seus primeiros anos de carreira), seja o country blues. Do meu ponto de vista a compreensão de Crumb do que seja música folk é o mesmo que os “xaropes” aqui no Brasil chamam de “música de raiz”. Pra ser sincero citei os três nomes acima como representantes do gênero folk, mas existe o risco de que mesmo estes não sejam considerados folkers por Crumb.

Assim como os defensores brasileiros da chamada música de raiz, Crumb considera a música folk americana o único tipo de música que pode ser considerado “música de verdade”. Na história As Velhas Canções São as Melhores ele defende exatamente o que sugere o título. Defende a velha ideia transmitida geração após geração de que antigamente é que as coisas eram boas. Embora essa ideia seja repetida mecanicamente por todo canto onde vivam pessoas de “antigamente” Crumb vai além do senso comum. Não se trata de rabugice contra tudo que seja “moderno”. É preciso ver o que está além da superfície da história para encontrar a verdadeira intenção de Crumb, que é mostrar o empobrecimento da música através da consolidação da indústria fonográfica.

O rock´n roll, assim como o rhythm and blues, está entre os eventos responsáveis por ajudar a criar e consolidar a indústria fonográfica nos EUA. O sucesso dos artistas ligados a estes estilos musicais, aliado ao aperfeiçoamento comercial e técnico da gravação dos discos levou o mercado musical para outro estágio: o surgimento da indústria fonográfica. Portanto, o rock e todos os desdobramentos musicais a partir de seu surgimento não passam de música de má qualidade, caso sigamos esta linha de raciocínio. Precisamos entender que o ponto de vista defendido por Crumb é radical. Quer dizer, ou toda música produzida atualmente é boa ou ruim, ao menos nas histórias compiladas em Blues não há registro de algo feito a partir do final dos anos 50 considerado de qualidade por Crumb.

Particularmente não concordo com essa radicalização feita pelo quadrinista. Certamente há coisas boas e ruins tanto em um período quanto em outro. Mas não há como discordar que a massificação, a padronização e a produção industrial dos discos dissolveu quase completamente a criação (no sentido forte do termo) em detrimento do lucro. O problema de Crumb é justamente com o produto desta nova indústria. Primeiramente detona os musicais da Broadway, depois a black music da Montown e finalmente o rock psicodélico dos anos 60.

Todos nós passamos diariamente pelo drama de ter algum hit de péssima qualidade incrustado em nossa mente e que acaba sendo a trilha sonora de muitos dos nossos dias. Quem nunca se pegou cantarolando uma melodia detestável mecanicamente e praguejou contra si mesmo por fazê-lo? Essas músicas parecem funcionar do mesmo modo que areia movediça, quanto mais você se esforça para extraí-la de sua mente, mas ela afunda. Para Crumb este efeito é causado por músicas veiculadas pela indústria fonográfica, preocupada unicamente com a vendagem de seu produto. Crumb nos pergunta quais imagens surgem nas nossas mentes quando não conseguimos nos livrar delas e temos que suportar sua repetição incessante ao longo dos dias. Ele apresenta as imagens que vem à sua mente usando como exemplo três músicas, que são as três partes que compõem As Velhas Canções São As Melhores.  

A primeira é o musical da Broadway chamado On The Street Where You Live (Na rua onde você mora). O fio condutor são sempre as letras das músicas. A superficialidade dessas letras fica ainda mais realçada quando Crumb as transforma em imagens. On The Street Where You Live retrata o comportamento de um homem apaixonado caminhando pela rua onde mora a mulher que ama. O sujeito age como se vivesse no mundo dos babacas sorridentes, tecendo os mais delirantes elogios a cada canto da rua onde passa, simplesmente por se tratar da rua onde vive o amor de sua vida. Qualquer um lendo essa história passará a ver o amor com outros olhos, como algo detestável capaz de transformar qualquer um no mais completo idiota.

A segunda parte da historia trás as imagens geradas pela letra da música My Guy (Meu Cara) do trio The Supremes na mente de Crumb. Cada quadro mostra o quão o tal cara da mulher da letra é precioso pra ela. As imagens mostram uma repetição constante de supervalorização do “cara” por sua mulher e a obsessão doentia que ela nutre por ele. Juro, espero jamais ser “o cara” de mulher nenhuma! A terceira parte traduz em imagens a letra de Purple Haze (Névoa Púrpura) do Hendrix. Os desenhos mostram o que acontece quando se resolve escrever uma letra sobre efeito de alguma droga alucinógena. Vemos Hendrix cantando doidão narrando sua viagem alucinada que pode fazer algum sentido pra ele, mas para os demais não passa de uma sequencia desordenada de quadros. O humor corrosivo, irônico e debochado de Crumb expõe esse lado pouco criativo do que ele chamada de música moderna.

A HQ na verdade começa com a história Patton – o bluesman, não o grande general da II Guerra Mundial. Através desta história Crumb conta como foi a vida de Charlie Patton tocando o blues de raiz, tendo em segundo plano a história de desenvolvimento do blues pré-indústria fonográfica. Tentem, assim como eu, relacionar esta história com As Velhas Canções São as Melhores. Enquanto a primeira critica a música feita sobre a gerência da industria cultural, Patton mostra qual a música feita antes dela. Trata-se do período em que o blues surge, quando o modo de produção e comercialização dos discos era feita sem que houvesse interferência no modo de tocar e compor dos bluesmen. Os sujeitos que resolveram gravar esses músicos tocando e cantando exploravam os caras, porém ainda sem possuir o know how da indústria que ainda estava por vir.

Para quem se interessa pela história do blues Patton é uma fonte preciosa. Isso devido à presença de nomes pioneiros do blues como Henry Sloan com quem Patton teve o primeiro contato com o estilo musical emergente. Outro fato marcante é o bluesmen desconhecido que W. C. Handy ouviu em uma estação de trem no Mississippi em 1903, de quem ninguém conhece a identidade. Crumb levanta a hipótese de que talvez seja o próprio Sloan. O blues do delta do Mississippi se desenvolve longe dos locais onde as primeiras gravações de blues foram feitas. Crumb atribui a Patton a glória de ser a primeira grande referência do blues. Segundo o quadrinista uma legião de bluesmen passaram a copiar o modo de tocar de Charlie Patton, entre os quais as grandes lendas do blues Son House, Howlin´ Wolf e Bukka White.

A lenda sobre o pacto com o diabo feito por Robert Johnson para que ele pudesse tocar como ninguém seu violão é contada na HQ como tendo acontecido primeiramente como Tommy Johnson. Três quadros da história são destinados a Robert Johnson. Nestes quadros o jovem Robert dava seus primeiros passos no blues tentando desenvolver seu estilo. Procura por Charlie Patton, Willie Brown e Son House a fim de aprender algo novo. Contudo, apenas consegue do trio seu escárnio e ridicularização do seu modo de tocar. De cabeça baixa, vitima de bulliyng, Johnson segue seu caminho para aparecer anos depois tocando como ninguém jamais tocara, deixando o trio de queixo caído.

A descrição da vida de Patton mostra as idas e vindas de um músico das primeiras décadas do século XX. Os altos e baixos de um gênio do blues cuja vida pessoal foi lubrificada pelo álcool, ditada pelo estilo de vida do vagabundo e pelos excessos das noitadas regadas a sexo e diversão. O fim da vida do lendário guitarrista é retratada na música Death, composta por Patton quando este pressentia que sua morte era inevitável. A tristeza na voz de Patton na canção resgata o significado original do blues, nascido junto com a música na colheita do algodão. O blues enquanto expressão de um sentimento experimentado através da dor mais aguda, aquela ligada diretamente à dor da alma. Não pude deixar de lembrar das palavras de Son House sobre esse significado original do blues e expresso em todos os seus detalhes na música Death de Charlie Patton. Leiam o que disse Son House sobre o que é o blues:

“O verdadeiro Blues não faz você pular. Se você se anima, não é Blues. Chamam de Blues, mas não é. O Blues se basta. Quando você está solitário e não sabe o que fazer. Pensando em quem você ama. Em pessoas que gostaria que fossem boas com você e você com elas, mas elas o decepcionaram. Você fica triste e não sabe o que fazer. Fica pensando onde elas estão, o que estão fazendo. Porque me decepcionaram. Eu confiava nelas. Fiz tudo, abri meu coração pra elas, tinha fé e confiança nelas, mas elas me decepcionaram. Agora você não sabe se as mata ou se chora de novo. Isso é o BLUES!”

Death não faz você pular, não te anima, leva você a compartilhar a dor, o desespero de quem espera a visita da morte. Este é o universo do blues trazido por Crumb e que o agrada.

Crumb também é conhecido por ter feito capas antológicas para alguns álbuns. Blues traz as imagens das capas cuja mais famosa certamente é aquela feita para o álbum Cheap Thrills da Big Brothers and Holding Company de 1968 pelo selo Columbia Records.

Talvez vocês não saibam, mas Blues não é uma HQ feita por Crumb como um projeto. Blues é a reunião de várias historias feitas pelo artista ao longo de sua carreira e compiladas em um único volume pelo fato de serem histórias que abordam o mesmo tema. A capa da HQ é na verdade a capa de um álbum dedicado às gravações de gaitas no blues durantes as décadas de 20 e 30 do século passado e feita por Crumb em 1973. Na seção de capas feitas por Crumb ela aparece, vejam:

A história É a Vida retrata a trajetória de Tommy Grady durante a vida e após a morte. O ponto forte da história é justamente as três partes que a compõem. A primeira trata do cotidiano de Tommy, sempre tocando o violão e bebericando algo, brigando com a mulher, buscando novas paragens até encontrar com dois amigos indo para Memphis gravar suas músicas em alguns discos. Tommy decide fazer parte da empreitada já que não tinha nada melhor pra fazer e consegue gravar sua música no que na época chamavam de estúdio de gravação de campo. Durante os anos precedentes à década de 30, empresários viajavam pelo interior dos Estados Unidos a procura de músicos. Levavam consigo os instrumentos necessários para gravar os caras tocando e cantando. Esse era o procedimento adotado que ficou conhecido como estúdio de gravação de campo.

Na segunda parte temos a discussão entre dois empresários sobre o fim desse costume por motivos de corte de gastos. Contudo esse corte não seria suficiente, precisariam fazer ainda mais. Como bons homens de negócio decidem usar como critério para manter ou não a produção e venda de determinada gravação a partir da vendagem. Entre os fracassos de venda estava a gravação da música de Tommy Grady. Pela baixa vendagem a música de Grady deixou de ser reproduzida. Chama atenção nesta parte a mudança observada por um dos empresários. Nada de ir atrás dos talentos escondidos nos recônditos locais do interior do país, chegou a hora de investir nos nomes já conhecidos e fazer os músicos correrem atrás das gravadoras. Os temidos tempos modernos de Crumb começavam a chegar.

Grady morrera logo após a gravação de sua música. Porém, ele renasce quando nos anos 70 um colecionador de discos raros viaja pelas cidades do Sul dos EUA em busca de novas aquisições para sua coleção. Trata-se do próprio Crumb. Ele olha para uma casa, a observação o leva à conclusão de ser aquela uma habitação de quem gosta de guardar e conservar seus pertences. Bate à porta e é recebido por uma velhinha. Negocia alguns discos com a senhora e quando retorna de viagem para sua cidade na Califórnia tem uma grande surpresa. Bota pra rodar um dos discos e se espanta com a qualidade do violão tocado na gravação. O selo revela o nome do bluesman, é Tommy Grady. Como nunca ouvira falar do tal bluesman liga para um amigo especialista em blues e pergunta se o cara conhece o tal Grady. A resposta negativa elevou o único registro conhecido de Tommy Grady ao status de Santo Graal do blues.

Nas historias Onde Foi Parar Toda Aquela MAGNÍFICA MÚSICA dos Nossos Avós e Porque será que ver Pessoas AGITANDO E REQUEBRANDO é Tão Repugnante para Mim?? Crumb retoma a tese segundo a qual a verdadeira música havia se perdido no passado e em seu lugar colocaram a “repugnante” música moderna. Mais uma vez a crítica à indústria fonográfica vem a tona. Na primeira história citada acima a tônica está em mostrar o grande negócio que se transformou a música e no quanto a qualidade musical se tornou o menos importante dentro desse mercado.

Na sequencia em que Crumb pega um jovem vestido ao estilo rebelde sem causa dos anos 50 para mostrar o quão vazio e imbecil é esse sujeito, o desenhista mostra todo seu desprezo pelo rock e tudo que vem junto com ele. Crumb além de sair na mão com o jovem roqueiro discute com seu empresário preocupado com os danos materiais causados pelo quadrinista em sua fonte de lucro. Nostalgia, ódio à música moderna, frustração por não haver mais a simples música folk das primeiras décadas do século XX, tudo isso faz parte do cardápio de Foi Parar Toda Aquela MAGNÍFICA MÚSICA dos Nossos Avós. E simCrumb responde à pergunta do titulo disparando: “Morreu junto com eles, é lá que foi parar”.

Já em Porque Será que Ver Pessoas AGITANDO E REQUEBRANDO é Tão Repugnante para Mim?? Crumb deixa claro que agitação e barulho não combinam com música de verdade. O Crumb rabugento e antipático surge em todas suas cores nestas histórias. Fica claro ao leitor se tratar da visão subjetiva do autor sobre a música. É preciso ler essas historias desarmado, sem levar ao pé da letra a visão do autor. Só assim é possível ver o humor presente no jeito dele expressar seu sentimento com relação à música.

Ufa! O texto cresceu além do que eu esperava e ainda faltam histórias para resenhar! Bom, vou apenas mencionar mais uma: A Maldição Vodu de Jelly Roll Morton! Este é apenas o sujeito que na cara dura disse ter inventado não só a palavra jazz como o próprio gênero musical. O interessante desta historia é que os desenhos foram feitos a partir da gravação do relato de Jelly Roll da própria vida feita diante de um microfone na Biblioteca do Congresso Nacional. A honra de gravar a história de Jelly Roll coube a ninguém menos que o famoso colecionador de música folk Alan Lomax.

Na história conhecemos o lado empresarial de Jelly Roll. Dono de um escritório onde empresaria bandas de jazz em Nova York, conhece um antilhano o qual contrata para fazer a contabilidade da empresa. Ao perceber que o sujeito roubava suas músicas e as vendia para outras empresas Jelly Roll o demite, contudo, antes de ir embora o antilhano joga uma praga:

Desde então a vida de Jelly Roll passou a ruir até sua morte doente e sem um tostão em 1940. Esta história é sombria, envolve vodu, bruxaria e supertição. Talvez a credulidade de Jelly Roll tenha levado sua mente a adoecer. Talvez ele tenha considerado mais fácil acreditar que a causa de seu fracasso tenha sido um feitiço ao invés de si mesmo. Fato é que a história deixa essa dúvida pairando no ar.

Não vou cansá-los mais. Leiam Blues, se divirtam, se irritem, se emocionem com suas histórias e com a personalidade difícil de Robert Crumb.

Abaixo o vídeo ao qual me referi em que Son House dá sua definição de blues:

Ficha técnica:

Titulo original: Robert Crumb Draws the Blues

Capa: Jonhathan Yamakani (com base em imagens do autor)

Preparação: Eduardo Okubaru e Leonardo Mnduca

Letras: Lilian ITSUNAGA:

Revisão: André Bruno, Naomi Yokoyama e Ricardo Kobayaski

Grafica: Ibep

Editora: Conrad

Edição:

Ano: 2010

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