O Afrogueto tem clássico Exijo Respeito completando 15 anos. Grupo é um dos mais importantes da história do rap BA, redescobrindo o legado!
Discos de rap como Exijo Respeito (2005) são verdadeiros documentos históricos, contém em si mesmos a síntese do que de melhor seus participantes e o entorno guardam. E é uma parte dessa história que lhes convidamos para conhecer aqui, e compreender um pouco a importância desse grupo, de seus participantes, da música e da cultura de rua na qual estavam envolvidos.
O Afrogueto foi um grupo de sucesso e divisor de águas na cultura hip-hop da Bahia, com mais de 10 anos de uma trajetória grandiosa. Ainda assim, hoje os registros desse grupo vem sendo aos poucos encobertos pelas areias do tempo. Uma história de sucesso, pioneirismo, prêmios e muitas lutas e vitórias tem sido aos poucos apagadas pelas memórias individuais que falham, confundem informações, e sobretudo pela ausência dos seus dois registros oficiais lançados.
Por diversos motivos, o grupo baiano Afrogueto sintetiza um momento essencial do nosso Rap/Hip-hop de raiz original. E a recuperação e disponibilização da sua Demotape (2003) e do disco Exijo Respeito (2005), se fazem fundamentais para que essa história não seja por fim totalmente apagada. Os gangueiros que cravaram seus nomes no coração de uma parcela do público do rap baiano dos anos 2000 e abriram alas para uma estética nova, precisam ser recuperados. Uma arte que tomou de assalto o sudeste, uma quadrilha que violou e abriu espaço para o rap baiano em diversas frentes, precisam ser lembrados na sua sua imensa importância.
Tendo ouvido o disco do grupo, eu não consegui me contentar com a audição e resolvi ir atrás das pistas desse crime perfeito, de tantos depoimentos que eram confusos, de impressões muito fortes mas sem a devida fundamentação. Uma marca deixada ao longo de uma longa carreira que chegou perto ou ultrapassou os 1000 shows pela cidade e colocou a Tropa do Afro de uma vez por todas no corpo de Salvador. Uma história cheia de personagens, com muitas lembranças afetivas mas que serve para jogar luz na necessidade de sabermos que aquilo que fica apenas na memória individual, ou em arquivos pessoais, vai se perdendo ao longo dos anos e não vai ter C.S.I que dê conta.
O clássico disco do Afrogueto, Exijo Respeito (2005), que esse ano completa 15 anos de história, se encontrava até agora fora da internet, com exceção de algumas poucas faixas que podiam ser ouvidas no youtube. Pior ainda, muita gente nem sabe que existiu antes uma Demo (2003), que possui duas músicas que não estão presentes no disco. Ora, sabemos que quem não é visto não é lembrado, e se os dois registros de um dos maiores e o mais premiado grupo da Bahia não está na internet, é necessário trazê-los à tona. E o Oganpazan possui condições para essa missão, tendo conquistado o respeito e a confiança da comunidade e principalmente dos autores dos discos.
Mas vamos começar do começo e tentar reconstituir um pouco da história grandiosa que os caras desenvolveram ao longo de mais de uma década.
O Afrogueto inicialmente surge da confabulação do MC DaGanja, em sua casa em Águas Claras, tendo inicialmente em sua formação o próprio, juntamente com seu vizinho Buguelo e com o mano Guga oriundo do bairro do Engenho Velho de Brotas. DaGanja vinha do fim de seu primeiro grupo Conexão dos Periféricos junto com o grafiteiro Sisma e uma banda com ninguém menos que Jorge Dubman (aka Dr. Drumah). Com o rápido fim do Conexão, o MC passa por um rápido período no grupo Verbo de Malandro e logo após cria “sua própria parada”.
Como o nome artístico adotado pelo MC denota, desde o início o tema da cannabis sativa fez parte das suas linhas, o que o colocava como uma persona non grata para diversos participantes da cena local que militavam numa perspectiva proibicionista, e dado esse contexto nada mais importante do que criar um grupo onde pudesse expressar suas ideias. E para uma parceria mais efetiva nessa questão ninguém melhor do que um também jovem MC oriundo de uma gangue de pixadores/banda de reggae e rap chamada Comando Kaya. Kiko MC é reconhecidamente uma das figuras principais do Afrogueto, e naquele momento o par perfeito com quem DaGanja podia falar de suas vivências.
Oriundo do bairro de São Caetano, um dos maiores celeiros de artistas do hip hop baiano, em sua caminhada inicial era já um artista que verminava na Rocinha para rimar, no local onde naquela altura se apresentavam mestres do calibre de um Alumínio e Carruagem de Fogo. e obviamente ali aprendia o seu ofício com maestria. O flow e o conteúdo das linhas que Kiko MC desenvolveu pode ser facilmente entendido se tomarmos esses anos iniciais de aprendizagem, com a nata do roots reggae baiano na Rocinha, e com seu parceiro Malucção (Curuzu-Liberdade), pelas ruas e palcos, riscando as paredes e fazendo música. Gangueiragem master class.
O grupo nasce em 1998, de modo que podemos marcá-los facilmente como um dos que abrem as portas de uma segunda geração do rap baiano, trazendo uma renovação e já obviamente se distanciando estética e politicamente de um modus operandi comum a grupos como Leões do Rap, Simples Raportagem, Elemento X, Erê Jitolú e Quilombo Vivo. Essa abertura está como bem frisou o participante da cena naquela época e hoje mestre e professor de história e escritor Fábio Mandingo:
“que naquele momento, era o grupo rebelde que representava o início do que se poderia chamar de “Gangsta Rap Baiano”, embora ainda representasse uma transição entre o Rap de “protesto , consciência e reflexão”, e o Rap que tratava de assuntos mais mundanos como drogas, lazeres e prazeres (espinafre,cerveja e vinho…)” trecho retirado de texto publica aqui.
Pouco tempo depois de fundar o Afrogueto e convidar Kiko MC, DaGanja deixa o grupo e entrega toda a aparelhagem na responsa do primeiro e parte para integrar o Testemunhaz. O que leva Kiko MC a convidar um parceiro com quem ja vinha encabeçando o projeto A Banca, onde conheceu e integrou junto com MC Oz. Osório (OZ) vinha de uma banda de reggae chamada Mr. Reggae onde tocava guitarra, conheceu Kiko fazendo um cover do MV Bill, que tendo visto a qualidade do flow de OZ, o incentivou a fazer suas próprias rimas.
Ouça a desconhecida Demotape (2003) do Afrogueto:
O mano Preto Seda fez parte do grupo por um período importante do grupo em que conseguiu ser uma figura fundamental na história. Gravou a Demo (2003) com os caras e ainda gravou duas faixas do disco de estréia, quando já não era um integrante fixo do grupo. Em depoirmento ele nos conta:
“Eu vinha de uma caminhada numa banda de rock onde eu fazia uns improvisos. E foi o Kiko quem me convidou pra entrar na banda ali por 2001, 2002, a gente fez uma primeira letra que não chegou a ser gravada, chamada 288 e logo após veio a faixa Dois Lados da Moeda.”
Preto Seda um dos mcs da linhagem Saintkeitheana de um underground sujo, rebelde, agressivo e consciente, fez a correria junto a Kiko Mc e Oz, por um período fundamental do grupo. A original musicalidade do Afrogueto talvez possa ser entendida por essa mescla, de MC que vinham de caminhadas distintas, dentro do underground soteropolitano, rock, reggae, rap, bem como se fazia muito bem na década de 90.
Além de botar o terror em certo puritanismo militante que vigorava na época no rap baiano, a tropa do Afro conseguiu também expandir o rap baiano para outros públicos na capital e em alguns interiores. Ponto de inflexão nesse movimento foi a participação do Afrogueto no lendário festival Garage Rock em 2002, o que colocou o trabalho deles no horizonte de uma classe média branca que obviamente não frequentava os guetos onde a maioria dos eventos de rap aconteciam naqueles anos em Salvador. Isso aliado aos freestyles que o mano Kiko Mc fazia em shows pela cidade, como em shows da Diamba e Adão Negro, fez o grupo ser conhecido para além das quebradas.
Com uma mistura explosiva e iconoclasta, rebelde, o Afrogueto trilhou uma caminhada fantástica pelo rap baiano. Conseguiram plasmar muito bem também, essa energia nos seus registros de estúdio, e com a indicação do DJ Chiba D concorreram e ganharam no ano de 2005 o prêmio Hutuz como melhor grupo de rap norte/nordeste. O que diríamos, é apenas uma conquista a mais do que esses caras fizeram a várias mãos ao longo de 10 anos. Os pretos periféricos, a Tropa do Afro marcaram a história da música baiana, apesar de não receberem esse reconhecimento, como muitos e por diversos motivos.
O Afrogueto foi um grupo que teve muitos integrantes mas que teve a sua linha de força principal formada por Kiko MC, Oz, DJ Índio e DJ Mário 77. Além de Guga e Buguelo que participaram do parto do grupo, tivemos DJ Peu, DJ Leandro, DJ Bandido, os MC’s Preto Seda, Fall, que foram parte importantíssima do grupo em momentos distintos, além do mano Yuri Loppo que chegou a gravar a última música do disco Exijo Respeito.
Assim como DaGanja que além de criar o grupo, volta a integrar a gang por volta de 2005 e juntando-se novamente em um período bastante importante para a caminhada que iniciou. Tivemos também como era de praxe naquela altura no rap baiano, apoios de Dudu Caribe e Rangel Santana (designer gráfico) na confecção do disco. Assim como de muitos outros que nesse curto texto e no nosso trabalho de pesquisa não tivemos como acessar. Nesse período o poeta Nelson Maca também foi figura importante.
Não é possível dar conta de uma história tão rica e com tantos atores, a exemplo do mano que trampava nos bastidores mas que é sempre citado como figura importante: Guarda Belo. DJ Leandro que também acompanhou parte importante da caminhada dos caras, chegando a tocar com eles e saíndo para integrar o clássico Júri Racional. É uma história muito rica e complexa, que durou mais de uma década e que não é possível traçar com a riqueza de detalhes que merece, num simples artigo.
O Afrogueto chegou a participar de programas da TV local como o importante Aprovado do professor Jorge Portugal e também foi um dos pioneiros no trio elétrico. Por onde se abordar sua caminhada, verá o quanto os caras desenharam uma “história muito linda e bela” dentro do hip hop baiano.
Hoje, toda essa história é muito pouco conhecida também, e o disco Exijo Respeito completa em 2020, 15 anos de seu lançamento sem estrear na internet. Agradecemos muito a autorização dada por Kiko MC, DaGanja, OZ e Preto Seda, com quem conversamos e pedimos para subir o disco todo no youtube. Ao longo das 10 músicas cantadas, o quadrado mágico materializado no disco consegue fazer uma obra sem nenhuma música ruim ou mais frágil.
O que anos depois seria a UGangue tem em Exijo Respeito (2005) um antecedente direto, basta ver como a identidade nordestina é afirmada aqui. O disco já começa com um refrão clássico: “Rap nordestino de raiz original, oxe quem não entender vai passar mal”, e já nomeia quem era bem vindo só “os coro de rato, os favela e os vagabundo!” é uma pegada inequívoca!
A identidade sonora presente nos discos do Afrogueto não deixam nenhuma dúvida, para quem ouviu o que foi lançado até aqui no rap local. Os flows e as linhas tinham em sua essência uma força de enfrentamento que de algum modo chamava pra mão, um pouco como quando você é baiano e ouve Chiclete com Banana, levanta a base: “E o que você quiser eu quero, daquele jeito”.
Os manos, chegaram num pique muito forte. e três músicas pelo menos desse disco são hits de bate cabeça, “O Som do Afrogueto”, Exijo Respeito” e “Vai Rolar uma Treta”. Essa última, arrisco a dizer que é a música mais contagiante da história, bando pique de Lampião, a música é uma pedrada, apesar de ainda reproduzir alguns “toques” homofóbicos e refletir também uma época em que a cultura hip hop de modo geral não entendia o pagode como uma expressão legítima dos mesmos guetos.
O espinafre admirado e usado para expandir a consciência é o tema de “Rolé” com o mano DaGanja na faixa, com homenagens a Rangell Santana (Mobbiu) e a Fábio Mandingo conhecido no Movimento Punk como Mendingo. O escritor e mestre em história Mandingo foi coordenador do Centro Cultural Quilombo Cecília.
As tracks “Dinheiro Maldito”, “Falsidade” e “Saka La Máscara”, trazem reflexões pesadas sobre questões sociais, raciais, de classe e de ordem ética, com letras excelentes, rimas poderosas. O disco traz samples de Tim Maia, Zeca Baleiro, Dead Prez e mostra além da força das linhas muita consciência musical.
DJ Mario 77 e OZ fizeram um trabalho que reflete até hoje a relevância não apenas individual, mas coletiva daquele momento do rap ba. O disco conta ainda com a forte faixa “Parece Que é Fácil” com o mano Preto Seda, numa reflexão ainda hoje relevante sobre as opções oferecidas aos nossos jovens no gueto. Temática continuada e expandida na última faixa União, com participação de Yuri Loppo.
O Rap não é moda, nunca vai ser, não quando é vinculado de verdade com o hip hop como o era o Afrogueto, mesmo sendo os gangueiro mor do rap naquela altura, e como eles mostravam a essência de sua música e ideias com uma linguagem naquele momento inovadora. Um disco que é marcante e fixou no rap baiano um novo jeito de falar a língua do gueto.
Um clássico, sim é um clássico!
Agradecemos ao Herbert Brito, Nelson Maca e Luciano Matos
-O Afrogueto tem clássico Exijo Respeito completando 15 anos
Por Danilo Cruz