A missão do Jazz é quebrar paradigmas. A tarefa do beat trompético, pianístico, bateristico, saxofonistico e da grooveria, é alterar a percepção. Enumere os grandes expoentes da música e veja: todos só consagraram-se devido ao caráter revolucionário de suas respectivas cozinhas.
O problema é que muita gente acha que isso acabou. Não vai surgir mais nada de desafiador na nova cena. Nenhum disco que lhe pegue pelo pé com uma fórmula de criar que volte a espantar as pessoas com a vitalidade que apenas uma novidade pode causar. Inocentes.
E sendo o Jazz um dos estilos mais transgressores da música (talvez o maior deles), não me espanta saber que um dos discos mais impactantes de 2015 esteja inserido neste panorama sonoro. ”Stretch Music”, quinto disco solo do fantástico Christian Scott (lançado no dia 18 de setembro), pra variar, é um sopro de ar fresco.
Remonta não só a coragem de outrora em desvendar e desmembrar a música, como também se mistura ao contemporâneo, quando o criador de tudo isso mescla Hip-Hop com música eletrônica, na tentativa de mostrar ao mundo que se você gosta de Jazz, não é necessário ouvir apenas os clássicos dos 50′, 60′ e 70′. Não, com Christian Scott o Jazz é descolado uma vez mais, perde o caráter antiquado e nos mostra a força dos verdadeiros visionários.
Line Up:
Christian Scott aTunde Adjuah (trompete/fliscorne invertido/sirenette)
Elena Pinderhughes (flauta)
Braxton Cook – (saxofone)
Corey King (trombone)
Cliff Hines (guitarra)
Lawrence Fields (piano/Fender Rhodes)
Kris Funn (baixo)
Corey Fonville (bateria/bateria eletrônica)
Joe Dyson Jr. (bateria eletrônica/percussão)
Matthew Stevens (guitarra)
Warren Wolf (vibrafone)
Track List:
”Sunrise In Beijing” – Feat. Elena Pinderhughes
”TWIN”
”Perspectives”
”West Of The West”
”Liberation Over Gangsterism” – Feat. Elena Pinderhughes
”The Corner” – Feat.Braxton Cook
”Of a New Cool”
”Runnin’ 7’s”
”Tantric”
”The Last Chieftain” – Feat. Matthew Stevens
”The Horizon”
Fliscorne invertido, já viu? Não?! Só o Christian Scott carrega um. E o trompete signature dele, o Katrina?! Só ele mesmo pra conseguir tirar notas de um trompete que parece que foi derretido pra que fizessem um nó na estrutura metálica depois.
Mas aí você vai falar: ”de que adianta toda essa fritação, o cara é apenas excêntrico”. Só que é aí que está o ponto, o senhor Scott é o melhor excêntrico da atualidade. Todas as experimentações que o americano de 32 anos faz, aparecem no seu som e o fazem de forma única. O natural de New Orleans não quer tocar os standards, ele quer criar e ser um mito, e é exatamente isso que consagra as mentes diferenciadas.
Em tempos onde muito se fala na perda da coragem na hora de criar e ousar, creio que o reverendo Christian seja um dos grandes exemplos de inovação. Sua postura não mudou nem quando as críticas começaram a surgir, algo que surpreendentemente não surgiu do dito ”meio especializado”, mas sim de Wynton Marsalis, um dos grandes trompetistas de New Orleans e um dos pilares daquele som mais morno, tradicional e anti Fusion.
Numa declaração infeliz, Wynton falou que o estilo de Christian não pode ser chamado de Jazz. Na entrevista ele justificou que faltava swing ao garotão, mas no fim todos sacaram: Wynton não mescla o Jazz com nada, com ele a tradição é tudo, algo que (me desculpe o senhor Marsalis), não leva a música pra frente.
São novos tempos e eu prefiro ver um moleque de jaqueta, inventando instrumentos, experimentando e gravando discos deste porte (reunindo um time de músicos tão técnicos e malucos quanto ele), do que ver um Chris Botti de terno e gravata tocando ”Flamenco Sketches” do Miles Davis.
É graças a caras como Scott e Kamasi Washigton, por exemplo, que a nova cena Jazzística está florescendo de maneira estonteante, revelando músicos diferenciados e provando que aquela boa e velha ”Jazzeira” não é mais a trilha sonora para uma tarde de dominó com seu avô.
Por isso aperte play em ”Stretch Music” e entenda a força de um novo processo criativo. Neste disco, especificamente, a ideia já está no nome, quando Christian falou em Stretch Music”, o cidadão foi para o estúdio para registrar algo que conseguisse um resultado mais homogêneo.
Mas esse ponto não se direciona apenas ao seu som e sua ”técnica do sussurro” no trompete, a questão principal é esticar as notas, alterar os padrões harmônicos e melódicos, para justamente eliminar as convenções presentes no Jazz e conseguir mesclar o maior número de referências possíveis. A suavidade neste caso é a moeda de troca para conseguir aglutinar tantas influências.
Logo na faixa de abertura, com ”Sunrise In Beijing”, preste atenção no vigor da bateria eletrônica ao fundo. Ela pulsa a jam junto com a flauta de Elena Pinderhughes e Christian apenas segura a pressão no sussurro do Katrina. A alcunha carinhosa de seu trompete. Uma alusão ao furacão que destruiu sua cidade natal e ao estrago que sua música fara na sua mente, caro leitor.
Saque só o groove da banda de apoio. O cavalgar do piano, o requinte pró seco do baixo, as reviravoltas de sax… ”TWIN” comprova a diversidade de estilos e parece nos guiar para um festividade chinesa. Sobrepondo beats em ”Perspectives” e chamando seu excelentíssimo front de guitarras (com Cliff Hines e Matthew Stevens) para aumentar a timbragem de ”West Of The West”.
As notas desse cidadão não surgem formando partituras, talvez o grande segredo por trás de todo esse feeling seja a liberdade com que ele apenas assovia para o mundo em ”Liberation Over Gangsterism”, tema que conta mais uma vez com uma inspiradíssima flauta, cortesia de Elena Pinderhughes.
Aliás, as participações desse disco nos revelam nomes realmente especiais. Nos tempos quebrados de ”The Corner”, conhecemos a lírica do sax de Braxton Cook. Com ”The Last Chieftain”, entramos na orquestra guitarrística de Matthew Stevens, mas durante o disco todo, a obra e sua concepção são indivisíveis.
Além de ser um norte para uma grande cena, Scott não limita seus músicos, todos possuem bastante liberdade e o resultado é essa sobreposição magnífica de improvisos, climas, energias e intensos solos de trompete. Padrões mirabolantes que surgem desafiando clássicos como em ”Of a New Cool”, referência ao lindo ”Birth Of The Cool” do mestre Miles, salienta a força da percussão em ”Runnin’ 7’s” e no final do disco comprova algo óbvio, mas que as vezes nós esquecemos de equacionar.
A música é uma linha infinita e se você não explorar, o passado não nos deixa viver o presente. Se não cruzamos novos territórios, como podemos desafiar o futuro e sua incalculável eternidade? Aparentemente só esse cara é capaz de responder isso, mas espere, agora ele está mergulhado no infinito particular de ”The Horizon”. Excelente, o menino é um poço de sentimento.